quinta-feira, 12 de julho de 2012

Era uma manhã de sábado, perdida em um março do tempo.


Sobretudo, despedia-me de seu corpo. Daquelas ondas castanhas que se derramavam sobre os ombros, dos olhos verdes que expressavam sua amável burrice. Seus lábios finos e suas mãos delicadas desenhavam no ar palavras e gestos inúteis que me pediam para ficar, para continuar, para lhe dar uma nova chance. A. erguia-se diante de mim como uma dupla criatura: sua personalidade odiosa, sua teima em que deveria domar-me e conquistar-me, sua certeza inabalável de que seu corpo deveria ser o primeiro e o último de minha vida. Esta era a Letra A. que eu queria matar, a dentadas, cravando garras e dentes em seu frágil pescoço. MAS aqui entrava a segunda letra A., aquela fragilidade tão linda, ossos que eu podia enrolar com o fechar de uma mão, aquela língua com a qual a minha já tanto dançara e tanto mais gostaria de dançar. Porém, era impossível estar com aquele corpo A sem que a pessoa A fizesse parte de minha vida; e entre ser infeliz ao lado de um belo corpo, e tentar a sorte da felicidade na obscura senda da solidão, disse-lhe adeus pelas grades, abraçando o desconhecido. Não tornaria a vê-lA por anos depois deste evento.
Era estranho como seu corpo continuava a habitar notas de música, pedaços de papel. Olhava, encostado à parede, um velho disco de vinil que comprara naquela estranha semana em que nos conhecêramos. Os beijos dados no sábado alimentaram-me até a quarta-feira, e como uma máquina movida a um novo combustível, eu vivia de suspiros, caminhando apenas com os dedos dos pés sobre a freqüência imaterial da paixão. A melhor semana de nosso namoro havia sido aquela primeira, quando A não passava do conjunto das lembranças de uma noite selvagem, quando eu podia sonhar que A era o ente imaginário ao lado do qual eu poderia passar, descansada, o resto de meus dias, sem fazer qualquer esforço para ser feliz. Percebia, olhando o velho vinil um pouco entediado, que a letra A de quem eu sentia tanta falta era aquela que havia, durante oito dias, vivido em minha imaginação, correndo solta pelas páginas dos diários, aquela letra A que eu desenhara, tão sonhadora, no quadro da sala de aula.
Era uma manhã estúpida de sábado, em um março hoje perdido. O Yes desenhava sua psicodelia arco-íris berrante em minha sala, e dos escombros de uma relação que nascera falida brotava, paradoxal, a flor da felicidade. Observava o quintal de maneira desinteressada quando a beleza do mundo me arrebatou, sacudindo-me pelos ombros: a grama era verde, o céu era azul, o cachorro negro e a borboleta amarela. Todas as cores redescobertas dançavam ao vento o som de um rock esquecido; meu rosto, pousado sobre as mãos na janela, olhava imóvel, enquanto meus quadris – independentes! – desenhavam lenta e persistentemente o infinito no ar. Contra todas as hipóteses. Contra tudo o que me disseram. A felicidade forçava sua entrada trazendo pela mão a companhia de todas a mais inusitada: a Solidão. De todos e todas as criaturas do mundo, aquela cuja companhia havia sido terrivelmente amaldiçoada pela Tristeza e pela Loucura, ela se tornara subitamente a mais macia e agradável.
Não fazia muitos dias, comprara um livro de Bakunin. O Anarquismo entrava, brilhante, em minha vida. Não havia um método, não havia um caminho; a liberdade era uma certeza para a qual nossos pés deveriam caminhar com debilidade, debilidade e dor, mas se se conservasse como princípio a premissa de que qualquer poder era abominável, só poderia dar certo. Só se poderia, irremediavelmente, chegar “lá”. Embora Baku não trouxesse em suas linhas qualquer nota sobre feminismo, não me seria difícil diagnosticar o que havia de tão odioso em A: sua vontade de dominar-me, fazendo do amor um cativeiro ideológico, aprisionando meu corpo aos seus desejos. E então, pela primeira vez em 18 anos, pensei e senti coisas que poderiam muito bem não terem sido sentidas e pensadas, se não fosse o acidente cósmico de em minha vida terem entrado um livro, uma música e uma pessoa. Do alto de meu ateísmo, nunca antes mais forte, percebia que meus pensamentos não eram o resultado imediato da leitura de umas 15 páginas, mas a fermentação última de uma reação que começara em minha infância, mas que acontecera dia a dia em minha vida. Manhã após manhã, secretamente, crescera em mim uma estrela, e essa estrela era a certeza brutal de que a felicidade não estava no casamento – fosse com um homem, com uma mulher, com um objeto, com um animal. Eu tentava recobrar exatamente quem e quando me havia dito que eu era apenas a desgarrada contraparte de outro humano; quem me orientara a vagar, a errar em busca de outro, ao lado de quem minha vida poderia ser considerada finda; essa pessoa estava errada.
Começaria aí uma saga. Não sem volta, tampouco certa e linear como parecem os caminhos espirituais que lemos ou que imaginamos, acerca dos santos e dos sábios. Isto, porque não se tratava de um caminho espiritual, mas eu diria que se tratou exatamente do contrário: assim começou meu caminho político. Ele era, ainda é, indiscernível de minha vida pessoal, dos meus amores, dos meus dissabores; eu não poderia ter-me tornado anarquista sem, simultaneamente, tornar-me descrente no amor; nem poderia amar a mim mesma, se naquele momento não tocasse aquela música. A vida é um acidente: se tragédia ou aventura, não se trata da qualidade dos acontecimentos, mas da qualidade de nosso olhar.
Era uma manhã de sábado, perdida em um março do tempo. 

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