sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Gillette: uma oportunidade de pensar


O carnaval passou, o papa renunciou e caiu na folia, foi fantasiado de Lord Sith para a Disney, e a questão da Gillette e seu polêmico “para me pegar, tem que raspar” caiu no esquecimento. Porque afinal de contas, essa é a função do carnaval, né galera?! À parte da alienação, a questão já foi respondida em outros blogs, como a Lola e o Machismo Chato de cada Dia. Embora eu ache as respostas complementares, gostaria de fazer aqui a síntese do que nós achamos, e nos aprofundarmos teoricamente no assunto.

Primeiro, é necessário dizer de onde estamos partindo. Estamos partindo de dois livrinhos básicos e necessários para sobrevivência das subjetividades-mulheres nesse patriarcado que já vai longe. O primeiro é o Problemas de Gênero, da Butler, porque ele é a ampliação necessária de todos os livros que caem na armadilha (esse blog aqui mesmo já caiu várias vezes) de igualar mulher-cis a mulher, pasteurizando os matizes de identidades que surgem dentro dessa ampla subjetivação. Butler parte daquele ponto em que o feminismo cis estancou: se para Beauvoir o gênero (ela não usa essa palavra, usa apenas “mulher”) é cultural, o sexo é um atributo inegável do corpo. Ela opõe mulher(cultura) e fêmea(natureza), para concluir que as identidades femininas são fruto de uma cultura que tem dominadores e dominadxs, que nada têm a ver com o corpo – mas o corpo está lá. Butler, pós-estruturalista e muito baseada (me parece) nos estudos culturais, afirmará bombasticamente:

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão cultural-mente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma.

O segundo livro, O mito da beleza, é um livro que deve ser lido fazendo-se as devidas observações sobre o fato de que trata a subjetividade “mulher” sem ampliar muito o escopo da palavra. Mulheres negras, lésbicas, trans, talvez não se sintam tão contempladas com os exemplos dados no livro quanto eu, que sou branca, mas acho que a tese central do livro é bastante válida e de longo alcance: “o padrão de beleza é um padrão de comportamento”.

Muito se tem problematizado sobre a serventia do padrão de beleza. Algumas dizem que se trata apenas de uma maneira a mais que a burguesia inventou de ganhar dinheiro. Essa reflexão é importante porque adiciona o fator “classe” à questão de gênero, fator este que Butler e a teoria queer em geral não têm problema em sublinhar. Questionar quem se beneficia ou mesmo cria os padrões é necessário, mas não é suficiente. A grosso modo, a beleza como um fazer que demanda a identificação visual de um indivíduo com um padrão inteligível culturalmente, pode ser qualquer coisa: poderíamos ter um padrão segundo o qual a gordura fosse considerada bela, ou lindos cabelos roxos com purpurina, ou cabelos no peito, cabeças raspadas, etc etc. Então, por que o padrão de beleza é tão exato e tão estreito: brancura, lisura nos cabelos, magreza e pele sem pelos? O que estou propondo é que a própria estética tem uma função – e Naomi Wolf, autora do Mito da Beleza, concorda comigo.

Segundo ela, o padrão de beleza com o qual nos deparamos é um backlash, isto é, é uma reação programada e pensada pelas tradicionais instituições do patriarcado para solidificar ou restabelecer poderes que estavam ameaçados pelo avanço feminista. Para Wolf, quanto mais avançamos nas nossas conquistas, mais o padrão foi se tornando impossível de ser atingido. “As qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável”, diz ela; e se tomarmos por exemplo o nosso padrão, que inclui fome para atingir a magreza, depilação para atingir a pele “macia e lisinha” que teoricamente é natural àquelas que temos vagina, esticar-puxar-tingir-alisar-queimar­ os cabelos para que fiquem louros e lisos (e reparem que hoje em dia nenhum cabelo é suficientemente liso, e mesmo que você seja japonesa corre o risco de te oferecerem uma chapinha, só para controlar o frizz que você não tem), o resultado dessa somatória infinita, aqui reduzida, é transformar o corpo, potência de prazer, em um conjunto de territórios legíveis em termos de gênero e identidade, lócus de dor. Toda a potência que temos de gozar do nosso próprio corpo nos é tirada quando aprendemos que a dor é necessária e desejável, pois nossos corpos não têm outro valor senão na medida em que correspondem a esse padrão. Por último, e aqui fica a observação terceiro-ondista da coisa: esses não são elementos que oprimem as mulheres, são algo mais profundo ainda. Esses elementos nos criam enquanto subjetividades-mulheres que assimilam que seu corpo é um lugar de dor, vergonha, sujeira (pelos), doença (gordura, a cada dia mais patologizada) e feiúra (envelhecimento), e que nós temos que nos contentar com qualquer coisa que queira transar conosco, porque nós não somos perfeitas. Não à toa, a mesma cultura que produz um padrão de beleza assim, produz pessoas como Rafinha Bastos, que professam por aí que, se nós formos estupradas, é melhor aproveitarmos, pois é a nossa única chance de sermos vistas como corpos aprazíveis.

É aqui que eu queria conversar com os meninos que se sentiram ofendidos com o anúncio da Gillette. Esqueçam esse comercial: ele certamente não fala por nenhuma feminista. Nós, que conhecemos de perto a rotina de vergonha, medo e dor compreendida no ritual dos pelos, no infinito ritual de lutar contra o próprio corpo para atingir um padrão sobre o qual nosso poder de intervenção é diminuto (mas ainda um poder! Exerçamos!), não desejamos isso a ninguém. Por nós, aquele comercial nunca teria existido: todavia, agora que ele existe, partamos dele para uma reflexão. Agora que seus corpos foram colocados no lugar de abjeção, feiúra e sujeira onde os corpos de bilhões de mulheres sempre estiveram, pensem em todas as vezes que vocês teceram comentários maldosos ou sentiram repulsa de corpos assinalados como mulheres que não correspondiam a esse padrão corpo-sarado-pele-lisinha que vocês se acostumaram a chamar de belos. Rapazes, acabou a desculpa, não há motivo para desejar que suas namoradas raspem as axilas, as pernas, ou qualquer outra parte do corpo, se vocês não estão dispostos a fazê-lo. Agora que compreendemos que o próprio corpo é um investimento simbólico de estéticas que assinalam os comportamentos de gênero que nos são impostos por uma sociedade patriarcal, agora que sabemos que o padrão Gillette macia-e-lisinha tem uma função política na aceitação das mulheres de que vieram a este mundo sofrer e servir, joguem na lixeira, junto com a Gillette, esse hábito de impor aos corpos bio-politicamente assinalados como mulheres um padrão que agora vocês entendem.

Como íamos dizendo, o padrão de beleza é um padrão de comportamento. Aproveite o espaço aberto à reflexão para pensar: até que ponto, também, os homens incomodados não se sentem assim por conta de uma inversão (que se prova falsa no final) de papéis, ou pela assunção de um papel presumidamente feminino? Quero dizer: numa cultura que tradicionalmente territorializa os pelos como “masculinos” e a falta deles como “femininos”, será que isso não os incomoda por impor um comportamento que vocês vêem como pejorativo? Ou ainda, os sujeitos que narram o comercial são mulheres-cis consideradas lindíssimas: será que o fato de elas recusarem os corpos dos homens, ou se colocarem numa posição em que podem escolher entre ficar ou não com vocês, não fere a noção tipicamente masculina de que toda mulher está a priori à disposição do seu desejo?

Calma, gente, estamos chegando ao final. Uma das coisas importantes é relembrar que essa inversão de papéis é falsa. Para isso, basta analisar o desfecho da peça. “Pra me pegar, quero ver raspar”, isto é: as lindas mulheres cis ainda são apresentadas na qualidade de propriedade privada que os homens podem obter mediante um comportamento X qualquer. Então, a inversão de valores estabelecida ao longo da narrativa termina, e a raspagem dos pelos do peito sai do campo semântico da feminilidade e ingressa no da masculinidade na medida em que os corpos femininos são assegurados àqueles que abraçarem o tal comportamento. Outra comparação válida é procurar o argumento usado para vender aos homens (depile-se e ganhe esta linda mulher) e o que se usa para nos vender os mesmos produtos ou semelhantes. Enquanto para os homens a “peito liso” vira sinônimo de “mulher troféu”, os comerciais de cera, lâminas e antitranspirantes nos dizem que o uso desses produtos é o que regula nosso direito de ir e vir, como no comercial abaixo: até um desodorante manda no meu corpo!



Enfim, rapazes, fico por aqui. Com um convite: abandonem a hipocrisia e venham para o lado feminista da força. Acho que a Gillette já deixou claro que essa também é uma luta de vocês (embora não da mesma forma, sem homexplicanismo e sem colocar no mesmo patamar o nosso sofrimento e o de vocês, pfvr!).