domingo, 29 de janeiro de 2012

Boneco de pauzinho

Minha mãe sempre foi uma dessas mulheres arrojadas, pragmáticas e funcionais, que vivem sobretudo para o trabalho. Durante toda a minha infância só vi minha mãe de calças, que ela propagandeava (e eu discordo totalmente) como a roupa da praticidade. Quanto aos cabelos, sempre curtos, era também porque cabelos longos "só davam trabalho". Em suma, minha mãe e meu pai, ambos médicos, usavam ambos jalecos e calças, o que aprendi a ler imediatamente como "roupa de adulto", em contraposição aos vestidos e bermudas, "roupa de criança".

O resultado foi que, durante muito tempo, eu achava que os banheiros se dividiam não em masculino e feminino, mas em banheiro de adulto e banheiro de criança. Eu sabia que o meu era o da bonequinha de saia, e "o outro bonequinho", como eu passei a chamá-lo, era o banheiro dos adultos.

Até que um dia, no clube, fiquei com vontade de fazer xixi. A tentação de me aliviar na piscina, como as outras crianças, era muito grande; afinal de contas, ninguém ia saber mesmo... mas por algum motivo, naquele dia eu estava me sentindo uma boa menina e pedi ao garçom a informação. "Onde fica o banheiro das crianças?". Ele me olhou cheio de dúvidas e vazio de paciência. "Não tem disso aqui não, minha filha". Então eu entendi que as crianças faziam xixi na piscina porque afinal não tinha banheiro para nós.

Naquela mesma tarde eu pedi à minha mãe a mesma explicação, ao que ela respondeu também sem muita paciência que os banheiros do mundo se dividiam em "masculino" e "feminino". O feminino era o da bonequinha, que usava saia e tinha Às vezes cabelos longos, e o masculino era representado pelo "outro bonequinho". As dúvidas multiplicaram-se: mas por que o bonequinho é careca? O bonequinho está nu? Se o bonequinho está pelado, onde está o "piu-piu" dele? Minha mãe disse que era feio desenhar o "piu-piu" das pessoas e eu ganhei um sorvete.

Essa dúvida às vezes me visitava na escola. Por que o "bonequinho puro", o bonequinho não-assinalado, era o menino, e o bonequinho de saia era a menina? Tinha muitos problemas envolvidos aí: em primeiro lugar, minha mãe não era homem (ainda não é...), usava cabelo curto e calças, e mesmo assim era representada pelo "bonequinho de saia". Em segundo lugar, se o bonequinho não tinha "piu-piu" nem "pepeca", como a gente saberia em qual banheiro entrar? Um menino de saias podia entrar no banheiro feminino? Uma menina de calças podia entrar no banheiro masculino? Para que servia a divisão "biossexual" do banheiro, se na minha casa eu e meu irmão tomávamos banho na mesma banheira? Ao que tudo indicava, o único "piu-piu" que eu estava autorizada a ver era o do meu irmão...

Mulher é essa coisa na qual transformam a gente, que tem buceta. Mulher também pode ser alguma coisa na qual uma pessoa se transforma porque quer. Porém, a sociedade está cheia de dispositivos que não cessam de nos ensinar o que devemos fazer com o nosso corpo. Podem parecer coisas banais, como "pessoas com pênis, dirijam-se a este aposento para aliviar suas funções fisiológicas" - no caso do banheiro. A questão é que o processo nunca está acabado, e a sociedade permanece vigilante. Ser lembrado de qual é o seu banheiro também é ser lembrado de qual é o seu papel, não só por conta do anúncio na porta, mas por conta de toda uma "cultura do banheiro": lembro de suscitar muitas desconfianças no banheiro da escola, já adolescente. Enquanto todas as meninas se aproximavam do espelho para retocar a maquiagem, enquanto muitas iam ao banheiro para ter suas mais íntimas conversas - era o único ambiente 100% à prova de meninos - eu entrava, mijava, e saía de preferência correndo. Não sem antes receber um olhar duvidoso daquelas que apenas viam meu reflexo no espelho - será que ela é?

Até hoje me impressiona essa universalidade do banheiro. Em qualquer lugar do mundo ocidental você não precisa ter dúvidas do papel que reservam ao seu corpo mediante o seu órgão sexual. A identidade de gênero, ao que parece, é esse lugar imaginário onde sua alma está ancorada para sempre, como se você nascesse com um gênero ou como se, uma vez ele sendo adquirido, seja para a vida toda. Você não pode querer ser homem ou mulher, ou ser os dois, ou não ser coisa alguma. Eu gostaria de uma sociedade onde a identidade, em vez de destino, fosse um imenso jogo onde tivéssemos a autonomia de fluir de um banheiro para outro sem maiores explicações. Ou onde, melhor ainda!, os banheiros fossem assinalados por gosto musical, ou que os banheiros não fossem assinalados em absoluto. Claro que isso tudo está muito distante: por mim, me contentaria com um mundo em que o bonequinho "puro" suscitasse mais dúvidas do que certeza: quem é essa pessoa careca e pelada que, todavia, me impede de (ou me obriga a) passar por esta porta? 

domingo, 22 de janeiro de 2012

FILOSOFIA DE BOTEQUIM

A vida moderna é mundialmente conhecida como uma máquina que ordenha tempo do rebanho humano. Quase tudo é absolvido sob a alegação de que “falta tempo”, inclusive, senão sobretudo, o pensamento. Sempre falta tempo para pensar, mas é impressionante como há tempo para novela, futebol, Crepúsculo e fofoca; alguns pensamentos foram relegados aos filósofos, às pessoas importantes e à academia, enquanto outros, “inofensivos”, “despretensiosos”, “menos complexos”, correm frouxos na língua do povo, sob a alcunha depreciativa de “filosofia de botequim”.

O problema dessa alcunha, para mim, é que não há nada “de botequim” no que se fala nos espaços informais da nossa sociedade. Quando você fala em “filosofia de botequim”, o que na verdade está dizendo é que sua ideia tem um raio de ação limitado, que ela não vai a lugar algum; não oferece perigo e pode ser dita livremente. Em última instância é uma espécie de piada que não teve (impressionante como nunca tem) intenção de ofender ou lesar ninguém, e se você se sente ofendido, pois bem, é provável que você seja uma dessas pessoas de esquerda radical, sem nenhum senso de humor.

Estou com o filósofo Foucault quando, na Ordem do Discurso, questiona o conceito de autoria. Ainda pensamos o indivíduo muito como ele foi pensado dos séculos XVIII e XIX: em primeiro lugar, pensamos nele no gênero masculino. Quando queremos discursar sobre a Humanidade como um conjunto, dizemos O Homem, e quando queremos reduzir a escala de nossa análise, dizemos O Indivíduo; diz-se A Pessoa, ou A Humanidade com muito menos frequência, e isso aponta para o fato triste, muito triste, de que o gênero masculino ainda é visto por nossa cultura como a única fração plenamente humana da humanidade.

Em segundo lugar, a ideia de que dentro de nós, em algum lugar, existe um “eu verdadeiro”, uma chama que brilha e nos torna quem “realmente somos”, um núcleo duro, uma essência imutável, continua amplamente acalentada pela nossa cultura, enquanto a profunda discussão que questiona esse paradigma é rotulada como “filosófica” e engavetada imediatamente. Gostaria de, de dentro das minhas possibilidades enquanto escritora, plantar dentro do leitor senão a dúvida quanto a essa essência tão sólida que mora, digamos, em nosso coração, pelo menos plantar o questionamento sobre por que essa premissa é tão sagrada, tão cara para tantos de nós.

Em terceiro lugar, e agora sim voltando à questão da autoria, queria apenas lembrar aos entusiastas da filosofia de botequim, pessoas geralmente do gênero masculino que têm o hábito de pensar que elaboraram muita coisa por conta própria absolutamente do nada: mesmo o pretensioso Deus cristão “no início era o verbo”. A língua não é uma ferramenta neutra, nem o conjunto de rótulos de coisas que estão ou acontecem fora dela: a língua é ideologicamente impregnada. Vejamos o caso do gênero: a língua portuguesa tem dois, e a maior parte esmagadora dos substantivos está em um ou outro. É-nos muito fácil, falantes de português, imaginar que a cadeira seja feminina e o ônibus masculino, quando para um anglófono, que possui o pronome a-generificado “it”, seja totalmente absurdo atribuir gênero a objetos inanimados fora de um contexto literário. Se pensarmos a língua como um acervo de conceitos que surgem e são lapidados no interior de uma cultura por práticas que acontecem ao longo da história, no interior de operações ideológicas complexas muitas vezes intencionais e politicamente orientadas, até que ponto somos donos ou autores do que pensamos e até que ponto, na realidade, fomos antes de tudo pensados dentro da língua?

Somos, não só atravessados, mas profundamente “formatados” pelos discursos que nos cercam. Contam-nos, por exemplo, se somos ou não homens, e em seguida nos dão tarefas específicas segundo a resposta. Contam-nos que somos brasileiros e contam-nos que gostamos, ou que deveríamos gostar, de futebol... Contam-nos que a luz branca é um feixe que pode ser dividido em espectros segundo a velocidade com que chegam em nossos olhos... Todo discurso que elaboramos, e que tão legitimamente sentimos e acreditamos vir de dentro de nós, de algum lugar íntimo, reservado, “só nosso”, apóia-se na verdade em um conjunto muito mais amplo de crenças, narrativas e práticas, que podemos grosseiramente chamar de cultura; que nos cerca, que nos precede, que se estende diante de nós depois de nossa morte, que nos abraça. Não conseguimos pensar sem ou fora dela, bem como não podemos NOS pensar sem ela.

O Botequim, pois, não é a ilha da revelação onde o álcool vem nos abençoar com conhecimentos que estão além da nossa imaginação. Muito pelo contrário, o botequim historicamente construído como lugar que fica “à margem”,é o lugar onde está socialmente autorizado um conjunto de práticas que, no cotidiano, são consideradas imorais. Não há, portanto, nada de profundamente questionador no botequim ou nos hábitos que são ali proporcionados mas, muito pelo contrário, é um nicho necessário à nossa sociedade para que ideologias profundamente conservadoras continuem a perpetuar-se sob o véu do humor, onde tudo é jocoso, onde nada é “de verdade”.

Falo isso porque, na minha vida de universitária, já bebi muito em botequim. Com amigos, com estranhos. A TV sempre ligada no futebol, algumas pessoas vociferando nos fliperamas, o som das vozes formando uma massa compacta e difícil de distinguir. Ficava impressionada com como as mesas sempre acabavam organizadas de maneira bastante uniforme e ordeira em torno de uma figura masculina, que volta e meia é engraçada e carismática, mas sempre tem alguma coisa a dizer. A figura que causa silêncio quando abre a boca, a figura de quem se espera que, por sob as piadinhas, haja um pedaço de filosofia com o qual sonharemos brevemente antes de dormir e acordar amnésicos no dia seguinte. E sempre que isso acontece, sempre que surge o clima “sermão da montanha” na mesa, eu aproveito para dar uma mijada porque, sinceramente, não tenho paciência. Sério, não tenho.

E nessa longa estrada de botequim, a gente se acostuma com a condição miserável que é o banheiro feminino. A gente dá graças a Deus e acha super legal se tem papel, quando o papel é a condição mínima para a nossa higiene, especialmente em uma situação etílica, que implica muito xixi. No início da minha vida alcoólica havia uma sensação gostosa de ser a estrangeira num lugar marginal que aparentemente não era feito para mim; havia algo de questionador, de transgressor, e o banheiro fétido compunha todo um panorama de marginalidade no qual eu achava estar muito inserida. Porém o tempo foi passando, e fui começando a achar profundamente desrespeitoso, comigo e com as outras meninas, que eu tivesse que urinar e me higienizar em semelhantes condições. E num belo dia de TPM, em que qualquer insatisfação parece fardo por demais pesado e precisa ser compartilhado com imediatez, eu fui num bar tão ruim, mas tão ruim, que uma menina em desespero tinha defecado na lixeira. O banheiro fedia demais e, ainda por cima, para coroar a situação de descaso, não havia papel.

Aquilo era mais do que eu podia suportar; fui ao balcão e pedi para falar diretamente com o dono do bar, pessoa que eu conhecia havia 3 ou 4 anos. Reclamei. Ele não moveu um músculo, do corpo ou da face, em solidariedade à minha causa. Concluiu friamente: bar não é lugar de mulher.

Machismo: filosofia de botequim...

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

BBB12, natureza humana e cultura do estupro

                Durante muitos anos, a natureza humana foi uma preocupação central da filosofia ocidental. Parecia uma obviedade ululante de que existia; não se sabia se era boa ou ruim, se dizia respeito a nossas necessidades animais por sobrevivência ou se era fruto de uma força imaterial, maior e desconhecida – alma, espírito, vontade divina. Era consenso, também, que o Homem era, dentro da espécie, aquele que melhor a representava: as mulheres e crianças eram por demais aparentadas com o mundo animal, e não serviam de parâmetro para tais julgamentos. E, acreditasse alguém na maldade intrínseca, acreditasse na intrínseca bondade, parecia consensual que a vida em sociedade, com suas regras e moral, jamais seria o ambiente em que veríamos aflorar no Homem a sua natureza mais pura, mais selvagem.
                Sejamos francos, o debate nunca foi de todo abandonado, mas desde o século XIX a idéia de uma natureza, boa ou ruim, ficou um tanto quanto descreditada. Foram grandes contribuintes para isso as idéias de Freud, a hipótese de um inconsciente que se constrói na interação com o ambiente, e não um núcleo puro e essencial que viria conosco do nascimento; as idéias de Marx, que enfatizava o ser humano como uma construção histórica... mas nada foi mais contundente do que a antropologia, aliada à arqueologia. Da combinação das duas vimos que nossa espécie nem sempre foi como está: já comemos outras coisas; já moramos em casas diferentes, e inclusive houve épocas em que sequer moramos em casas; já nos estratificamos em diferentes hierarquias e já vivemos livres delas. E entre as culturas existentes tal é a variedade que eu, se advogasse da tese da “natureza humana”, teria tremendo constrangimento em me expressar sobre ela.
                O programa Big Brother, franquia internacional, é o laboratório antropológico da mídia. Partindo da tese de que a natureza humana existe e aflora longe das patrulhas morais, o “show” confina pouco mais que uma dezena de participantes em uma casa suntuosa, longe de jornais, revistas e TV, cercados por câmeras, e espera que a natureza emerja dos prisioneiros. O programa promete verdade, realidade e “animalidade". Para mim, as pessoas ali apenas simbolizam, por meio de estereótipos, aquilo que aprenderam, durante suas vidas, em nossa cultura.
                E a nossa, é uma cultura do estupro.
                Falando assim, muita gente acha que “cultura do estupro” quer dizer que, a cada esquina, há um homem com sérias perturbações de ordem psiquiátrica, pronto para atacar. E aqui já fica evidente o trabalho que a mídia faz: ao construir esse estereótipo de estuprador, cria a ilusão de que o estupro é um problema individual de cada criminoso, comportamento descolado da realidade sócio-cultural de onde vive o sujeito. Porém, a realidade é que vivemos numa cultura que nos diz que a mulher está a serviço do homem, instrumentalmente: devemos estar belas para que nos vejam, cheirosas para que nos cheirem, e gostosas, ora pois!, para que nos comam. Simples assim. E o Big Brother entra nessa lógica provendo um harém de mulheres desejáveis que podem ser livremente olhadas; que estão ali para isso, e nada mais; que são incentivadas a se perceberem e se comportarem como objetos de desejo e não como seres plenos em suas capacidades de pensar, desejar, amar e escolher com quem fazer sexo.
                Todo mundo já sabe o que aconteceu com Monique, e não vou me repetir aqui. O mais impressionante, aquilo que estou achando realmente digno de nota, é a repercussão, especialmente online, que o caso tem tido, e o fato de que há pessoas que ainda acham plausível culpar a vítima. Conheço inúmeros homens que bebem até cair, regularmente; ao final da noite, são socorridos por seus amigos ou por suas companheiras; recebem cuidado, carinho, têm suas roupas trocadas e seus corpos lavados sem que ninguém sequer imagine violar seu corpo e sua integridade. Mas uma mulher desacordada, ao que parece, perde o direito sobre seu próprio corpo e se torna subitamente objeto (objeto!) de desfrute de quem quiser “passar a régua”.
                Daí entra a natureza humana em jogo: homem é assim mesmo! Se prestarmos real atenção, sempre perceberemos que discursos sobre a mitológica natureza do homem são o porto seguro do senso comum quando o homem faz merda, isto é, para quando um indivíduo do sexo masculino transgride a moral vigente de uma sociedade, geralmente em crimes que ofendem os oprimidos: mulheres, negros, homossexuais, índios, e por aí vai. E as mulheres, que foram educadas a servir, muitas vezes nem se dão conta de que estão sendo abusadas por esse discurso. Quando um homem na internet diz que a mulher mereceu ser estuprada porque “deu mole” o que ele esta dizendo é que você está propensa ao mesmo risco. O estupro é uma espécie de sórdida lição: não seja uma puta, não beba. De preferência, não se divirta, e aliás, se possível, não saia de casa e fique na cozinha (ou na cama) que é o seu lugar.
                Digo e repito: o programa Big Brother é um programa que cultiva a mentalidade do estupro: que mulheres servem para ser olhadas, tocadas, violadas, usufruídas e que servem, também, para prestar serviços que otimizem a vida e o conforto do homem. E os homens que assistem, não me venham com aquela baboseira de que estão “vendo o jogo”: o Big Brother Brasil é o horário nacional e unificado da masturbação, quando milhares de televisores são ligados para ver bundas e peitos destituídos de qualquer humanidade. Quanto ao Daniel, é um estuprador, criminoso, e enquanto tal deve ser preso; contudo, o problema não é só o Daniel. O problema não é só o bbb12, nem o BB Brasil, mas um formato de programa que endossa a cultura do estupro. Que, aliás, faz com que pessoas pensem que um estupro não é um ato de violência, mas um triunfo da razão, na qual um “homem espert”o tira proveito de “uma garota burra” que “mereceu”. Sério, pensem nisso.