Durante muitos anos, a natureza humana foi uma preocupação central da filosofia ocidental. Parecia uma obviedade ululante de que existia; não se sabia se era boa ou ruim, se dizia respeito a nossas necessidades animais por sobrevivência ou se era fruto de uma força imaterial, maior e desconhecida – alma, espírito, vontade divina. Era consenso, também, que o Homem era, dentro da espécie, aquele que melhor a representava: as mulheres e crianças eram por demais aparentadas com o mundo animal, e não serviam de parâmetro para tais julgamentos. E, acreditasse alguém na maldade intrínseca, acreditasse na intrínseca bondade, parecia consensual que a vida em sociedade, com suas regras e moral, jamais seria o ambiente em que veríamos aflorar no Homem a sua natureza mais pura, mais selvagem.
Sejamos francos, o debate nunca foi de todo abandonado, mas desde o século XIX a idéia de uma natureza, boa ou ruim, ficou um tanto quanto descreditada. Foram grandes contribuintes para isso as idéias de Freud, a hipótese de um inconsciente que se constrói na interação com o ambiente, e não um núcleo puro e essencial que viria conosco do nascimento; as idéias de Marx, que enfatizava o ser humano como uma construção histórica... mas nada foi mais contundente do que a antropologia, aliada à arqueologia. Da combinação das duas vimos que nossa espécie nem sempre foi como está: já comemos outras coisas; já moramos em casas diferentes, e inclusive houve épocas em que sequer moramos em casas; já nos estratificamos em diferentes hierarquias e já vivemos livres delas. E entre as culturas existentes tal é a variedade que eu, se advogasse da tese da “natureza humana”, teria tremendo constrangimento em me expressar sobre ela.
O programa Big Brother, franquia internacional, é o laboratório antropológico da mídia. Partindo da tese de que a natureza humana existe e aflora longe das patrulhas morais, o “show” confina pouco mais que uma dezena de participantes em uma casa suntuosa, longe de jornais, revistas e TV, cercados por câmeras, e espera que a natureza emerja dos prisioneiros. O programa promete verdade, realidade e “animalidade". Para mim, as pessoas ali apenas simbolizam, por meio de estereótipos, aquilo que aprenderam, durante suas vidas, em nossa cultura.
E a nossa, é uma cultura do estupro.
Falando assim, muita gente acha que “cultura do estupro” quer dizer que, a cada esquina, há um homem com sérias perturbações de ordem psiquiátrica, pronto para atacar. E aqui já fica evidente o trabalho que a mídia faz: ao construir esse estereótipo de estuprador, cria a ilusão de que o estupro é um problema individual de cada criminoso, comportamento descolado da realidade sócio-cultural de onde vive o sujeito. Porém, a realidade é que vivemos numa cultura que nos diz que a mulher está a serviço do homem, instrumentalmente: devemos estar belas para que nos vejam, cheirosas para que nos cheirem, e gostosas, ora pois!, para que nos comam. Simples assim. E o Big Brother entra nessa lógica provendo um harém de mulheres desejáveis que podem ser livremente olhadas; que estão ali para isso, e nada mais; que são incentivadas a se perceberem e se comportarem como objetos de desejo e não como seres plenos em suas capacidades de pensar, desejar, amar e escolher com quem fazer sexo.
Todo mundo já sabe o que aconteceu com Monique, e não vou me repetir aqui. O mais impressionante, aquilo que estou achando realmente digno de nota, é a repercussão, especialmente online, que o caso tem tido, e o fato de que há pessoas que ainda acham plausível culpar a vítima. Conheço inúmeros homens que bebem até cair, regularmente; ao final da noite, são socorridos por seus amigos ou por suas companheiras; recebem cuidado, carinho, têm suas roupas trocadas e seus corpos lavados sem que ninguém sequer imagine violar seu corpo e sua integridade. Mas uma mulher desacordada, ao que parece, perde o direito sobre seu próprio corpo e se torna subitamente objeto (objeto!) de desfrute de quem quiser “passar a régua”.
Daí entra a natureza humana em jogo: homem é assim mesmo! Se prestarmos real atenção, sempre perceberemos que discursos sobre a mitológica natureza do homem são o porto seguro do senso comum quando o homem faz merda, isto é, para quando um indivíduo do sexo masculino transgride a moral vigente de uma sociedade, geralmente em crimes que ofendem os oprimidos: mulheres, negros, homossexuais, índios, e por aí vai. E as mulheres, que foram educadas a servir, muitas vezes nem se dão conta de que estão sendo abusadas por esse discurso. Quando um homem na internet diz que a mulher mereceu ser estuprada porque “deu mole” o que ele esta dizendo é que você está propensa ao mesmo risco. O estupro é uma espécie de sórdida lição: não seja uma puta, não beba. De preferência, não se divirta, e aliás, se possível, não saia de casa e fique na cozinha (ou na cama) que é o seu lugar.
Digo e repito: o programa Big Brother é um programa que cultiva a mentalidade do estupro: que mulheres servem para ser olhadas, tocadas, violadas, usufruídas e que servem, também, para prestar serviços que otimizem a vida e o conforto do homem. E os homens que assistem, não me venham com aquela baboseira de que estão “vendo o jogo”: o Big Brother Brasil é o horário nacional e unificado da masturbação, quando milhares de televisores são ligados para ver bundas e peitos destituídos de qualquer humanidade. Quanto ao Daniel, é um estuprador, criminoso, e enquanto tal deve ser preso; contudo, o problema não é só o Daniel. O problema não é só o bbb12, nem o BB Brasil, mas um formato de programa que endossa a cultura do estupro. Que, aliás, faz com que pessoas pensem que um estupro não é um ato de violência, mas um triunfo da razão, na qual um “homem espert”o tira proveito de “uma garota burra” que “mereceu”. Sério, pensem nisso.
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ResponderExcluirPerfeito.
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ResponderExcluirNão há o que discutir sobre o texto: polêmico e esclarecedor, como sempre.
ResponderExcluirO que me questiono é sobre o programa em si: É obvio que ele vai se manter no ar por bons anos - a fórmula é um sucesso, principalmente com as pessoas de menor educação. Aí é que penso se o nosso dever é nos distanciar ao máximo deste tipo de produção ou tentar alterá-la por dentro: em 12 edições brasileiras, uma pessoa realmente inteligente ganhou o programa e, agora, tenta usar da imagem construída por ele dentro da globo para alavancar a carreira política - com a qual tem feito um ótimo trabalho.
O caso isolado para dar esperança ou a exceção para confirmar a regra?