domingo, 22 de janeiro de 2012

FILOSOFIA DE BOTEQUIM

A vida moderna é mundialmente conhecida como uma máquina que ordenha tempo do rebanho humano. Quase tudo é absolvido sob a alegação de que “falta tempo”, inclusive, senão sobretudo, o pensamento. Sempre falta tempo para pensar, mas é impressionante como há tempo para novela, futebol, Crepúsculo e fofoca; alguns pensamentos foram relegados aos filósofos, às pessoas importantes e à academia, enquanto outros, “inofensivos”, “despretensiosos”, “menos complexos”, correm frouxos na língua do povo, sob a alcunha depreciativa de “filosofia de botequim”.

O problema dessa alcunha, para mim, é que não há nada “de botequim” no que se fala nos espaços informais da nossa sociedade. Quando você fala em “filosofia de botequim”, o que na verdade está dizendo é que sua ideia tem um raio de ação limitado, que ela não vai a lugar algum; não oferece perigo e pode ser dita livremente. Em última instância é uma espécie de piada que não teve (impressionante como nunca tem) intenção de ofender ou lesar ninguém, e se você se sente ofendido, pois bem, é provável que você seja uma dessas pessoas de esquerda radical, sem nenhum senso de humor.

Estou com o filósofo Foucault quando, na Ordem do Discurso, questiona o conceito de autoria. Ainda pensamos o indivíduo muito como ele foi pensado dos séculos XVIII e XIX: em primeiro lugar, pensamos nele no gênero masculino. Quando queremos discursar sobre a Humanidade como um conjunto, dizemos O Homem, e quando queremos reduzir a escala de nossa análise, dizemos O Indivíduo; diz-se A Pessoa, ou A Humanidade com muito menos frequência, e isso aponta para o fato triste, muito triste, de que o gênero masculino ainda é visto por nossa cultura como a única fração plenamente humana da humanidade.

Em segundo lugar, a ideia de que dentro de nós, em algum lugar, existe um “eu verdadeiro”, uma chama que brilha e nos torna quem “realmente somos”, um núcleo duro, uma essência imutável, continua amplamente acalentada pela nossa cultura, enquanto a profunda discussão que questiona esse paradigma é rotulada como “filosófica” e engavetada imediatamente. Gostaria de, de dentro das minhas possibilidades enquanto escritora, plantar dentro do leitor senão a dúvida quanto a essa essência tão sólida que mora, digamos, em nosso coração, pelo menos plantar o questionamento sobre por que essa premissa é tão sagrada, tão cara para tantos de nós.

Em terceiro lugar, e agora sim voltando à questão da autoria, queria apenas lembrar aos entusiastas da filosofia de botequim, pessoas geralmente do gênero masculino que têm o hábito de pensar que elaboraram muita coisa por conta própria absolutamente do nada: mesmo o pretensioso Deus cristão “no início era o verbo”. A língua não é uma ferramenta neutra, nem o conjunto de rótulos de coisas que estão ou acontecem fora dela: a língua é ideologicamente impregnada. Vejamos o caso do gênero: a língua portuguesa tem dois, e a maior parte esmagadora dos substantivos está em um ou outro. É-nos muito fácil, falantes de português, imaginar que a cadeira seja feminina e o ônibus masculino, quando para um anglófono, que possui o pronome a-generificado “it”, seja totalmente absurdo atribuir gênero a objetos inanimados fora de um contexto literário. Se pensarmos a língua como um acervo de conceitos que surgem e são lapidados no interior de uma cultura por práticas que acontecem ao longo da história, no interior de operações ideológicas complexas muitas vezes intencionais e politicamente orientadas, até que ponto somos donos ou autores do que pensamos e até que ponto, na realidade, fomos antes de tudo pensados dentro da língua?

Somos, não só atravessados, mas profundamente “formatados” pelos discursos que nos cercam. Contam-nos, por exemplo, se somos ou não homens, e em seguida nos dão tarefas específicas segundo a resposta. Contam-nos que somos brasileiros e contam-nos que gostamos, ou que deveríamos gostar, de futebol... Contam-nos que a luz branca é um feixe que pode ser dividido em espectros segundo a velocidade com que chegam em nossos olhos... Todo discurso que elaboramos, e que tão legitimamente sentimos e acreditamos vir de dentro de nós, de algum lugar íntimo, reservado, “só nosso”, apóia-se na verdade em um conjunto muito mais amplo de crenças, narrativas e práticas, que podemos grosseiramente chamar de cultura; que nos cerca, que nos precede, que se estende diante de nós depois de nossa morte, que nos abraça. Não conseguimos pensar sem ou fora dela, bem como não podemos NOS pensar sem ela.

O Botequim, pois, não é a ilha da revelação onde o álcool vem nos abençoar com conhecimentos que estão além da nossa imaginação. Muito pelo contrário, o botequim historicamente construído como lugar que fica “à margem”,é o lugar onde está socialmente autorizado um conjunto de práticas que, no cotidiano, são consideradas imorais. Não há, portanto, nada de profundamente questionador no botequim ou nos hábitos que são ali proporcionados mas, muito pelo contrário, é um nicho necessário à nossa sociedade para que ideologias profundamente conservadoras continuem a perpetuar-se sob o véu do humor, onde tudo é jocoso, onde nada é “de verdade”.

Falo isso porque, na minha vida de universitária, já bebi muito em botequim. Com amigos, com estranhos. A TV sempre ligada no futebol, algumas pessoas vociferando nos fliperamas, o som das vozes formando uma massa compacta e difícil de distinguir. Ficava impressionada com como as mesas sempre acabavam organizadas de maneira bastante uniforme e ordeira em torno de uma figura masculina, que volta e meia é engraçada e carismática, mas sempre tem alguma coisa a dizer. A figura que causa silêncio quando abre a boca, a figura de quem se espera que, por sob as piadinhas, haja um pedaço de filosofia com o qual sonharemos brevemente antes de dormir e acordar amnésicos no dia seguinte. E sempre que isso acontece, sempre que surge o clima “sermão da montanha” na mesa, eu aproveito para dar uma mijada porque, sinceramente, não tenho paciência. Sério, não tenho.

E nessa longa estrada de botequim, a gente se acostuma com a condição miserável que é o banheiro feminino. A gente dá graças a Deus e acha super legal se tem papel, quando o papel é a condição mínima para a nossa higiene, especialmente em uma situação etílica, que implica muito xixi. No início da minha vida alcoólica havia uma sensação gostosa de ser a estrangeira num lugar marginal que aparentemente não era feito para mim; havia algo de questionador, de transgressor, e o banheiro fétido compunha todo um panorama de marginalidade no qual eu achava estar muito inserida. Porém o tempo foi passando, e fui começando a achar profundamente desrespeitoso, comigo e com as outras meninas, que eu tivesse que urinar e me higienizar em semelhantes condições. E num belo dia de TPM, em que qualquer insatisfação parece fardo por demais pesado e precisa ser compartilhado com imediatez, eu fui num bar tão ruim, mas tão ruim, que uma menina em desespero tinha defecado na lixeira. O banheiro fedia demais e, ainda por cima, para coroar a situação de descaso, não havia papel.

Aquilo era mais do que eu podia suportar; fui ao balcão e pedi para falar diretamente com o dono do bar, pessoa que eu conhecia havia 3 ou 4 anos. Reclamei. Ele não moveu um músculo, do corpo ou da face, em solidariedade à minha causa. Concluiu friamente: bar não é lugar de mulher.

Machismo: filosofia de botequim...

Um comentário:

  1. Curto filosofia de botequim.
    Principalmente porque o que chamo de filosofia de botequim é algo radicalmente diferente da filosofia de botequim da crônica. Ou talvez não seja algo totalmente diferente e apenas fruto das companhias ou ambiente e o seu seja diferente no meu.
    Mas, pra ser justo, tem um ou dois círculos de amigos com quem muito raramente me sento para beber e conversar que soam exatamente assim.

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