O
carnaval passou, o papa renunciou e caiu na folia, foi fantasiado de Lord Sith
para a Disney, e a questão da Gillette e seu polêmico “para me pegar, tem que
raspar” caiu no esquecimento. Porque afinal de contas, essa é a função do
carnaval, né galera?! À parte da alienação, a questão já foi respondida em
outros blogs, como a Lola e o Machismo Chato de cada Dia. Embora eu ache as respostas
complementares, gostaria de fazer aqui a síntese do que nós achamos, e nos
aprofundarmos teoricamente no assunto.
Primeiro,
é necessário dizer de onde estamos partindo. Estamos partindo de dois livrinhos
básicos e necessários para sobrevivência das subjetividades-mulheres nesse
patriarcado que já vai longe. O primeiro é o Problemas de Gênero, da Butler, porque ele é a ampliação necessária
de todos os livros que caem na armadilha (esse blog aqui mesmo já caiu várias
vezes) de igualar mulher-cis a mulher, pasteurizando os matizes de identidades
que surgem dentro dessa ampla subjetivação. Butler parte daquele ponto em que o
feminismo cis estancou: se para Beauvoir o gênero (ela não usa essa palavra,
usa apenas “mulher”) é cultural, o sexo é um atributo inegável do corpo. Ela opõe
mulher(cultura) e fêmea(natureza), para concluir que as identidades femininas são
fruto de uma cultura que tem dominadores e dominadxs, que nada têm a ver com o
corpo – mas o corpo está lá. Butler, pós-estruturalista e muito baseada (me
parece) nos estudos culturais, afirmará bombasticamente:
Se o caráter
imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja
tão cultural-mente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre
tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se
absolutamente nenhuma.
O
segundo livro, O mito da beleza, é um
livro que deve ser lido fazendo-se as devidas observações sobre o fato de que
trata a subjetividade “mulher” sem ampliar muito o escopo da palavra. Mulheres
negras, lésbicas, trans, talvez não se sintam tão contempladas com os exemplos
dados no livro quanto eu, que sou branca, mas acho que a tese central do livro é
bastante válida e de longo alcance: “o padrão de beleza é um padrão de
comportamento”.
Muito
se tem problematizado sobre a serventia do padrão de beleza. Algumas dizem que
se trata apenas de uma maneira a mais que a burguesia inventou de ganhar
dinheiro. Essa reflexão é importante porque adiciona o fator “classe” à questão
de gênero, fator este que Butler e a teoria queer
em geral não têm problema em sublinhar. Questionar quem se beneficia ou mesmo
cria os padrões é necessário, mas não é suficiente. A grosso modo, a beleza
como um fazer que demanda a identificação visual de um indivíduo com um padrão
inteligível culturalmente, pode ser qualquer coisa: poderíamos ter um padrão
segundo o qual a gordura fosse considerada bela, ou lindos cabelos roxos com
purpurina, ou cabelos no peito, cabeças raspadas, etc etc. Então, por que o
padrão de beleza é tão exato e tão estreito: brancura, lisura nos cabelos, magreza
e pele sem pelos? O que estou propondo é que a própria estética tem uma função –
e Naomi Wolf, autora do Mito da Beleza,
concorda comigo.
Segundo
ela, o padrão de beleza com o qual nos deparamos é um backlash, isto é, é uma reação programada e pensada pelas
tradicionais instituições do patriarcado para solidificar ou restabelecer
poderes que estavam ameaçados pelo avanço feminista. Para Wolf, quanto mais
avançamos nas nossas conquistas, mais o padrão foi se tornando impossível de
ser atingido. “As qualidades que um determinado período considera belas nas
mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga
ser desejável”, diz ela; e se tomarmos por exemplo o nosso padrão, que inclui fome para atingir a magreza, depilação para atingir a pele “macia e
lisinha” que teoricamente é natural àquelas que temos vagina, esticar-puxar-tingir-alisar-queimar os
cabelos para que fiquem louros e lisos (e reparem que hoje em dia nenhum cabelo
é suficientemente liso, e mesmo que você seja japonesa corre o risco de te
oferecerem uma chapinha, só para controlar o frizz que você não tem), o resultado dessa somatória infinita, aqui
reduzida, é transformar o corpo, potência de prazer, em um conjunto de territórios
legíveis em termos de gênero e identidade, lócus de dor. Toda a potência que temos de gozar do nosso próprio corpo nos é
tirada quando aprendemos que a dor é necessária e desejável, pois nossos corpos
não têm outro valor senão na medida em que correspondem a esse padrão. Por último,
e aqui fica a observação terceiro-ondista da coisa: esses não são elementos que
oprimem as mulheres, são algo mais
profundo ainda. Esses elementos nos criam enquanto subjetividades-mulheres que
assimilam que seu corpo é um lugar de dor, vergonha, sujeira (pelos), doença
(gordura, a cada dia mais patologizada) e feiúra (envelhecimento), e que nós
temos que nos contentar com qualquer coisa que queira transar conosco, porque nós
não somos perfeitas. Não à toa, a mesma cultura que produz um padrão de beleza
assim, produz pessoas como Rafinha Bastos, que professam por aí que, se nós
formos estupradas, é melhor aproveitarmos, pois é a nossa única chance de sermos
vistas como corpos aprazíveis.
É
aqui que eu queria conversar com os meninos que se sentiram ofendidos com o anúncio
da Gillette. Esqueçam esse comercial: ele certamente não fala por nenhuma
feminista. Nós, que conhecemos de perto a rotina de vergonha, medo e dor
compreendida no ritual dos pelos, no infinito ritual de lutar contra o próprio
corpo para atingir um padrão sobre o qual nosso poder de intervenção é diminuto
(mas ainda um poder! Exerçamos!), não desejamos isso a ninguém. Por nós, aquele
comercial nunca teria existido: todavia, agora que ele existe, partamos dele
para uma reflexão. Agora que seus corpos foram colocados no lugar de abjeção,
feiúra e sujeira onde os corpos de bilhões de mulheres sempre estiveram, pensem em todas as vezes que vocês teceram comentários
maldosos ou sentiram repulsa de corpos assinalados como mulheres que não
correspondiam a esse padrão corpo-sarado-pele-lisinha que vocês se acostumaram
a chamar de belos. Rapazes, acabou a desculpa, não há motivo para desejar que
suas namoradas raspem as axilas, as pernas, ou qualquer outra parte do corpo,
se vocês não estão dispostos a fazê-lo. Agora que compreendemos que o próprio
corpo é um investimento simbólico de estéticas que assinalam os comportamentos
de gênero que nos são impostos por uma sociedade patriarcal, agora que sabemos
que o padrão Gillette macia-e-lisinha tem uma função política na aceitação das
mulheres de que vieram a este mundo sofrer e servir, joguem na lixeira, junto
com a Gillette, esse hábito de impor aos corpos bio-politicamente assinalados
como mulheres um padrão que agora vocês entendem.
Como
íamos dizendo, o padrão de beleza é um padrão de comportamento. Aproveite o
espaço aberto à reflexão para pensar: até que ponto, também, os homens
incomodados não se sentem assim por conta de uma inversão (que se prova falsa
no final) de papéis, ou pela assunção de um papel presumidamente feminino? Quero
dizer: numa cultura que tradicionalmente territorializa os pelos como “masculinos”
e a falta deles como “femininos”, será que isso não os incomoda por impor um
comportamento que vocês vêem como pejorativo? Ou ainda, os sujeitos que narram
o comercial são mulheres-cis consideradas lindíssimas: será que o fato de elas
recusarem os corpos dos homens, ou se colocarem numa posição em que podem
escolher entre ficar ou não com vocês, não fere a noção tipicamente masculina
de que toda mulher está a priori à disposição do seu desejo?
Calma,
gente, estamos chegando ao final. Uma das coisas importantes é relembrar que
essa inversão de papéis é falsa. Para isso, basta analisar o desfecho da peça. “Pra
me pegar, quero ver raspar”, isto é: as lindas mulheres cis ainda são
apresentadas na qualidade de propriedade privada que os homens podem obter
mediante um comportamento X qualquer. Então, a inversão de valores estabelecida
ao longo da narrativa termina, e a raspagem dos pelos do peito sai do campo semântico
da feminilidade e ingressa no da masculinidade na medida em que os corpos
femininos são assegurados àqueles que abraçarem o tal comportamento. Outra
comparação válida é procurar o argumento usado para vender aos homens
(depile-se e ganhe esta linda mulher) e o que se usa para nos vender os mesmos
produtos ou semelhantes. Enquanto para os homens a “peito liso” vira sinônimo
de “mulher troféu”, os comerciais de cera, lâminas e antitranspirantes nos
dizem que o uso desses produtos é o que regula nosso direito de ir e vir, como
no comercial abaixo: até um desodorante manda no meu corpo!
Enfim,
rapazes, fico por aqui. Com um convite: abandonem a hipocrisia e venham para o
lado feminista da força. Acho que a Gillette já deixou claro que essa também é
uma luta de vocês (embora não da mesma forma, sem homexplicanismo e sem colocar
no mesmo patamar o nosso sofrimento e o de vocês, pfvr!).