Durante precisamente uma semana eu pensei sobre como me
posicionar acerca do hediondo texto da famosa blogueira Lola redimindo um
estuprador, pedófilo, que abusara de duas crianças por anos, e, sem se entregar
à política, mortifica-se de arrependimento. Eu oscilei entre escrever como
sobrevivente de pedofilia, sobrevivente de um relacionamento abusivo,
feminista, e até acadêmica. Embora eu saiba que as coisas não podem ser
separadas assim, por hoje não quero pegar pesado nas tintas da teoria, porque
aparentemente essa é a maneira mais eficaz de se conversar com outras
sobreviventes.
Eu passei por um abuso sexual aos 12 anos de idade. À luz do
dia. A um quarteirão da minha casa. Em um dia bonito e ensolarado. Meu agressor
não estava armado: ele era um homem adulto, mas não estava armado. Meu agressor
não gritou comigo: mas ele era uma pessoa adulta, e nós sabemos que devemos
obedecer. Meu agressor simplesmente disse que eu estava linda, e eu fiquei
feliz por receber um elogio: agradeci. Meu agressor simplesmente perguntou se
poderia chegar mais perto para conversar melhor comigo: eu consenti. Meu
agressor apenas apertou meu braço até doer, e eu tive que explicar à minha mãe,
naquela noite, como eu tinha arranjado aquele machucado. Meu agressor apenas
perguntou se podíamos conversar no terreno baldio que estava ao nosso lado, em
uma rua deserta, e eu disse que não. Meu agressor apenas disse "mas eu não
estou fazendo nada", e eu tive que concordar - mas meu braço continuava
doendo.
Eu era a menina mais feia da escola. Gorda, sardenta, e com
"cabelo de preto". Eu tinha sido alertada pelos meus amiguinhos de
que iria morrer virgem, que nunca teria um namorado. Eu pensei, eu sinceramente
pensei, que aquele homem que apertava meu braço, que continuava apertando meu
braço, iria ser minha única oportunidade de dar um beijo em alguém. E ao mesmo
tempo, eu olhava seu corpo, eu olhava a bicicleta que ele estava empurrando, eu
olhava para sua bermuda e para a sua ereção, e sentia repulsa. Sentia repulsa
de mim. Da condição miserável que é ponderar se vale a pena perder sua virgindade
num estupro - porque ia ser minha última chance. E, francamente, eu mesma me
surpreendi com meus gritos. Uma torrente de palavras saiu da minha boca, sem
sentido, sem controle. Que eu ia contar para todo mundo, que meu pai era
policial, que a minha amiga estava me esperando, que a minha mãe vinha me
buscar. Palavras que se contradiziam, mas que denunciavam, que chamavam
atenção. A rua estava deserta, mas aqueles gritos tão impressionantes fizeram
meu agressor hesitar e soltar meu braço. Ali eu vi minha chance e corri. Corri
muito. Ruas e mais ruas. Cheguei na casa da minha amiga com uma marca roxa nos
braços e a cabeça muito confusa.
Eu tinha 12 anos.
A partir dali, Jiló começou a aparecer na minha vida com
muita frequência. Até hoje não sei seu nome, só esse apelido, Jiló. Ele estava
por perto quando eu chegava da escola e quando eu brincava na rua. Então,
comecei a não sair mais - a não ser acompanhada. Hoje sei que pedófilos estudam
suas vítimas e a situação de possíveis abordagens; naquela época, eu apenas
pensei estar paranóica. Paranoica por nada - pois, afinal, a não ser por um
braço machucado... Paranoica por nada: feia, gorda, quem ia me querer?
Paranoica por nada: Jiló trabalhava em 5 casas na minha vizinhança, limpando a
piscina ou passeando com os cachorros, "dando uma olhada" nos filhos
de alguém que foi ali e já volta. Um moço jovem, risonho, simpático, de quem
ninguém desconfiava. Eu continuava sendo a menina mais feia da escola.
Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Os meninos
da minha turma fizeram uma aposta para ver quem ia ficar com meu primeiro
beijo. porque eu era a menina mais feia da escola, e ninguém achava que eu já
poderia ter beijado alguém. Não cheguei a beijar nenhum garoto.
Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Mas se eu
abaixava para amarrar meus cadarços, tinha sempre um menino para tentar ver a
cor da minha calcinha.
Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Ninguém me
desejava, a não ser para fazer do meu corpo local de abjeção, desprezo e piada.
Eu mudei de escola para uma nova escola em que eu não era
mais a menina mais feia da escola. Mas nada mudou para mim. Quando alguém se
aproximava, eu ainda achava que era alguma espécie de piada. Eu sentia medo,
repulsa, e me sentia violentada por quaisquer abordagens sexuais. Eu namorei um
menino lindo, meu primo, com quem eu tocava piano, nadava e jogava video-game,
e quando ele me tocava eu sentia um misto esquisito de nojo e gratidão. Porque
eu seria pra sempre a menina mais feia da escola. Aquela que só pode ser
desejada com violência.
E não à toa, eu acabei entrando anos mais tarde em um
relacionamento violento atravessado por essa gratidão. Porque ele me desejava e
amava, e eu era a menina mais feia da escola. Ele me achava burra, e chata, e
seus amigos, seu RPG, seu Rugby, eram mais importantes que eu - mas ele me
amava e eu estava grata. Ele não queria usar camisinha, mas eu estava grata;
ele não me ajudou a pagar meu aborto, mas eu estava grata. Porque eu era a
menina mais feia da escola, e a única maneira de alguém me desejar era me
machucando.
Para completar, meu agressor, o tal Jiló, veio trabalhar na
minha casa. Na minha casa. Chamando meu pai de "patrãozinho" e
almoçando na mesma mesa que eu. Mas ele não tinha feito nada. A não ser um
hematoma no braço, nada. Eu era paranoica, maluca, convencida - como é que
alguém poderia me desejar? Eu era a menina mais feia da escola...
Hoje eu sou feminista. E só sendo feminista entendo que foi
estupro, mesmo que não tenha havido a penetração: pois houve a intenção. Até
hoje, Jiló trabalha na vizinhança e todos confiam nele sem dificuldade. Mas eu
passei 14 anos de minha vida não apenas perdoando, mas sendo grata ao meu
estuprador. 14 anos de perdão. Durante esse tempo todo, perdoá-lo apenas serviu
para tornar minha vida um pesadelo daqueles confusos e surreais, pesadelo no
qual eu aceitei qualquer violência como carinho e desejo. E hoje, que eu o
odeio, é quando, na história da minha vida, mais claro esteve o abismo entre
uma carícia e uma porrada.
Eu não devo nada ao meu agressor. eu devo tudo ao meu ódio.
Eu não devo nada ao meu agressor. eu devo tudo ao meu ódio.