quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eu não devo nada a meu agressor. Devo tudo ao meu ódio.

GATILHO/DISPARADOR/TRIGGER: estupro, violência psicológica.



Durante precisamente uma semana eu pensei sobre como me posicionar acerca do hediondo texto da famosa blogueira Lola redimindo um estuprador, pedófilo, que abusara de duas crianças por anos, e, sem se entregar à política, mortifica-se de arrependimento. Eu oscilei entre escrever como sobrevivente de pedofilia, sobrevivente de um relacionamento abusivo, feminista, e até acadêmica. Embora eu saiba que as coisas não podem ser separadas assim, por hoje não quero pegar pesado nas tintas da teoria, porque aparentemente essa é a maneira mais eficaz de se conversar com outras sobreviventes.

Eu passei por um abuso sexual aos 12 anos de idade. À luz do dia. A um quarteirão da minha casa. Em um dia bonito e ensolarado. Meu agressor não estava armado: ele era um homem adulto, mas não estava armado. Meu agressor não gritou comigo: mas ele era uma pessoa adulta, e nós sabemos que devemos obedecer. Meu agressor simplesmente disse que eu estava linda, e eu fiquei feliz por receber um elogio: agradeci. Meu agressor simplesmente perguntou se poderia chegar mais perto para conversar melhor comigo: eu consenti. Meu agressor apenas apertou meu braço até doer, e eu tive que explicar à minha mãe, naquela noite, como eu tinha arranjado aquele machucado. Meu agressor apenas perguntou se podíamos conversar no terreno baldio que estava ao nosso lado, em uma rua deserta, e eu disse que não. Meu agressor apenas disse "mas eu não estou fazendo nada", e eu tive que concordar - mas meu braço continuava doendo.

Eu era a menina mais feia da escola. Gorda, sardenta, e com "cabelo de preto". Eu tinha sido alertada pelos meus amiguinhos de que iria morrer virgem, que nunca teria um namorado. Eu pensei, eu sinceramente pensei, que aquele homem que apertava meu braço, que continuava apertando meu braço, iria ser minha única oportunidade de dar um beijo em alguém. E ao mesmo tempo, eu olhava seu corpo, eu olhava a bicicleta que ele estava empurrando, eu olhava para sua bermuda e para a sua ereção, e sentia repulsa. Sentia repulsa de mim. Da condição miserável que é ponderar se vale a pena perder sua virgindade num estupro - porque ia ser minha última chance. E, francamente, eu mesma me surpreendi com meus gritos. Uma torrente de palavras saiu da minha boca, sem sentido, sem controle. Que eu ia contar para todo mundo, que meu pai era policial, que a minha amiga estava me esperando, que a minha mãe vinha me buscar. Palavras que se contradiziam, mas que denunciavam, que chamavam atenção. A rua estava deserta, mas aqueles gritos tão impressionantes fizeram meu agressor hesitar e soltar meu braço. Ali eu vi minha chance e corri. Corri muito. Ruas e mais ruas. Cheguei na casa da minha amiga com uma marca roxa nos braços e a cabeça muito confusa.

Eu tinha 12 anos.

A partir dali, Jiló começou a aparecer na minha vida com muita frequência. Até hoje não sei seu nome, só esse apelido, Jiló. Ele estava por perto quando eu chegava da escola e quando eu brincava na rua. Então, comecei a não sair mais - a não ser acompanhada. Hoje sei que pedófilos estudam suas vítimas e a situação de possíveis abordagens; naquela época, eu apenas pensei estar paranóica. Paranoica por nada - pois, afinal, a não ser por um braço machucado... Paranoica por nada: feia, gorda, quem ia me querer? Paranoica por nada: Jiló trabalhava em 5 casas na minha vizinhança, limpando a piscina ou passeando com os cachorros, "dando uma olhada" nos filhos de alguém que foi ali e já volta. Um moço jovem, risonho, simpático, de quem ninguém desconfiava. Eu continuava sendo a menina mais feia da escola.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Os meninos da minha turma fizeram uma aposta para ver quem ia ficar com meu primeiro beijo. porque eu era a menina mais feia da escola, e ninguém achava que eu já poderia ter beijado alguém. Não cheguei a beijar nenhum garoto.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Mas se eu abaixava para amarrar meus cadarços, tinha sempre um menino para tentar ver a cor da minha calcinha.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Ninguém me desejava, a não ser para fazer do meu corpo local de abjeção, desprezo e piada.

Eu mudei de escola para uma nova escola em que eu não era mais a menina mais feia da escola. Mas nada mudou para mim. Quando alguém se aproximava, eu ainda achava que era alguma espécie de piada. Eu sentia medo, repulsa, e me sentia violentada por quaisquer abordagens sexuais. Eu namorei um menino lindo, meu primo, com quem eu tocava piano, nadava e jogava video-game, e quando ele me tocava eu sentia um misto esquisito de nojo e gratidão. Porque eu seria pra sempre a menina mais feia da escola. Aquela que só pode ser desejada com violência.

E não à toa, eu acabei entrando anos mais tarde em um relacionamento violento atravessado por essa gratidão. Porque ele me desejava e amava, e eu era a menina mais feia da escola. Ele me achava burra, e chata, e seus amigos, seu RPG, seu Rugby, eram mais importantes que eu - mas ele me amava e eu estava grata. Ele não queria usar camisinha, mas eu estava grata; ele não me ajudou a pagar meu aborto, mas eu estava grata. Porque eu era a menina mais feia da escola, e a única maneira de alguém me desejar era me machucando.

Para completar, meu agressor, o tal Jiló, veio trabalhar na minha casa. Na minha casa. Chamando meu pai de "patrãozinho" e almoçando na mesma mesa que eu. Mas ele não tinha feito nada. A não ser um hematoma no braço, nada. Eu era paranoica, maluca, convencida - como é que alguém poderia me desejar? Eu era a menina mais feia da escola...

Hoje eu sou feminista. E só sendo feminista entendo que foi estupro, mesmo que não tenha havido a penetração: pois houve a intenção. Até hoje, Jiló trabalha na vizinhança e todos confiam nele sem dificuldade. Mas eu passei 14 anos de minha vida não apenas perdoando, mas sendo grata ao meu estuprador. 14 anos de perdão. Durante esse tempo todo, perdoá-lo apenas serviu para tornar minha vida um pesadelo daqueles confusos e surreais, pesadelo no qual eu aceitei qualquer violência como carinho e desejo. E hoje, que eu o odeio, é quando, na história da minha vida, mais claro esteve o abismo entre uma carícia e uma porrada.

Eu não devo nada ao meu agressor. eu devo tudo ao meu ódio.