quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sonhos infantis

“Aquela menina
tão pequenina
quer ser bailarina [...]”

Quando foi que começaram a me moldar mesmo? Não consigo mais recordar quando eu era ainda forma e quando já tinha barro, quando secou... nem sei dizer se cheguei a ir ao forno por assim dizer. De repente me deparei com essa escultura já meio pronta, sem saber direito em qual prateleira caber.

Quando forço um pouco lembro dos flashs de tinta fresca dando os retoques finais. Que cores eu queria ser? Que brilho eu queria ter? Acho que ainda mal havia entendido que podia ser pintada quando já me haviam coberto toda a superfícies com traços que nunca foram meus.

Mas eram esses traços, essas cores, essa forma que me definiam, não é mesmo. Afinal, era minha imagem, era quem eu era, era como todos me viam. E eu seguia caminhando pela prateleira meio apertada, apinhada, seguia me perguntando por que me sentia tão mal acabada? De quem teriam sido as mãos que me fizeram? De onde viera sua inspiração?

Eu já não queria mais somente existir para o deleite alheio. Deleite mais estranho esse o de possuir. Mais estranho ainda acho que só mesmo esse de achar que seres animados são inanimados quando assim o convém. Eu já não queria mais a prateleira, mas insistiam que era ali o meu lugar, afinal era pra isso que havia sido moldada.

É estranho olhar pra trás e constatar o quanto de fato me esforcei para desejar estar na prateleira, o quanto me esforcei para desejar ser a escultura mais bonita de todas, o quanto me esforcei para desejar ser possuída por aquele mestre mais importante de todos e ser seu mais caprichoso deleite. É estranho olhar pra trás e constatar o quanto desejei me tornar inanimadamente animada, um fantoche a ser possuídos por mãos que eu nunca seria capaz de enxergar.

As vezes acho que esse mundo feito de prateleiras e esculturas é essencialmente parnasiano. Afinal, por que haveriam de ter tantas esculturas? Será que não podemos compor outras formas, ou outras não-formas? Talvez eu quisesse ser uma música ou uma ferramenta útil. Talvez eu quisesse ser algo impossível de se possuir... como uma brisa fresca num fim de tarde quente!

Isso! Eu queria ser essa brisa! Essa brisa que tanto deleite provoca, mas um deleite desprendido, desses que só são capazes de surgir no momento inesperado. Uma brisa que vem acariciar seu rosto e bagunçar seus cabelos, dessas que faz uma cócega meio corrida no pescoço e vai embora só pra voltar daqui a pouco.

Eu não queria essa beleza parnasiana, essa beleza de forma industrial. Essa beleza nunca foi bela. Como pode haver beleza na produção em série? Todas as esculturas iguais, feitas da mesma forma, encaixadas na mesma prateleira, disputando a possessão que as algemas. Eu queria ser a beleza que não se vê. Eu queria ser uma dança, dessas que te dão vontade de gargalhar. Não consegues ver tamanha beleza no som dessa gargalhada?

Eu queria ser o meu deleite! Queria provocar deleite e que me provocassem também. Mas não essa coisa equivocada e parnasiana. Queria que você voltasse porque assim o deseja, e queria eu também voltar desejando. E quando deixassemos de desejar voltar, não haveria problema, bastaria seguir em frente.

Tudo isso foi ficando claro como água na fonte. Mas o espelho continuava mostrando a forma saída de uma forma industrial de produção em série. Eu tinha que quebrar a escultura!

Foram muitos gritos apavorados. Muitos tinham medo, alguns até pena... veja só... O mais difícil acho que foi constatar que enquanto eu passei grande parte da existência desejando desejar ser aquela forma, a maioria a minha volta simplesmente desejava. E quando você cai intencionalmente da prateleira, quando ouve o trincar da sua escultura, e quando constata que nada disso nunca foi real, você ainda ouve as pessoas repetindo que aquele desejo é real... talvez o seja... vai saber...

Do alto da prateleira eu ouvia a caixinha de musica, alguém a observava tão intensamente. Mas aqui de baixo é possível ver a bailarina que vive lá dentro. Ela roda roda sem nunca sair do lugar, ela roda roda na ponta de um pé só, ela roda roda sem parar. Ela era tão pequenina e, por isso a fizeram crer que era tão frágil e indefesa. Será que ela também deseja ter uma forma? Será que já contaram a ela que aqueles dedos que se sustentam no ar nunca foram frágeis? Será que ela sofre por ser um deleite inanimado?

Eu sigo achando que é um deleite muito estranho esse o de possuir... acho que mais estranho ainda só mesmo o deleite de ser possuído...

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