quinta-feira, 28 de junho de 2012

POTENTIA GAUDENDI


Por Beatriz Preciado

Para compreender como e por que a sexualidade e o corpo, o corpo excitável, irrompem no centro da ação política até chegar a ser objetos de uma gestão estatal e industrial minuciosa a partir de finais do século XIX, é preciso elaborar um novo conceito filosófico equivalente no domínio farmacopornográfico ao conceito de força de trabalho no domínio da economia clássica. Nomeio a noção de “força orgásmica” como potentia gaudendi: trata-se da potência (atual ou virtual) de excitação (total) de um corpo. Esta potência é uma capacidade indeterminada, não tem gênero, não é feminina ou masculina, nem humana nem animal, nem animada nem inanimada, não se dirige prioritariamente ao masculino ou ao feminino, não conhece a diferença entre heterossexualidade e homossexualidade, não diferencia entre o objeto e o sujeito, não sabe tampouco a diferença entre ser excitado, excitar e excitar-se-com. Não privilegia um órgão sobre outro: o pênis não possui mais força orgásmica que a vagina, o olho ou um dedo do pé. A força orgástica é a soma da potencialidade de excitação inerente a cada molécula viva. A força orgásmica não busca sua resolução imediata, aspira, isto sim, a estender-se no tempo e no espaço, a tudo e a todos, em todo lugar e em todo momento. É força que transforma o mundo em prazer-com. A força orgásmica reúne ao mesmo tempo todas as forças somáticas e psíquicas, põe em jogo todos os recursos bioquímicos e todas as estruturas da alma.

No capitalismo farmacopornográfico, a força de trabalho revelou seu verdadeiro substrato: força orgásmica, potentia gaudendi. O que o capitalismo atual poé a trabalhar é a potência de correr-se como tal (?), seja em sua forma farmacológica (molécula digerível que se ativará no corpo do consumidor), seja em sua representação pornográfica (como signo técnico-semiótico1 conversível em dado numérico e transferível a suportes informáticos, televisuais e telefônicos) ou em sua forma de serviço sexual (como entidade farmacopornográfica viva cuja força orgásmica e cujo volume afetivo são postos a serviço de um consumidor por um determinado tempo sob um contrato mais ou menos formal de venda de serviços sexuais).

O que caracteriza a potentia gaudendi não é somente seu caráter não permanente e altamente maleável, mas também, sobretudo, sua impossibilidade de ser possuída e conservada. A potentia gaudendi, como fundamento energético do farmacopornismo, não se deixa reduzir a objeto nem pode ser transformada em propriedade privada. Não so não posso possuir nem conservar a potentia gaudendi de outro, como não posso possuir e conservar aquela que aparece como minha. A potentia gaudendi existe unicamente como evento, relação prática, devir.

A força orgásmica é ao mesmo tempo a mais abstrata e a mais material de todas as forças de trabalho, inextricavelmente carnal e numérica, viscosa e digitalizável. Ah, glória fantasmática ou molecular transformável em capital!

O corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Este corpo não se reduz a um corpo pré-discursivo, nem tem seus limites no invólucro carnal que a pele delimita. Esta vida não pode ser entendida como um substrato biológico fora dos entremeios da produção e cultivo próprios da tecno-ciência. Este corpo é uma entidade tecnoviva multiconectada que incorpora tecnologia. Nem organismo, nem máquina: tecnocorpo. Nos anos 1950, MacLuhan, BuckMister Fuller e Wiener já o haviam percebido: as tecnologias de comunicação funcionavam como extensões do corpo. Hoje a situação parece muito mais complexa: o corpo individual funciona como uma extensão das tecnologias globais de comunicação. Dito como a feminista Donna Haraway, o corpo do século XXI é uma plataforma tecnoviva, o resultado de uma implosão irreversível de sujeito e objeto, do natural e do artificial. Daí, a noção própria de “vida” resulta arcaica para identidicar os atores desta nova tecnologia. Portanto, Donna Haraway prefere a noção de “tecnobiopoder” à foucaultiana “biopoder”, posto que já não se trata de poder sobre a vida, de poder de gerir e maximizar a vida, como queria Foucault, mas poder e controle sobre um todo tecnovivo conectado.

No circuito de tecnoprodução de excitação não há corpos vivos ou mortos, mas conectores presentes ou ausentes, atuais ou virtuais. A imagens, os virus, os programas informáticos, os internautas, as vozes que respondem aos telefones rosas, os fármacos, e os animais de laboratório nos quais estes são testados, os embriões congelados, as células tronco, as moléculas de alcaloides ativos... não apresentam na atual economia global um valor em termos de “vivos” ou “mortos”, mas em termos de integráveis ou não na bioeletrônica da excitação global. Haraway nos lembra de que “as figuras do cyborg, assim como la semilla (?), o chip, o gen, o banco de dados, a bomba, o feto, a raça, o cérebro e o ecossistema, descendem de implosões de sujeitos e objetos, do natural e do artificial”. Neste sentido, todo corpo, incluindo aqui o corpo “morto”, pode suscitar força orgásmica, e portanto pode ser portador de potência de produção de capital sexual. Esta força que se deixa converter em capital não reside no bios-, tal como se entende desde Aristóteles a Darwin, senão como tecnoeros, no corpo tecnovivo encantado e sua cibernética amorosa. Disto, conclui-se: tanto biopolítica (política de controle e produção da vida) como tanatopolítica (política de controle e gestão da morte) funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias da potentia gaudendi.

O sexo, os órgãos sexuais, o pensamento, a atração, deslocam-se para o centro da gestão tecnopolítica na medida em que está em jogo a possibilidade de se tirar proveito da força orgásmica. Se os teóricos do pós-fordismo se interessam pelo trabalho imaterial, pelo “trabalho não-objetividade”, pelo “trabalho afetivo”, aos teóricos do capitalismo farmacopornográfico nos interessa o trabalho sexual como processo de subjetivação, abrindo a possibilidade de fazer do sujeito uma reserva interminável de corrida planetária conversível em capital, em abstração, em dígito.

Não devemos ler esta teoria da “força orgásmica” através do prisma hegeliano paranóico ou rousseauniano utópico/distópico: o mercado não é um poder exterior que vem a expropriar, reprimir e controlar os instintos sexuais do indivíduo. Enfrentamo-nos, pelo contrário, com a mais difícil das situações políticas: o corpo não conhece sua forma orgásmica até que a coloca em ação.

A força orgásmica enquanto força de trabalho tem sido progressivamente regulada por um estrito controle tecnobiopolítico. A mesma relação de compra-venda e de dependência que unia o capitalista ao trabalhador regia, até pouco tempo, a relação entre os gêneros como a relação entre o ejaculador e o facilitador da ejaculação. De aquí la definición (?): o feminino, longe de ser uma natureza, é uma qualidade que cobra sua força orgásmica quando pode ser convertida em mercadoria, em objeto de intercâmbio econômico, ou seja, em trabalho. Evidentemente um corpo masculino pode ocupar (de fato já ocupa) no mercado de trabalho sexual uma posição de gênero feminino, quer dizer, pode ver sua potência orgásmica reduzida a capacidade de trabalho.

Mas o controle da potência orgásmica não define unicamente a diferença entre os gêneros, a dicotomia masculino/feminino: define também, e de modo mais geral, a diferença tecnobiopolítica entre heterossexualidade e homossexualidade. A patologização da masturbação e da homossexualidade no século XIX acompanha a constituição de um regime do qual a força orgásmica coletiva é posta a serviço da reprodução heterossexual da espécie. Tal situação será drasticamente transformada com a possibilidade de tirar benefícios da masturbação através do dispositivo pornográfico e de controlar tecnicamente a reprodução sexual através da pílula e da inseminação artificial.

Se pensarmos, seguindo Marx, que “a força de trabalho não é o trabalho de fato realizado, e sim a simples potência de trabalhar”, então teremos de admitie que qualquer corpo, humano ou animal, real ou virtual, feminino ou masculino, possui esta potência masturbatória, potência de fazer ejacular, potentia gaudendi, portanto, potência produtora de capital fixo – posto que participa do processo produtivo sem consumir-se no próprio processo. Até então conhecemos uma relação direta entre pornificação do corpo e grau de opressão. Assim, os corpos historicamente mais pornificados têm sido o corpo da mulher, o corpo infantil, o corpo racializado do escravo, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Porém, não há uma relação ontológica entre anatomia e potentia gaudendi. Corresponde ao escritor francês Miches Houellebecq o mérito de haver sabido desenhar uma formulação distópica deste novo poder do capitalismo global para fabricar a megafurcia (?) e o megapollón (?): em tal contexto, o novo sujeito hegemônico é um corpo (aos poucos codificado como masculino, branco, heterossexual) farmacopornograficamente suplementado (pelo viagra, pela cocaína, pela pornografia, etc), consumidor de serviços sexuais pauperizados (pouco a pocuco exercidos por corpos codificados como femininos, infantis, racializados):

[…] Quando pode, o ocidental trabalha; seu trabalho suele enfastiá-lo e exasperá-lo, mas ele finge que lhe interessa. Aos cinquenta anos, cansado do magistério, das matemáticas e de todo o mais, decidi descobrir o mundo. Acabava de divorciar-me pela terceira vez; no âmbito sexual, não esperava nada em particular. Primeiro viajei a Tailândia; imediatamente depois fui a Madagascar. Desde então não voltei a foder com uma branca; nem sequer voltei a ter vontade de fazê-lo. Acredite-me – digo, tocando com firmeza o braço de Lionel – , já não encontrará na branca a buceta suave, dócil, flexível e musculosa, tudo isso desapareceu por completo.

Aqui a potência não se encontra simplesmente no corpo (“feminino” ou “infantil”) como espaço tradicionalmente imaginado como prediscursivo e natural, mas em um conjunto de representações que o transformam em sexual e desejável. Trata-se em todo caso de um corpo sempre farmacopornográfico, um corpo efeito de um amplo dispositivo de representação e produção cultural.

Revelar nossa condição de trabalhadores/consumidores farmacopornográficos é a condição de possibilidade de toda teoria crítica contemporânea. Se a atual teoria da feminização do trabalho esconde um cum-shot, a ejaculação videográfica diante da tela da comunicação cooperante, é talvez porque os filósofos da biopolítica, diferentemente de Houellebecq, preferem não revelar sua qualidade de clientes do farmacopornomercado global.

No primeiro tomo de Homo Sacer, Giorgio Agamben retoma o conceito de “vida nua” de Walter Benjamin para designar o estatuto biopolítico do sujeito depois de Auschwitz, cujo paradigma seriam o interno do campo de concentração ou o imigrante ilegal retido em um centro de permanência temporal: ser reduzido a existência física, despojado de todo estatuto político ou de cidadania. Poderíamos acrescentar a esta noção de vida nua a de “vida farmacopornográfica”, pois o próprio do corpo despojado de todo estatuto legal ou político em nossas sociedades pós-industriais é servir como fonte de produção de potentia gaudendiNeste sentido, o que caracterizaria aqueles que, segundo Agamben, se vêem reduzidos a “vida nua” tanto nas sociedades democráticas como nos regimes fascistas é precisamente poder ser objeto de uma exloração farmacopornográfica máxima. Por isso não é de estranhar que códigos similares de representação pornográfica dominem as imagens dos prisioneiros de Abu Ghraib ou Guantánamo, a representação erotizada dos adolescentes tailandeses e as páginas da Hot Magazine. Todos estes corpos funcionam já, e de maneira inagotable (?), como fontes carnais e numéricas de capital ejaculante. A distorção aristotélica entre zoe e bios, vida animal desprovida de toda intencionalidade frente a vida digna, vida dotada de sentido, de autodeterminação e substrato de governo biopolítico, teria de ser substituída hoje pela distinção entre raw e bio-tech, entre cru e biotecnoculturalmente produzido, sendo esta última a condição da vida na era farmacopornista. A realidade biotecnológica desprovida de toda condição cívica (o corpo do imigrante, do deportado, do colonizado, da atriz e do ator pornô, da trabalhadora sexual, do animal de laboratório, etc) é a de corpus (já não homo) pornograficus, cuja vida (condição técnica mais que puramente biológica), desprovida de direitos e cidadania, autor e trabalho, está exposta a é construída por aparatos de autovigilância, publicização e mediatização globais. E por tudo isso em nossas democracias pós-industriais, não tanto sob o modelo distópico do campo de concentração ou de extermínio, facilmente denunciáveis como dispositivos de controle, mas formando parte de um bordel-laboratório global integrado multimídia, no qual o controle dos fluxos e dos afetos se levam a cabo através da forma pop da excitação-frustração.

1Preciado escreve técnico-semiótico, inverti a ordem por razão puramente estética.

Um comentário:

  1. Só umas observações sobre a tradução (vocês não acharam na net?):

    correrse = gozar ("do gozar enquanto tal");
    semilla = semente;
    de aquí la definición = daí a definição;
    (mega)furcia = (mega)puta;
    (mega)pollón = (mega)pau;
    inagotable = inesgotável.

    Saudações verdes

    Lázaro

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