Eu estava no ônibus, voltando da Marcha das Vadias, cansada e muito feliz. Enquanto o movimento feminista luta contra a apropriação capitalista do dia 08/03, tentando resgatar sua história como um dia de luta, enquanto lutamos pela visibilidade do nosso extenso calendário, que inclui datas como o dia da mulher negra latina e caribenha, a Marcha das Vadias é uma espécie de (controverso) carnaval: um espaço em que se luta contra o racismo, contra o machismo (por razões óbvias), contra a homofobia... é, de longe, a data feminista em que eu mais vejo militantes independentes, gente que não milita de maneira orgânica e mesmo assim está puta, faz seu cartaz, e aparece na hora... É a marcha mais heterogênea entre as feministas, e não necessariamente as atitudes de alguns grupos representam o conjunto da marcha, exatamente por esse caráter múltiplo, que é o que a torna minha marcha preferida. E eu estava cansada de pular, cantar, ver as coisas lindas que as pessoas estavam fazendo, quando diversas pessoas me mandaram mensagens perguntando que porra foi aquela de pessoas quebrando imagens religiosas. Eu não respondi no momento porque achei melhor dar uma resposta só, pra todo mundo. E é esta.
Uma das frases mais famosas, que mais aparecem nas Marchas por aí, é essa: "tirem seus ovários dos meus ovários". Em tempos nos quais o relativismo virou um fim em si mesmo, a frase se dilui num contexto de interpretações que levam a frase para o lado mais simbólico, "cultural", como se os símbolos não organizassem violências que se dão na materialidade dos corpos. Existimos nos signos, por signos, e a inquietação do movimento feminista com as palavras vadia, feminicídio, misoginia, é a luta por tornar visíveis um conjunto de violências que, não tendo maneiras de se organizar num discurso visível e legível, acabam sendo naturalizadas. Quando dizemos "tirem seus rosários dos nossos ovários", estamos dizendo que o discurso tem uma presença física, real, e mortífera, nos corpos que engravidam e só têm duas opções: tornarem-se mães sem desejar, ou correr o risco de morrer em uma clínica clandestina.
Eu fiz um aborto. Fiz um aborto pois meu namorado de então, descrito no post anterior, abusava psicologicamente de mim e mantinha um regime de sexo sem camisinha, já que usar camisinha era "chupar bala com papel" e eu não conseguia me adaptar a nenhum anticoncepcional. Eu me guiava estritamente pela tabelinha, até que, em um final de período da faculdade, minha menstruação ficou louca, desceu antes do tempo, eu fiz sexo MENSTRUADA e engravidei. Estava no meu primeiro estágio, fazia monitoria na faculdade, tinha uma péssima relação com a família, me relacionava com um cara que estava cagando para mim. Com o dinheiro que eu tinha disponível, conversei com minha médica, e por oitocentos reais consegui fazer "o procedimento" numa clínica bizarra. Bizarra, porque a cada dez minutos uma menina nova entrava na sala de "cirurgia"; porque, na sala de espera, ficávamos nuas, somente vestidas por um roupão de papel crepom; bizarra porque eu entrei na sala enquanto uma menina era levada embora nos braços, e provavelmente uma série de instrumentos usados nela seriam usados em mim sem nenhuma esterilização; bizarra porque os restos removidos de nossos úteros iam para um BALDE QUE FICAVA AO LADO DA MACA; BIZARRA porque, enquanto eu chorava, o médico disse apenas "se você aspirar o choro, vai morrer sufocada".
Uma clínica bizarra porque isso é o que você consegue quando tem os tais oitocentos reais. Quando não tem, o que te espera são as mães de anjo, o citotec, aborto com talo de couve, agulha de tricô. A maior parte dessas pessoas que abortam é mais pobre do que eu sou, são pessoas trabalhadoras que já são mães e não querem submeter seus filhos à miséria. E ao contrário de mim, que sou ateia, essas mães são cristãs, e enfrentam diariamente, às vezes por toda a vida, a culpa pelo que fizeram; julgam-se desnaturadas, porque o amor materno que nos dizem cercar a gravidez simplesmente não estava lá. O que estava lá era a necessidade de sobreviver com subempregos e salários injustos, um marido violento que se recusava a usar métodos contraceptivos, um sistema de saúde que reluta em distribuir métodos contraceptivos além da camisinha que os homens são ensinados a NÃO usar.
Isso é físico, isso é material, isso é a presença real de rosários em
nossos ovários, causando mortes e sequelas todos os dias. Por isso,
quando a JMJ distribui terços feitos de embriões ou bebês em miniatura
que não correspondem ao estágio de desenvolvimento de um feto daquele
tamanho, isso deveria nos chocar. Deveria, pois se trata da
criminalização, da culpabilização de pessoas que não tiveram nenhuma
escolha. É violento, é injusto. É terrorismo.
Na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, ontem, um grupo de manifestantes resolveu fazer uma performance porno-terrorista envolvendo imagens que são sagradas para alguns cristãos. A performance incluía quebrar crucifixos e imagens de jesus, bem como inserir nas cavidades anal e vaginal as cabeças de duas santas. Tudo isso feito por corpos não-heteronormativos, não-brancos, não-bonitos - ou eu poderia dizer corpos queer, negros e considerados feios pelo capitalismo. Ao final da performance, todas as imagens foram quebradas. Para mim, a mensagem ali era muito clara, muito íntima também: era tornar gráfica a presença da religião em nossos corpos, através da inserção de estátuas no interior de corpos; e ao retirá-las, quebrá-las, rejeitando a presença de deuses que não adoramos, alienando-nos em relação àquele único bem que temos, no final das contas: nosso corpo.
Imagino que isso ofenda muitos cristãos. Mas mesmo um cristão vai concordar que se tratavam de imagens, objetos de cerâmica fabricados em escala industrial e vendidos em qualquer esquina. Ninguém morreu. Já os rosários em nossos ovários, esses matam todos os dias. E ao transformar a profanação de símbolos religiosos num ato de terrorismo, o que a performance faz é trazer à tona o fato de que submeter milhares de mulheres aos caprichos dogmáticos de uma religião falocêntrica também é terrorismo. Terrorismo de Estado.