Por Beatriz Preciado
Para
compreender como e por que a sexualidade e o corpo, o corpo
excitável, irrompem no centro da ação política até chegar a ser
objetos de uma gestão estatal e industrial minuciosa a partir de
finais do século XIX, é preciso elaborar um novo conceito
filosófico equivalente no domínio farmacopornográfico ao conceito
de força de trabalho no domínio da economia clássica. Nomeio a
noção de “força orgásmica” como potentia gaudendi:
trata-se da potência (atual ou virtual) de excitação (total) de um
corpo. Esta potência é uma capacidade indeterminada, não tem
gênero, não é feminina ou masculina, nem humana nem animal, nem
animada nem inanimada, não se dirige prioritariamente ao masculino
ou ao feminino, não conhece a diferença entre heterossexualidade e
homossexualidade, não diferencia entre o objeto e o sujeito, não
sabe tampouco a diferença entre ser excitado, excitar e
excitar-se-com. Não privilegia um órgão sobre outro: o pênis não
possui mais força orgásmica que a vagina, o olho ou um dedo do pé.
A força orgástica é a soma da potencialidade de excitação
inerente a cada molécula viva. A força orgásmica não busca sua
resolução imediata, aspira, isto sim, a estender-se no tempo e no
espaço, a tudo e a todos, em todo lugar e em todo momento. É força
que transforma o mundo em prazer-com. A força orgásmica reúne ao
mesmo tempo todas as forças somáticas e psíquicas, põe em jogo
todos os recursos bioquímicos e todas as estruturas da alma.
No
capitalismo farmacopornográfico, a força de trabalho revelou seu
verdadeiro substrato: força orgásmica, potentia gaudendi.
O que o capitalismo atual poé a trabalhar é a potência de
correr-se como tal (?),
seja em sua forma farmacológica (molécula digerível que se ativará
no corpo do consumidor), seja em sua representação pornográfica
(como signo técnico-semiótico1
conversível em dado numérico e transferível a suportes
informáticos, televisuais e telefônicos) ou em sua forma de serviço
sexual (como entidade farmacopornográfica viva cuja força orgásmica
e cujo volume afetivo são postos a serviço de um consumidor por um
determinado tempo sob um contrato mais ou menos formal de venda de
serviços sexuais).
O
que caracteriza a potentia gaudendi
não é somente seu caráter não permanente e altamente maleável,
mas também, sobretudo, sua impossibilidade de ser possuída e
conservada. A potentia gaudendi,
como fundamento energético do farmacopornismo, não se deixa reduzir
a objeto nem pode ser transformada em propriedade privada. Não so
não posso possuir nem conservar a potentia gaudendi
de outro, como não posso possuir e conservar aquela que aparece como
minha. A potentia gaudendi
existe unicamente como evento, relação prática, devir.
A força
orgásmica é ao mesmo tempo a mais abstrata e a mais material de
todas as forças de trabalho, inextricavelmente carnal e numérica,
viscosa e digitalizável. Ah, glória fantasmática ou molecular
transformável em capital!
O
corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Este
corpo não se reduz a um corpo pré-discursivo, nem tem seus limites
no invólucro carnal que a pele delimita. Esta vida não pode ser
entendida como um substrato biológico fora dos entremeios da
produção e cultivo próprios da tecno-ciência. Este corpo é uma
entidade tecnoviva multiconectada que incorpora tecnologia. Nem
organismo, nem máquina: tecnocorpo. Nos anos 1950, MacLuhan,
BuckMister Fuller e Wiener já o haviam percebido: as tecnologias de
comunicação funcionavam como extensões do corpo. Hoje a situação
parece muito mais complexa: o corpo individual funciona como uma
extensão das tecnologias globais de comunicação. Dito como a
feminista Donna Haraway, o corpo do século XXI é uma plataforma
tecnoviva, o resultado de uma implosão irreversível de sujeito e
objeto, do natural e do artificial. Daí, a noção própria de
“vida” resulta arcaica para identidicar os atores desta nova
tecnologia. Portanto, Donna Haraway prefere a noção de
“tecnobiopoder” à foucaultiana “biopoder”, posto que já não
se trata de poder sobre a vida, de poder de gerir e maximizar a vida,
como queria Foucault, mas poder e controle sobre um todo tecnovivo
conectado.
No
circuito de tecnoprodução de excitação não há corpos vivos ou
mortos, mas conectores presentes ou ausentes, atuais ou virtuais. A
imagens, os virus, os programas informáticos, os internautas, as
vozes que respondem aos telefones rosas, os fármacos, e os animais
de laboratório nos quais estes são testados, os embriões
congelados, as células tronco, as moléculas de alcaloides ativos...
não apresentam na atual economia global um valor em termos de
“vivos” ou “mortos”, mas em termos de integráveis ou não na
bioeletrônica da excitação global. Haraway nos lembra de que “as
figuras do cyborg,
assim como la semilla (?),
o chip, o gen, o banco de dados, a bomba, o feto, a raça, o cérebro
e o ecossistema, descendem de implosões de sujeitos e objetos, do
natural e do artificial”. Neste sentido, todo corpo, incluindo aqui
o corpo “morto”, pode suscitar força orgásmica, e portanto pode
ser portador de potência de produção de capital sexual. Esta força
que se deixa converter em capital não reside no bios-, tal como se
entende desde Aristóteles a Darwin, senão como tecnoeros,
no corpo tecnovivo encantado e sua cibernética amorosa. Disto,
conclui-se: tanto biopolítica (política de controle e produção da
vida) como tanatopolítica (política de controle e gestão da morte)
funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias da
potentia gaudendi.
O
sexo, os órgãos sexuais, o pensamento, a atração, deslocam-se
para o centro da gestão tecnopolítica na medida em que está em
jogo a possibilidade de se tirar proveito da força orgásmica. Se os
teóricos do pós-fordismo se interessam pelo trabalho imaterial,
pelo “trabalho não-objetividade”, pelo “trabalho afetivo”,
aos teóricos do capitalismo farmacopornográfico nos interessa o
trabalho sexual como processo de subjetivação, abrindo a
possibilidade de fazer do sujeito uma reserva interminável de
corrida planetária
conversível em capital, em abstração, em dígito.
Não
devemos ler esta teoria da “força orgásmica” através do prisma
hegeliano paranóico ou rousseauniano utópico/distópico: o mercado
não é um poder exterior que vem a expropriar, reprimir e controlar
os instintos sexuais do indivíduo. Enfrentamo-nos, pelo contrário,
com a mais difícil das situações políticas: o corpo não conhece
sua forma orgásmica até que a coloca em ação.
A
força orgásmica enquanto força de trabalho tem sido
progressivamente regulada por um estrito controle tecnobiopolítico.
A mesma relação de compra-venda e de dependência que unia o
capitalista ao trabalhador regia, até pouco tempo, a relação entre
os gêneros como a relação entre o ejaculador e o facilitador da
ejaculação. De aquí la definición (?):
o feminino, longe de ser uma natureza, é uma qualidade que cobra sua
força orgásmica quando pode ser convertida em mercadoria, em objeto
de intercâmbio econômico, ou seja, em trabalho. Evidentemente um
corpo masculino pode ocupar (de fato já ocupa) no mercado de
trabalho sexual uma posição de gênero feminino, quer dizer, pode
ver sua potência orgásmica reduzida a capacidade de trabalho.
Mas o
controle da potência orgásmica não define unicamente a diferença
entre os gêneros, a dicotomia masculino/feminino: define também, e
de modo mais geral, a diferença tecnobiopolítica entre
heterossexualidade e homossexualidade. A patologização da
masturbação e da homossexualidade no século XIX acompanha a
constituição de um regime do qual a força orgásmica coletiva é
posta a serviço da reprodução heterossexual da espécie. Tal
situação será drasticamente transformada com a possibilidade de
tirar benefícios da masturbação através do dispositivo
pornográfico e de controlar tecnicamente a reprodução sexual
através da pílula e da inseminação artificial.
Se
pensarmos, seguindo Marx, que “a força de trabalho não é o
trabalho de fato realizado, e sim a simples potência de trabalhar”,
então teremos de admitie que qualquer corpo, humano ou animal, real
ou virtual, feminino ou masculino, possui esta potência
masturbatória, potência de fazer ejacular, potentia
gaudendi, portanto, potência
produtora de capital fixo – posto que participa do processo
produtivo sem consumir-se no próprio processo. Até então
conhecemos uma relação direta entre pornificação do corpo e grau
de opressão. Assim, os corpos historicamente mais pornificados têm
sido o corpo da mulher, o corpo infantil, o corpo racializado do
escravo, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Porém,
não há uma relação ontológica entre anatomia e potentia
gaudendi. Corresponde ao
escritor francês Miches Houellebecq o mérito de haver sabido
desenhar uma formulação distópica deste novo poder do capitalismo
global para fabricar a megafurcia (?) e
o megapollón (?): em
tal contexto, o novo sujeito hegemônico é um corpo (aos poucos
codificado como masculino, branco, heterossexual)
farmacopornograficamente suplementado (pelo viagra, pela cocaína,
pela pornografia, etc), consumidor de serviços sexuais pauperizados
(pouco a pocuco exercidos por corpos codificados como femininos,
infantis, racializados):
[…]
Quando pode, o ocidental trabalha;
seu trabalho suele
enfastiá-lo e exasperá-lo, mas ele finge que lhe interessa. Aos
cinquenta anos, cansado do magistério, das matemáticas e de todo o
mais, decidi descobrir o mundo. Acabava de divorciar-me pela terceira
vez; no âmbito sexual, não esperava nada em particular. Primeiro
viajei a Tailândia; imediatamente depois fui a Madagascar. Desde
então não voltei a foder com uma branca; nem sequer voltei a ter
vontade de fazê-lo. Acredite-me – digo, tocando com firmeza o
braço de Lionel – , já não encontrará na branca a buceta suave,
dócil, flexível e musculosa, tudo isso desapareceu por completo.
Aqui
a potência não se encontra simplesmente no
corpo (“feminino” ou “infantil”) como espaço
tradicionalmente imaginado como prediscursivo e natural, mas em um
conjunto de representações que o transformam em sexual e desejável.
Trata-se em todo caso de um corpo sempre farmacopornográfico, um
corpo efeito de um amplo dispositivo de representação e produção
cultural.
Revelar
nossa condição de trabalhadores/consumidores farmacopornográficos
é a condição de possibilidade de toda teoria crítica
contemporânea. Se a atual teoria da feminização do trabalho
esconde um cum-shot, a
ejaculação videográfica diante da tela da comunicação
cooperante, é talvez porque os filósofos da biopolítica,
diferentemente de Houellebecq, preferem não revelar sua qualidade de
clientes do farmacopornomercado global.
No
primeiro tomo de Homo Sacer,
Giorgio Agamben retoma o conceito de “vida nua” de Walter
Benjamin para designar o estatuto biopolítico do sujeito depois de
Auschwitz, cujo paradigma seriam o interno do campo de concentração
ou o imigrante ilegal retido em um centro de permanência temporal:
ser reduzido a existência física, despojado de todo estatuto
político ou de cidadania. Poderíamos acrescentar a esta noção de
vida nua a de “vida farmacopornográfica”, pois o próprio do
corpo despojado de todo estatuto legal ou político em nossas
sociedades pós-industriais é servir como fonte de produção de
potentia gaudendi. Neste sentido, o que caracterizaria aqueles que, segundo Agamben, se
vêem reduzidos a “vida nua” tanto nas sociedades democráticas
como nos regimes fascistas é precisamente poder ser objeto de uma
exloração farmacopornográfica máxima. Por isso não é de
estranhar que códigos similares de representação pornográfica
dominem as imagens dos prisioneiros de Abu Ghraib ou Guantánamo, a
representação erotizada dos adolescentes tailandeses e as páginas
da Hot Magazine. Todos
estes corpos funcionam já, e de maneira inagotable (?),
como fontes carnais e numéricas de capital ejaculante. A distorção
aristotélica entre zoe e
bios, vida animal
desprovida de toda intencionalidade frente a vida digna, vida dotada
de sentido, de autodeterminação e substrato de governo biopolítico,
teria de ser substituída hoje pela distinção entre raw
e bio-tech, entre cru
e biotecnoculturalmente produzido, sendo esta última a condição da
vida na era farmacopornista. A realidade biotecnológica desprovida
de toda condição cívica (o corpo do imigrante, do deportado, do
colonizado, da atriz e do ator pornô, da trabalhadora sexual, do
animal de laboratório, etc) é a de corpus
(já não homo)
pornograficus, cuja
vida (condição técnica mais que puramente biológica), desprovida
de direitos e cidadania, autor e trabalho, está exposta a é
construída por aparatos de autovigilância, publicização e
mediatização globais. E por tudo isso em nossas democracias
pós-industriais, não tanto sob o modelo distópico do campo de
concentração ou de extermínio, facilmente denunciáveis como
dispositivos de controle, mas formando parte de um bordel-laboratório
global integrado multimídia, no
qual o controle dos fluxos e dos afetos se levam a cabo através da
forma pop da excitação-frustração.
1Preciado
escreve técnico-semiótico,
inverti a ordem por razão puramente estética.