quinta-feira, 11 de abril de 2013

A incrível necessidade de falar sobre o véu – notas sobre apropriações discursivas



Por que as pessoas ainda falam sobre o FEMEN me é um completo mistério. Um grupo que se diz feminista e homenageia Margareth Thatcher por suas políticas neoliberais, ou ainda Hugh Heffman, criador da revista playboy, como um ferrenho partidário da emancipação da mulher, já deveria ser visto como desconfiança. Aliás, grupos que falem indistintamente em “emancipação da mulher” como se se tratasse de um grupo política, étnica, cultural e economicamente homogêneo que tivesse no horizonte uma solução unívoca para os seus problemas, devem ser encarados com um pezinho atrás, SEMPRE. Por fim, estou até pasma pelo fato de haver ativistas gordinhas entre as “louraças” da organização, visto que até pouco tempo atrás, magreza, lourice e branquitude eram pré-requisitos sem os quais não se poderia aderir à organização. Enfim, como eu disse: procurar sentido no FEMEN é pra quem tem muito boa vontade ou muito tempo livre, e eu não disponho de uma ou outra coisa.

O que importa é que recentemente, a organização fez um protesto pela “liberação das mulheres muçulmanas”, criticando o véu entre outros aspectos da cultura islâmica – o que aliás, é uma grosseria teórica, visto que islamismo não é sinônimo de muçulmano, e por aí vai. Como é de praxe, o FEMEN gera muito mais impacto negativo que positivo, pipocando instantaneamente, e nos dias conseguintes, ferrenhas críticas à postura colonialista e racista das moças e apoios incondicionais ao uso do véu. Para tanto, gostaria de tecer algumas considerações.

Não sei muita coisa sobre o assunto “véu”. O único caso que conheço de país islâmico onde o véu é obrigatório é o Irã, caso que conheci por um único livro, o Persépolis. Trata-se de uma autobiografia de uma menina que, por volta dos 7 anos, encontra-se no país quando acontece a “revolução” islâmica que leva Aiatolá Khomeini ao poder, juntamente a um grupo religioso radical. Marjani, que era apenas uma criança, vivera até então da maneira como a maior parte de nós “ocidentais” vive: estudava numa escola mista, vestia-se com roupas como as nossas, até que, após a chegada dos religiosos ao poder, o uso do véu se torna obrigatório, homossexuais passam a ser perseguidos, e sob a pena de as “mulheres” serem taxadas de imorais e sofrerem perseguições por isso, os casamentos voltam a ser arranjados pela família e, se não me engano, o divórcio se torna ilegal (essa parte do livro eu não lembro, posso estar errada, confiram aí por mim!). O Irã era um país laico, portanto, até 1979, e o uso do véu como obrigação do Estado, antes disso, era impensável. Também o Afeganistão era um país laico até a chegada do grupo Talibã ao poder e, da mesma forma, só então o véu passa a ser uma obrigação legal. Quanto à Marjani, só pra constar, não vive mais no Irã.

Isso serve para pensarmos a maneira como o ocidente pensa o “oriente”: é o que Edward Said chama de orientalismo, e que Stuart Hall aborda em Da diáspora e Identidades culturais na pós-modernidade. Em geral, o ocidente capitalista tende a tratar “O Oriente” como um grande ente exótico e homogêneo, culturalmente insular, tão externo e alheio a nós que caberia a nós, ocidentais, apenas a alteridade completa, a admiração. Daí surgem alguns fetichismos que resumem culturas diversas e complexas a um conjunto de signos convenientes à leitura ocidental, como reduzir a cultura islâmica ao véu, ou a cultura indiana ao politeísmo, como se as culturas não-ocidentais fossem um reservatório de tradição pura e sempre igual a si mesma ao longo do tempo, como se se pudesse traçar uma linha reta partindo do presente ao seu passado mais recôndito, como se as culturas não-ocidentais encontrassem-se todas em um estado original, cristalizado e puro. Isto se realiza, por exemplo, na leitura liberal do hinduísmo, que coloca este conjunto de crenças num estado de “verdade” e de “proximidade com Deus”, ou na leitura de que as tribos autóctones, por disporem de um modo de vida que agride menos o ambiente onde se encontram, quase não dispõem de cultura, vivendo num estado quase natural. Opondo-se a esse oriente místico, logo, temos um ocidente caótico marcado pela distância entre homem (sic) e natureza, tanto quanto pela distância entre homem (sic) e Deus, construindo-se duplamente um ocidente homogêneo, capitalista, marcado pelo desequilíbrio e relações de poder, em oposição a um Oriente pacífico, estável, e cujas culturas não apresentam tensões ou relações de poder em seu interior.

A utilidade dessas teorias, pois, não é pensar o Oriente, mas pensar como o Ocidente constrói o Oriente discursivamente a partir de relações de poder, quais são e para que servem essas apropriações discursivas, por parte do capitalismo. Por que é tão importante, para nós, falar do véu? Acredito que falar do véu tenha, em oposição ao que postula o senso comum, uma importância muito maior na veiculação de idéias às mulheres ocidentais do que propriamente um embate cultural com outros países.

Em primeiro lugar, em sua maioria, os discursos anti-femen e pró-véu trabalham com “mulheres” como uma categoria biológica. É muito precipitado dizer que há mulheres em outras culturas, exatamente porque a categoria mulher é uma assinalação biopolítica atribuída a um corpo que, a partir de uma série de dispositivos culturais de assujeitamento e subjetivação, têm como horizonte a produção de corpos dóceis capazes de se engajar em atividades sexuais, laborais, reprodutivas, estéticas, etc etc. A categoria mulher (cis, no caso), na acepção que luto para afirmar, é, pois, uma produção cultural muito específica, e que não necessariamente aparecerá em todos os arranjos sociais entre seres-humanos. Formular frases como “as mulheres dos países islâmicos” pode, pois, ter duas acepções possíveis: 1) que existam pessoas com vaginas nos países islâmicos, donde se conclui que sua concepção acerca de gênero está vinculada a um discurso médico profundamente reacionário que pressupõe a opressão de gênero como algo que tenha suas origens na biologia e, que como dado do Real, é imutável; 2) você concebe que, mesmo em outra cultura, ainda existe uma relação de poder tal que a sociedade seja radicalmente dividida entre os seres dotados de pênis e seres dotados de vaginas (intersexuais, por exemplo, estão automaticamente excluídxs), e que mediante seu papel reprodutor, laboral, sexual, estético, etc etc, os seres humanos desse lugar são subjetivados como mulheres. E nesse segundo caso, não há maneira de negar que homens e mulheres vivam numa situação de desigualdade e que o avesso desse binário sejam corpos condenados à abjeção.

Algo que Hall, negro e jamaicano, frisa sobre o exotismo atribuído pelo Ocidente ao resto do mundo, é o fato de que todas as culturas e tradições são frutos de tensões, de assimetrias no poder, de disputas políticas, de modo que não se pode falar em tradição como algo que remonta ao passado, retirando daí sua legitimidade, mas algo que diz respeito a um conjunto de narrativas sobre o passado, leituras, apropriações e deslocamentos de hábitos e costumes, que têm por meta tanto a coesão social de um grupo, como a manutenção (ou contestação, dependendo do caso) das relações estabelecidas no interior desse grupo. Defender o véu sob a premissa de que “é uma tradição” não tem por objetivo qualquer relação com o véu, mas defender que são as tradições, ou seja, a persistência no tempo, que levam um hábito a atingir o status de legítimo. Defender o véu, repito, é defender o discurso da tradição como aquilo que se perpetua no tempo por alguma espécie de utilidade, de legitimidade ou de força, e que o fato de um hábito ou objeto “atravessar o tempo” é motivo suficiente para que o deixemos como está.

Não existem, por isso, culturas puras, já que a cultura é sempre fruto de deslocamentos e negociações internas. Além disso, estamos falando de um capitalismo integrado por meios de comunicação de rede e de massa, pelo fluxo de mercadorias, pessoas e signos, de apropriações e ressignificações. Estamos falando de burkas fabricadas na China, de muçulmanos que comem hambúrguer e ouvem Britney Spears. Num contexto de tantas mudanças, por quê é o corpo da “mulher” o lócus tão privilegiado da manutenção das tradições? Por outro lado, por quê é o véu a tradição privilegiada da crítica liberal?

Quanto à primeira pergunta, cabe às mulheres de lá responder, e não a mim. Quanto à segunda, eu tenho um palpite. Num momento histórico em que há uma bancada religiosa que se coloca no Estado como representantes de suas crenças, e não como empregados da máquina estatal (não que eu concorde com a democracia burguesa, vejam bem), é muito importante veicular mensagens tais como “o uso de véus não é uma opressão”, ou “o apedrejamento de mulheres adúlteras e homossexuais não é um problema, mas outra cultura que devemos respeitar”, ou ainda “uma mulher que afirma ter sido estuprada deve levar 100 chibatadas e casar com seu estuprador”. Porque estamos falando de pessoas que defendem uma “jesuscracia” que adorariam ser vistos apenas como uma cultura, um inocente e trivial arranjo de seres-humanos que não se pauta em relações vívidas de poder mas em tradições puras, legítimas e cristalizadas, que não cabe criticar, mas admirar em sua plena “outridade”.

2 comentários:

  1. Carmen, todos os seus textos são ótimos. Você é uma menina muito culta. Talvez nem perceba, mas sempre me ensina algo de novo.
    Está construindo uma carreira brilhante. Parabéns!
    Admiro você.
    Bjs, Sarah.

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  2. O texto é sensacional e, na maior parte do tempo, bastante compreensível, o que torna ele melhor ainda. Mas tenho algumas ponderações:

    1 - "Muçulmano" e "islâmico" querem sim dizer a mesma coisa. Acho que você quis dizer que as pessoas dos povos/países em que o Islã é dominante não são necessariamente muçulmanas (logo islâmicas). Uma disjuntiva melhor seria "muçulmano é diferente de árabe, ou persa".

    2 - É uma posição difícil dizer que não houve uma revolução no Irã. Não vou ficar entrando em detalhes aqui porque to sem tempo, mas o que me parece é que houve sim uma revolução (e uma PUTA revolução), que, por não haver uma direção política consequente para o proletariado, acabou sendo dirigida por uma corrente nacionalista burguesa (o clericato muçulmano) que era profundamente reacionária e só piorou com o tempo. Afeganistão eu não faço idéia, nunca li nada sobre.

    3 - Quanto ao véu, sua explicação já tá quase perfeita, mas só pra registrar: a defesa que pelo menos a LIT e o PSTU fazem do véu é não do véu em si (foda-se se é uma tradição), e sim do direito das mulheres usarem se o quiserem, ja? Porque ele é ruim, mas em geral se ataca ele num contexto racista, como foi na França uns anos atrás. Texto da Cecília Toledo na época:

    http://www.pstu.org.br/opressao_materia.asp?id=11826&ida=4

    Enfim, é uma discussão muito difícil. Mas me alegra ver que temos uma posição bastante parecida (eu acho).

    ---Gabriel Tolstoy

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