INTRODUÇÃO: backlash à brasileira
A toda ação corresponde uma
reação na mesma direção, com mesma força e sentido contrário - é o que nos diz
a lei da física. Embora eu não seja uma ardente defensora de aplicar
irrestritamente as "leis" da física à experiência humana, muito mais
complexa, parece ser o caso da política. Quando me vejo rodeada de tantas
reações ao feminismo, algumas debatendo-se num mar de insegurança que leva à
incoerência crassa de argumentos, penso que estamos diante de um termômetro,
pelo qual podemos avaliar que estamos no caminho certo no enfrentamento contra
a hierarquia dos gêneros (misoginia, ou machismo). A necessidade de criar
respostas organizadas ao movimento indica que estamos bem das pernas em termos
de organização, seja nas ruas, seja nas teorias. E as respostas vêm vindo, nas
ruas, nas academias, mas também nas mesas de bar, nos churrascos de família:
quando se trata da produção teórica acerca do anti-feminismo, o que valida uma
teoria é muito menos o que ela diz, mas quem a está dizendo, e nesse sentido,
basta ser homem, e a verdade já lhe é garantida na largada.
A esse "contra-ataque"
é que Susan Faludi dá o nome de backlash, em seu livro homônimo. Trata-se de
uma resposta ao feminismo que parte de muitas frentes, desde o âmbito
individual de homens (em geral cis e heterossexuais) que se sentem ameaçados em
seus privilégios diante das conquistas das mulheres* quanto por organizações
que vêem seus pilares ideológicos falocêntricos ameaçados. Na sua descrição, a
autora traça um panorama bastante parecido com o do Brasil, no parágrafo
seguinte:
O avanço mais
recente do backlash veio à tona no fim dos anos 70 entre as fileiras da direita
evangélica. Já no começo da década de 1980, a ideologia fundamentalista tinha aberto
caminho até a Casa Branca. Em meados da década,
uma vez que a resistência contra os direitos da mulher tinha adquirido aceitação
política e social, passou-se para a cultura popular
Qualquer
semelhança com Marcos Feliciano na CDH ou Estatuto do Nascituro não é
coincidência, minha gente. E para citar a Faludi mais uma vez, "O backlash
revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-os passar por fatos novos,
ignorando qualquer apelo à razão". E para o meu espanto, um dos mitos ressuscitados
recentemente e circulantes no facebook é o patético, desgastado e sem sentido
"cavalheirismo".
Cavalheirismo e misoginia, na história e na literatura
Em termos
literários, o princípio do cavalheirismo surge na Idade Média, ligado a um
gênero poético a que comumente chamamos de "canção de amor". Tendo em
vista este período histórico como um momento de hegemonia católica nos campos
da filosofia, política e cultura, tem-se aqui uma definição de amor segundo a
qual a nobreza do sentimento, bem como a do amante, se medem não pelo prazer da
conjunção carnal dos indivíduos, mas pelo envolvimento espiritual que pode ser
traduzido na forma da paixão - aqui no sentido do sofrimento e do sacrifício.
Tendo em vista também a condição de inferioridade econômica, cultural e
religiosa da mulher, que vivia um paradigma aristotélico ao ser considerada um
"homem incompleto", as canções de amor versavam, geralmente, não
sobre os atributos da mulher amada, mas sobre as qualidades do cavalheiro que,
em seu sacrifício (a chamada "coita d'amor), aproximava seu espírito do
modelo de divindade cristã.
Sendo assim,
numa época hegemonizada pelo poder masculino, o código de cavalheirismo se
tratava de uma tecnologia de gênero que dividia os corpos de maneira binária de
acordo com suas funções reprodutivas, econômicas, éticas e estéticas, de modo a
produzir mulheres numa posição subalterna, impedidas de participar cultural e
politicamente da sociedade, tornando-se meros adornos que, na qualidade de propriedade
masculina, limitavam-se a receber ou não a corte do cavalheiro. Enquanto isso,
os homens eram os responsáveis, proprietários que eram do status de "seres
humanos completos", por formular os
códigos sociais segundo os quais podiam ser benfeitores e algozes de mulheres
que deles dependiam totalmente. Daí que as canções de amor mantenham uma forte
intertextualidade com as "canções de escárnio e maldizer", nas quais
as mulheres que não se submetiam às convenções da época tinham suas reputações
dizimadas, muitas vezes em poemas com citações nominais.
Sendo assim,
a "corte" do cavalheirismo, ainda que se oculte sob uma retórica de
gentileza e elogio, é um recurso misógino que parte da premissa que homens e
mulheres são categorias naturais e eternas do ser humano; enquanto tal, mulheres serão inerentemente
incapazes para um enorme arco de tarefas cabendo ao benfazejo homem ajudar-nos
em nossa deficiência.
Cavalheirismo hoje: sabemos abrir nossas próprias portas - e pernas.
O
anacronismo está em que a maior parte das mulheres do mundo, ao contrário do
que desejam os misóginos, está inserida com sucesso no mercado de trabalho, encontrando
maiores dificuldades no machismo alheio do que em qualquer dificuldade pessoal
ou, pior ainda, derivada do gênero a que pertencem. Mais do que nunca, não
precisamos de que nos abram portas, pois nós temos, com o tempo, aberto-as
sozinhas, tampouco precisamos que nos troquem as lâmpadas ou que matem nossas
baratas. O desespero diante do desvalor que o cavalheirismo vem ganhando, de
maneira crescente, é o medo diante da conscientização de que em termos dos
meios de nossa subsistência, os homens nos são completamente irrelevantes.
Cavalheirismo,
então, é um conjunto de preceitos morais que recomendam que determinados tipos
de tarefas cabem aos homens na medida estes consideram as mulheres se encontrem
incapazes para seu desempenho. Homens estes que nos impõem favores dos quais
não precisamos e nos outorgam uma dívida que não queremos pagar, mas que
geralmente se traduz em sexo - o que aliás, está implícito também na cultura do
friendzone. Homens decidem, sozinhos,
do que as mulheres gostam, segundo um código pelo qual o sexo não é uma
interação social e afetiva, mas uma troca de favores: e sem nos avisar, nos
envolvem numa transação econômico-simbólica, apenas para nos avisar que, nas
letras miúdas, estava acordado que toda essa gentileza uma hora se converteria
em sexo.
Amei o texto. Lembrei das conversas que tinha com uma amiga, uma senhora de 70 anos. Ela comentava comigo sobre o quanto, na época que ela tinha 20-25 anos, ela sofrera por não aceitar o que ela chamava de 'o prato de comida mais caro do mundo': aquele que ela 'ganharia' de um marido, caso quisesse se casar. Os pesos e medidas são absurdos nisso que chamam de 'cavalheirismo': eu abro a porta do carro e vc fecha a boca, nos diz 'sutilmente' o machismo. Muito bacana esse resgate histórico no texto! Acho que tornar visível os marcadores do - amiúde - naturalizado cavalheirismo é um grande passo para desconstruirmos cada vez mais este sintoma do machismo. :)
ResponderExcluirFantástico. Sempre enxerguei o cavalheirismo como "a paga da prostituta", e era assim mesmo. Tive 2 ex que me pagavam de TUDO - e quando eu dizia a eles que gostaria de dividir a conta, eles diziam: "Ah não, você me paga com bastante beijos depois".
ResponderExcluir"Beijo" sendo, obviamente, metáfora para sexo.
Ou seja: cavalheirismo é pagar pra receber sexo da mulher. E a legitimização da ideia de que toda mulher é uma puta.
Enfim... que merda.