domingo, 30 de junho de 2013

Cavalheirismo e backlash: porque nós sabemos abrir nossas portas - e pernas.



INTRODUÇÃO: backlash à brasileira

A toda ação corresponde uma reação na mesma direção, com mesma força e sentido contrário - é o que nos diz a lei da física. Embora eu não seja uma ardente defensora de aplicar irrestritamente as "leis" da física à experiência humana, muito mais complexa, parece ser o caso da política. Quando me vejo rodeada de tantas reações ao feminismo, algumas debatendo-se num mar de insegurança que leva à incoerência crassa de argumentos, penso que estamos diante de um termômetro, pelo qual podemos avaliar que estamos no caminho certo no enfrentamento contra a hierarquia dos gêneros (misoginia, ou machismo). A necessidade de criar respostas organizadas ao movimento indica que estamos bem das pernas em termos de organização, seja nas ruas, seja nas teorias. E as respostas vêm vindo, nas ruas, nas academias, mas também nas mesas de bar, nos churrascos de família: quando se trata da produção teórica acerca do anti-feminismo, o que valida uma teoria é muito menos o que ela diz, mas quem a está dizendo, e nesse sentido, basta ser homem, e a verdade já lhe é garantida na largada.

A esse "contra-ataque" é que Susan Faludi dá o nome de backlash, em seu livro homônimo. Trata-se de uma resposta ao feminismo que parte de muitas frentes, desde o âmbito individual de homens (em geral cis e heterossexuais) que se sentem ameaçados em seus privilégios diante das conquistas das mulheres* quanto por organizações que vêem seus pilares ideológicos falocêntricos ameaçados. Na sua descrição, a autora traça um panorama bastante parecido com o do Brasil, no parágrafo seguinte:

O avanço mais recente do backlash veio à tona no fim dos anos 70 entre as fileiras da direita evangélica. Já no começo da década de 1980, a ideologia fundamentalista tinha aberto caminho até a Casa Branca. Em meados da  década, uma vez que a resistência contra os direitos da mulher tinha adquirido aceitação política e social, passou-se para a cultura popular

Qualquer semelhança com Marcos Feliciano na CDH ou Estatuto do Nascituro não é coincidência, minha gente. E para citar a Faludi mais uma vez, "O backlash revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-os passar por fatos novos, ignorando qualquer apelo à razão". E para o meu espanto, um dos mitos ressuscitados recentemente e circulantes no facebook é o patético, desgastado e sem sentido "cavalheirismo".

Cavalheirismo e misoginia, na história e na literatura

Em termos literários, o princípio do cavalheirismo surge na Idade Média, ligado a um gênero poético a que comumente chamamos de "canção de amor". Tendo em vista este período histórico como um momento de hegemonia católica nos campos da filosofia, política e cultura, tem-se aqui uma definição de amor segundo a qual a nobreza do sentimento, bem como a do amante, se medem não pelo prazer da conjunção carnal dos indivíduos, mas pelo envolvimento espiritual que pode ser traduzido na forma da paixão - aqui no sentido do sofrimento e do sacrifício. Tendo em vista também a condição de inferioridade econômica, cultural e religiosa da mulher, que vivia um paradigma aristotélico ao ser considerada um "homem incompleto", as canções de amor versavam, geralmente, não sobre os atributos da mulher amada, mas sobre as qualidades do cavalheiro que, em seu sacrifício (a chamada "coita d'amor), aproximava seu espírito do modelo de divindade cristã.

Sendo assim, numa época hegemonizada pelo poder masculino, o código de cavalheirismo se tratava de uma tecnologia de gênero que dividia os corpos de maneira binária de acordo com suas funções reprodutivas, econômicas, éticas e estéticas, de modo a produzir mulheres numa posição subalterna, impedidas de participar cultural e politicamente da sociedade, tornando-se meros adornos que, na qualidade de propriedade masculina, limitavam-se a receber ou não a corte do cavalheiro. Enquanto isso, os homens eram os responsáveis, proprietários que eram do status de "seres humanos completos", por  formular os códigos sociais segundo os quais podiam ser benfeitores e algozes de mulheres que deles dependiam totalmente. Daí que as canções de amor mantenham uma forte intertextualidade com as "canções de escárnio e maldizer", nas quais as mulheres que não se submetiam às convenções da época tinham suas reputações dizimadas, muitas vezes em poemas com citações nominais.

Sendo assim, a "corte" do cavalheirismo, ainda que se oculte sob uma retórica de gentileza e elogio, é um recurso misógino que parte da premissa que homens e mulheres são categorias naturais e eternas do ser humano;  enquanto tal, mulheres serão inerentemente incapazes para um enorme arco de tarefas cabendo ao benfazejo homem ajudar-nos em nossa deficiência.

Cavalheirismo hoje: sabemos abrir nossas próprias portas - e pernas.

O anacronismo está em que a maior parte das mulheres do mundo, ao contrário do que desejam os misóginos, está inserida com sucesso no mercado de trabalho, encontrando maiores dificuldades no machismo alheio do que em qualquer dificuldade pessoal ou, pior ainda, derivada do gênero a que pertencem. Mais do que nunca, não precisamos de que nos abram portas, pois nós temos, com o tempo, aberto-as sozinhas, tampouco precisamos que nos troquem as lâmpadas ou que matem nossas baratas. O desespero diante do desvalor que o cavalheirismo vem ganhando, de maneira crescente, é o medo diante da conscientização de que em termos dos meios de nossa subsistência, os homens nos são completamente irrelevantes.

Cavalheirismo, então, é um conjunto de preceitos morais que recomendam que determinados tipos de tarefas cabem aos homens na medida estes consideram as mulheres se encontrem incapazes para seu desempenho. Homens estes que nos impõem favores dos quais não precisamos e nos outorgam uma dívida que não queremos pagar, mas que geralmente se traduz em sexo - o que aliás, está implícito também na cultura do friendzone. Homens decidem, sozinhos, do que as mulheres gostam, segundo um código pelo qual o sexo não é uma interação social e afetiva, mas uma troca de favores: e sem nos avisar, nos envolvem numa transação econômico-simbólica, apenas para nos avisar que, nas letras miúdas, estava acordado que toda essa gentileza uma hora se converteria em sexo.

2 comentários:

  1. Amei o texto. Lembrei das conversas que tinha com uma amiga, uma senhora de 70 anos. Ela comentava comigo sobre o quanto, na época que ela tinha 20-25 anos, ela sofrera por não aceitar o que ela chamava de 'o prato de comida mais caro do mundo': aquele que ela 'ganharia' de um marido, caso quisesse se casar. Os pesos e medidas são absurdos nisso que chamam de 'cavalheirismo': eu abro a porta do carro e vc fecha a boca, nos diz 'sutilmente' o machismo. Muito bacana esse resgate histórico no texto! Acho que tornar visível os marcadores do - amiúde - naturalizado cavalheirismo é um grande passo para desconstruirmos cada vez mais este sintoma do machismo. :)

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  2. Fantástico. Sempre enxerguei o cavalheirismo como "a paga da prostituta", e era assim mesmo. Tive 2 ex que me pagavam de TUDO - e quando eu dizia a eles que gostaria de dividir a conta, eles diziam: "Ah não, você me paga com bastante beijos depois".

    "Beijo" sendo, obviamente, metáfora para sexo.

    Ou seja: cavalheirismo é pagar pra receber sexo da mulher. E a legitimização da ideia de que toda mulher é uma puta.

    Enfim... que merda.

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