terça-feira, 27 de março de 2012

A quem interessar possa, a lista dos meus defeitos

Por favor não me sigam. Peçam-me conselhos, façam-me perguntas, tenham em mim um caminho, mas por favor, não tenham em mim qualquer destino.
Eu tenho cá, comigo, um mapa muito bom que – assim acredito – está me levando onde eu quero ir. E seria bom se você viesse comigo, pois caminho é coisa que se faz enquanto anda, do contrário, uma estrada é só uma linha no chão. O movimento é o que dá o tom da rota; o mundo gira, mas por si só, não constitui viagem. Então, venha comigo. Mas não me siga.
Meu feminismo não é uma caça às bruxas. Se transformarmos isso num clube de delações, estaremos todos cegos. Surpresa? Cai o pano: eu sou machista! E como não? Se fui criada e militarizada dentro de meu gênero tanto quanto você. E passo de perto tudo o que você sente.

Eu tenho ciúmes.

E tenho medo de morrer.

Não acredito em Deus, mas tenho medo de demônio.

De filme de terror.

Eu choro, às vezes, de noite.

E acendo uma vela: vai que... né?

                Já pedi por favor, não convém pedir desculpas. Não quero sentença, não quero perdão: não quero nenhuma saída cristã para os meus problemas. Talvez um pouco de dialética: se é pelos olhos da opressão que procuro esquadrinhar a saída, talvez não acabe levando algo dela, comigo? É possível. E a liberdade, onde fica? Isso eu não sei: virando uma esquina, depois de uma estrela, talvez...

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dever de casa

Não existe arqueologia da mente. O melhor que pdoemos é olhar para o passado e ser francos sobre o fato de que toda memória é uma narrativa. Toda memória é um pouco inventada. Há grande delete, para muita gente que conheço, em se pensar como algo que se fez ao sabor da vida: a psiquê como algo que flana nas marés da cultura e nas narrativas que tanto nos atravessam quanto nos formatam, e essas narrativas como a conversa despretensiosa que se conta enquanto se descascam as batatas do purê. Aquela conversa de cozinha que vai da meteorologia à existência do divino escalando apenas em um "por favor, pega aquela panela para mim".

Para mim não há muito deleite nisso. Já vieram com a camisa de força discursiva, dizendo que eu tenho um transtorno qualquer de desafio às ordens. Eu tenho mais pé atrás com quem obedece do que com quem desafia, mas devaneios à parte, coisa que mudou minha vida foi Manuel Castells dizer para mim que as identidades são invenções. Desde as identidades nacionais, étnicas e culturais, quanto as individuais. Tente entender que ouvir isso aos 18 anos muda tudo: então eu posso ser o que eu quiser? Então eu posso definitivamente me sentar comigo mesma, no fundo de minha mente, sendo autora - ou ao menos narradora - dos processos que me configuram? Não estou, então, nas benfazejas mãos de uma cultura mãe, mas estou prensada nos dentes de uma cultura máquina? E com meu próprio ser, minha mera existência, já engastalha essas engrenagens todas? Quanto poder e quanta liberdade nessa descoberta.

Também quer dizer que, narradorxs que somos, ativamente, dos processos que nos constituem, não há descanso. Vem-me à cabeça nossa Bouvoir (não sei escrever o nome dela) dizendo que "não se nasce mulher, torna-se", e o fato de que o tornar-se é sempre inacabado. É um devir que, como diria Lacan, não cessa de não se inscrever. É mais constituído da falta do que do próprio constituinte. E quando eu decidi ser feminista, embora isso não tenha uma data que eu possa comemorar (eu faria festas incríveis), percebi que livros feministas não caíam do céu. E que era preciso me engajar no mais longo dever de casa da minha vida: tornar-me feminista, todos os dias, em todos os momentos, sob a pena de ser moída, digerida e eliminada pela máquina que está aí - ou aqui mesmo.

Ninguém disse que ia ser fácil. E desde que saí do armário com as minhas ideologias a me pavonear - porque meu feminismo é bapho, é diva! - todos os dias alguém me pergunta o que pode fazer para deixar de ser machista. Como já escrevi, um ano atrás, sobre o nosso cristianismo, escrevo com igual tranquilidade sobre o machismo: você vai morrer com o seu. Não concordo com quem diz que machismo se restringe apenas à ideia de que "homem>mulher" porque, veja bem, se todas as práticas de nossa cultura são estruturadas por esse pensamento, não basta mudar a ideia e aceitar no seu coração a oração de Saint Simone: o mero ser-quem-você-é e tudo que isso implica já é falocêntrico. Não é algo que habita nossa cabeça, mas algo que nos constitui, e nesse caso, repetindo a metáfora, seu machismo é um fungo, e fungo não tem cabeça. Ele não tem uma parte vital que, eliminada, faça o resto desaparecer. Ser-se é reproduzir a opressão e ponto: e só vai mudar se você, além de mudar de ideia, trabalhar a fundo para mudar as suas práticas.

Viajando nos tumblrs da vida, encontrei um material que pode ser um bom dever de casa para quem está nessa vibe de abandonar suas práticas opressivas. Como disse minha amiga no post anterior, de fato nós, ativistas, no maior das vezes nos dirigimos ao oprimido, mas pouco ao opressor. No meu caso, é um misto de despreparo e comodismo. Estou aqui sentadinha na poltrona do que "eu já sei fazer, e faço bem". E esse materialzinho gringo veio a calhar - não me lembro do nome do coletivo que produziu, o que é uma pena, mas veio do http://bigfatfeminist.tumblr.com/, tumblr que eu sigo e me diverte, além de me ajudar.

Então, vocês que se acham meninos, esse dever de casa é para vocês. É para imprimir e levar no bolso, colar no espelho do banheiro, e tudo mais.

Algumas dicas interessantes para homens desafiarem os privilégios de seu gênero.

1)     Reaja quando ouvir piadinhas sexistas, como piadas de loura-burra ou piadinhas sobre estupro.
2)     Evite palavras que tornem o gênero feminino algo negativo, como vadia, piranha, galinha, mulherzinha.
3)     Reconheça quando você “dá uma viajada” enquanto mulheres estão falando. Reconheça quando você dá mais valor à opinião de um homem meramente por ele ser homem. Reconheça que você consulta outros homens em momento de dúvida, e que nesses momentos você poderia consultar uma mulher, e simplesmente não o faz.
4)     Reconheça os momentos em que você “dá uma viajada” enquanto ouve uma mulher por estar sexualizando seu corpo.
5)     Em atividades de grupo (seminários, plenárias), tome para si tarefas tais como xerocar, tomar anotações, fazer ligações telefônicas, providenciar creche; engaje-se em atividades tipicamente atribuídas à mulher. Encoraje mulheres a tomarem posições geralmente ocupadas por homens, tais como liderar encontros e atividades, atuar como figura pública.
6)     Procure usar palavras neutras em gênero (criança, pessoa, gente) ou incluir todos os gêneros em seu discurso – ou pelo menos dois, “trabalhadores e trabalhadoras”, por exemplo.
7)     Não diga a uma mulher como ela deve entender, expressar ou conceituar experiências de discriminação e sexismo.
8)     Se uma mulher se ofender com alguma de suas atitudes ou palavras, não argumente de imediato: ouça-a. Se ela não aceitar suas desculpas, reconheça que ela não te deve desculpas. Ela não te deve nada.
9)     Cheque regularmente com sua parceira se ela está confortável, realizada e empoderada em sua intimidade.
10)  Não faça piadinhas sexistas sobre como ela te arrasta para atividades de mulherzinha, te força a sair e fazer compras, ou está irritável por conta da menstruação e/ou TPM. Confronte quem faz essas piadas. Não faça o papel do “cavalheiro sacrificado que pacientemente agüenta as frivolidades de carregar as compras da companheira”.
11)  Seja educado, atencioso e dedicado para com mulheres, não porque sejam frágeis, débeis e incompletas, mas, pelo contrário, porque são seres humanos inteiros, plenos e capazes, que merecem tanto respeito quanto qualquer outro.
12)  Quando uma mulher estiver executando uma tarefa, evite abordá-la e “ensiná-la a fazer o seu trabalho”. Claro que, se ela solicitar sua ajuda, você pode (e deve) interferir. Do contrário, simplesmente observe e aprenda que mulheres são tão perfeitamente capazes quanto você.
13)  Desculpe-se assim que perceber que ofendeu alguém, quer a pessoa expresse isso, quer não. Diga com franqueza: “desculpas por ter dito isso, reconheço que eu estava errado e vou tentar não fazer isso daqui por diante”.
14)  Não use expressões tais como “aja como um homem”, “crie colhões”, “homem de verdade” ou “pare de ser uma mulherzinha”.
15)  Rejeite ou critique mídia e entretenimento que promovam sexismo. Não seja complacente com sexismo e discriminação só porque “ah, mas no final o filme foi bom”.
16)   Não se ofenda caso uma mulher recuse sua ajuda. Ainda que você tenha genuinamente tentado ser um cara legal, se oferecendo para carregar objetos pesados ou segurando uma porta para ela passar, aceite que talvez ela não esteja precisando da sua ajuda. Procure não achá-la metida, convencida, arrogante: pense nela como alguém independente e corajosa.
17)   Reconheça: pode até haver mulheres que odeiam homens (misândricas), o que é uma discriminação. Porém, são casos isolados, enquanto o sexismo contra mulheres é forjado por séculos de literatura, discurso científico, poder/conhecimento, filosofia, representações midiáticas, senso comum, etc.
18)  Reconheça que certas representações da mulher que você pode achar positivas ou justas podem não estar nos ajudando. Observe que a maior parte dessas representações positivas são altamente sexualizadas, para poder apelar ao público masculino. (Exemplo clássico: super-heroínas).
19)   Entenda que certas conquistas supostamente definitivas do nosso gênero (termos uma opinião, podermos falar de nossos pensamentos livremente, que podemos estar em qualquer espaço que desejarmos, de que podemos nos tornar aquilo que sonharmos) são conquistas duras e diárias para milhares de mulheres, e não concessões amplas ao nosso gênero.
20)  Não fique se explicando com frases tais como “eu não estava querendo dizer nada com isso”, “foi só uma piada, você está exagerando”, “eu não sou sexista, sou amigo de várias mulheres”. Se você ofendeu uma mulher, ouça com atenção e aprenda com essa experiência.
21)  Não policie o corpo de uma mulher, dizendo “você não deveria usar tal ou tal maquiagem”, “essa calça faz você parecer cagada”, “você está vestida como uma piranha,será tratada como uma”.

domingo, 18 de março de 2012

Reflexões buscando um pouco mais de estratégia...

Eu venho, nesses meus caminhos de militância, buscando criar estrategias que me pareçam além de adequadas, eficazes para chegar onde eu desejo: um mundo livre de opressões! Um mundo livre de TODOS os tipos, formas e qualidades de opressões.

Bom, todxs sabem que a fórmula básica para que uma opressão ocorra é aquela em que tem alguém oprimindo, e tirando vantagem dessa opressão (seja qual for o tipo de vantagem tirado), e alguém que é oprimido e, portanto prejudicado (seja qual for o tipo de prejuízo) ao sofrer essa opressão. Ok. Aí começam alguns problemas. Colocar todas as formas de opressão assim num mesmo saco é dizer que elas são iguais e equivalentes entre si, o que, ao meu ver, não é verdade. Eu consigo entender que elas tem todas a mesma estrutura tipológica e sejam “validadas” pelos mesmos princípios culturais, mas são bastante diferentes em suas subjetividades, e colocá-las num mesmo saco seria ignorar essas subjetividades.

Sempre me incomodou um pouco (e de uns tempos pra cá tem me incomodado muito) o fato dos movimentos sociais como um todo trabalharem basicamente voltados para xs oprimidxs, dialogando quase que exclusivamente com xs oprimidxs. Eles entoam discursos de união, de fortalecimento, de entendimento da própria opressão. Não que eu considere isso ruim ou inútil. De forma alguma, acho inclusive muito importante! Principalmente porque grandes partes das opressões que vemos e vivemos hoje em dia, são veladas. O capitalismo com sua retórica do marketing andou se apropriando e desvirtuando a porra toda. Instrumentos de tortura e opressão são vendidos em todas as esquinas e as pessoas compram e aplicam em si mesmas, achando que tudo aquilo é lindo e maravilhoso. Então é CLARO, ÓBVIO E NOTÓRIO que é importante o trabalho de CONSCIENTIZAÇÃO dxs oprimidxs frente a essa condição.

No entanto, algo que eu observo é que a reação imediata de qualquer pessoa que sofre uma opressão e a entende como tal é a de oprimir o primeiro ser “mais fraco” que surgir a sua frente. E aí reside o ponto exato onde eu queria chegar.

Em algum momento, é preciso exterminar a cultura de opressão como um todo. E isso vai muito além de simplesmente convencer x oprimidx a lutar contra sua opressão. Isso passa também em convencer x opressor de sua prática opressiva e do caráter vil, monstruoso (não encontro um adjetivo decente!!) de tal prática. E quando eu digo “convencer x opressor” eu também incluo xs oprimidxs que almejam ser opressorxs.

Se não formos, em momento nenhum, capazes de acabar com essa cultura de opressão como um todo, me parece impossível um mundo livre de fato de tais práticas. Afinal, terá sempre alguém almejando subir novamente ao trono.

Um exemplo bom pra ilustrar creio que seja referente ao especismo. É simplesmente impossível convencer os animais não-humanos de sua exploração. Ninguém vai invadir uma fazenda, chegar pra uma vaquinha que lá é explorada e dizer “ô Mimosa, tu tá sendo explorada... acho melhor você reagir... junta a galera e faz uma greve aí, parem de dar leite... sei lá”. Tanto que um jargão comum entre os que defendem direitos dos animais é “ser a voz daqueles que não tem voz”. O nosso papel é justamente fazer as pessoas entenderem o caráter opressor delas em relação aos não-humanos, e a libertação deles depende única e exclusivamente das pessoas se entenderem enquanto opressores!

E é esse conceito que eu desejo ardentemente expandir! A reflexão diária não pode parar no “aqui eu sou oprimidx, parem de me oprimir!”. Ela tem que ir além, ela tem que passar pelo questionamento “será que eu também não estou explorando e oprimindo?”.

E aí, todx vegetarianx que se preza já ouvir aquela frase “que coisa chata... se você não quer comer carne tudo bem, mas respeita quem quer”. E quem vai respeitar o animal que jaz morto no seu prato? Quando ouço isso tenho vontade de responder “se você não gosta de estuprar tudo bem, mas deixa quem gosta estuprar em paz!”.

É muito fácil se rebelar contra aquela opressão que a gente sente na pele, afinal ela tá ali te atacando diariamente, te machucando e te incomodando. O difícil é abrir mão dos privilégios e prazeres que ser opressor traz. Essa reflexão é difícil tanto sob esse aspecto, de abrir não de privilégios e prazeres quanto pelo aspecto de entender a subjetividade do outro.

Um dia deses, numa conversa com minha companheira de blog, ela falou algo relacionando a luta pelos direitos animais e feminismos que me chamou atenção. Ela disse justamente o que parece óbvio, os animais não respondem. Nós, humanos, pensamos a opressão deles, a entendemos enquanto tal e criamos estratégias para libertá-los. Mas tudo isso obviamente é criação nossa. Talvez eles achassem que deveria ser tomado um caminho diferente. Infelizmente isso nós nunca saberemos de fato. Já no caso das mulheres não, elas respondem. Então quando os homens dizem que entendem a opressão feminina e buscam criar mecanismos para supostamente libertá-las, pode alguma descabelada gritar lá no meio da multidão “ô cara, isso aí não me contempla não!”...

Pra se entender como opressor de verdade, é preciso se colocar no lugar do outro de forma muito mais intensa do que sonha a nossa vã filosofia. É preciso entrar na subjetividade do outro!

Cada indivíduo é único, teve vivências e experiências que são únicas e, portanto cada visão de mundo é única, é subjetiva e é parcial. Pra entender como eu me sinto oprimida pelo machismo, é preciso entrar na minha subjetividade, é preciso conhecer minhas história de vida, minhas vivências e experiências. A forma como eu me sinto, claro, encontra eco em muitas outras formas de sentir. Mas ela é única.

O que eu gostaria de encontrar mais pelo mundo é justamente esse tipo de exercício de reflexão. Quando alguém lhe aponta o dedo na cara e diz que essa sua prática é opressiva, ao invés de entrar na defensiva e assumir que tudo o que vem daquele ser que lhe aponta o dedo é lixo, pare um pouco, escute... escute com atenção! Saia da sua zona de conforto. Aprenda a sentir o sentimento que existe por traz daquele dedo e daquelas palavras.

Eu tô cansada de revoluções feitas com gritos e armas. Eu já fiquei rouca e já cansei de ser engolida por pessoas trocando tiros a esmo pra ocupar o trono que ficou vazio. Eu quero quebrar aquela cadeira dourada de uma vez por todas, e eu quero a ajuda de todxs pra fazer isso.

Oprimir é ruim simplesmente porque ninguém gosta de se sentir oprimido, não importa a opressão que seja, ela é sempre ruim. Sinceramente, não acho que seja assim tão difícil de entender isso...

quinta-feira, 8 de março de 2012

Aborto para quem precisa. E quem precisa?


              Antes de tudo, eu fiz um aborto. Digo antes porque, para mim, antes de tomar para mim mesma o feminismo como uma tarefa, minha vida me parecia um grande preâmbulo. E não por acaso.
              Há um sexólogo (acho que ele é...) chamado John Gagnon. Pouco conhecido, o sujeito, ele acabou mudando a minha vida ao final de 2010. Não era uma grande novidade, o que ele dizia: as práticas sexuais são culturalmente conotadas. Trocando em miúdos, a gente aprende a trepar. Com os filmes pornô, certamente, mas também com novelas, filmes, revistas e outras mídias, que não necessariamente explicitam sexo, mas que são extremamente (senão mais) pedagógicas ao sugeri-lo, insinuá-lo. Outra coisa dita por ele é que o processo que desenvolve cultural e historicamente as performances sexuais foram histórica e culturalmente dirigidas pelo nosso querido grande falo – dourado, grande e voador – com quem já estamos mais que familiarizadxs. O que resulta disso é que muitas mulheres, e não só as heterossexuais, digo logo, experimentam sua própria sexualidade, seu próprio desejo, através de um olhar masculino.
            Ter meus seios tocados dá prazer a mim ou a ele? Ou a quem assiste? Será que eu realmente prefiro sexo oral sem camisinha, ou alguém me disse e eu acabei, inadvertidamente, abraçando essa causa? E, quando a gente não gosta de uma coisinha ou outra, acaba desenvolvendo escapismos, como “vai ver o problema é comigo”. Porque, afinal, se todo o mundo gosta, você é um inteiro, complexo freakshow. E você simplesmente não quer ser um freakshow.
             E era assim que eu vivia a minha vida sexual: inquestionável. As angústias, as ideologias, eu trancava do lado de fora do quarto. Afinal, na cama vale tudo – não é o que nos dizem? Vamos tentar fazer sem camisinha hoje, afinal, se eu não tenho o prazer que gostaria de ter, que ele tenha, ao menos! Porque – bem lembrado! – havia um Ele em torno de quem minha vida gravitava. Porque eu, Eva que era, via-me pedaço deslocado de um ente mágico e difícil de encontrar, a quem costumamos chamar “meu grande amor”. E eu, tão pequena, feia e gorda, deveria sorver o esperma como a unção sagrada de um verdadeiro milagre: eu o encontrara! Ele estava ali, comigo, em minha cama, ofertando-me seu sexo. Inegável oferenda.
              Acredito, em primeiro lugar, que nenhuma mulher tenha o aborto como perspectiva de vida, como método contraceptivo. Não concebo, por não achar possível, alguém dizer “tudo bem, amor, qualquer coisa a gente aborta”. Não há nenhum motivo para eu escrever meu relato: catarse, já a fiz, e quanto a assustar as mulheres, não é necessário. Eu sobrevivi porque paguei. Diga-se de passagem, paguei mais com meu corpo do que com aqueles 800 reais, dados na mão de uma secretária que sorria. “Tudo bem?”, ela perguntou, anotando meus dados com certa distração. “Seu nome se escreve com S ou com Z?”, e continuava escrevendo. Foram muitas salas e antessalas, câmaras e antecâmaras, até acordar com muito frio em uma maca. A enfermeira disse que eu estava bem, eu saí andando com minhas próprias pernas, fui para casa de ônibus. O dia seguinte era 07 de setembro.
                Não doeu. Desde então, contudo, palmilhando o solo de um feminismo muito embrionário e confuso, eu comecei, apenas comecei, a pensar sobre o que estava fazendo com meu corpo. Quantas pessoas ainda atravessariam meu interior como completos estrangeiros a passar férias em um país tropical. Extraindo de mim seu prazer, meu dinheiro, perscrutando meu interior, e abandonando seu lixo dentro de mim. Fazendo da minha paixão, ou da minha lascívia, motivo para dizer “tem como ser sem camisinha, só hoje?”. E eu me dei conta, tristemente, de que para nós, mulheres, o aborto se configura como a saída de emergência para um prédio em chamas: dependendo do andar, muitas de nós acabamos nos jogando pela janela. Mas para os homens, para muitos deles, o aborto figura em um horizonte muito próximo. Porque afinal, ela também não queria a camisinha. Porque no final, “ela gostou”.
                Cada um de nós, creio eu, coleciona seus próprios medos. E faz deles os mais incríveis e prodigiosos usos: nunca conheci alguém que não se apegasse aos seus. Alguns, sob a alegação de que superá-los adicionaria algo a seus caráteres: o desafio, a superação, a conquista, a força... Outros, para obter atenção, desbragadamente: pessoas que cuidam e envernizam seus medos como uma fonte preciosa de afeto. Quanto a mim, sou parte dessa cultura, dessa sociedade, deste mundo. Acho que compreendê-los faz parte de compreender a todas as estruturas que fazem de mim quem eu sou. Três frases hoje são as que me liquefazem de medo: “ela deixou”, “ela gostou”, “ela queria”. Fico pensando em todos os parceiros graduados em Nelson Rodrigues e Chico Buarque, que, sob essas alegações, me machu-caram. Não eram machucados no meu corpo, mas eram abertos atentados contra o meu gênero, contra o gênero em que eles me queriam ou faziam estar. Falar em “ela queria” pressupõe um desejo original, de um indivíduo intocado pela cultura, pela sociedade, pelo capitalismo. Falar em “ela queria” é supor uma mulher cujo único prazer é dar prazer ao homem. Falar em “ela queria”, em suma, é falar: “eu quis”.
                Ainda assim, defendo a legalização do aborto. Porém, a quem perguntar o que eu desejo, eu posso responder: um mundo em que nenhuma de nós tenha de abortar.