Antes de tudo, eu fiz um aborto. Digo antes porque, para mim, antes de tomar para mim mesma o feminismo como uma tarefa, minha vida me parecia um grande preâmbulo. E não por acaso.
Há um sexólogo (acho que ele é...) chamado John Gagnon. Pouco conhecido, o sujeito, ele acabou mudando a minha vida ao final de 2010. Não era uma grande novidade, o que ele dizia: as práticas sexuais são culturalmente conotadas. Trocando em miúdos, a gente aprende a trepar. Com os filmes pornô, certamente, mas também com novelas, filmes, revistas e outras mídias, que não necessariamente explicitam sexo, mas que são extremamente (senão mais) pedagógicas ao sugeri-lo, insinuá-lo. Outra coisa dita por ele é que o processo que desenvolve cultural e historicamente as performances sexuais foram histórica e culturalmente dirigidas pelo nosso querido grande falo – dourado, grande e voador – com quem já estamos mais que familiarizadxs. O que resulta disso é que muitas mulheres, e não só as heterossexuais, digo logo, experimentam sua própria sexualidade, seu próprio desejo, através de um olhar masculino.
Ter meus seios tocados dá prazer a mim ou a ele? Ou a quem assiste? Será que eu realmente prefiro sexo oral sem camisinha, ou alguém me disse e eu acabei, inadvertidamente, abraçando essa causa? E, quando a gente não gosta de uma coisinha ou outra, acaba desenvolvendo escapismos, como “vai ver o problema é comigo”. Porque, afinal, se todo o mundo gosta, você é um inteiro, complexo freakshow. E você simplesmente não quer ser um freakshow.
E era assim que eu vivia a minha vida sexual: inquestionável. As angústias, as ideologias, eu trancava do lado de fora do quarto. Afinal, na cama vale tudo – não é o que nos dizem? Vamos tentar fazer sem camisinha hoje, afinal, se eu não tenho o prazer que gostaria de ter, que ele tenha, ao menos! Porque – bem lembrado! – havia um Ele em torno de quem minha vida gravitava. Porque eu, Eva que era, via-me pedaço deslocado de um ente mágico e difícil de encontrar, a quem costumamos chamar “meu grande amor”. E eu, tão pequena, feia e gorda, deveria sorver o esperma como a unção sagrada de um verdadeiro milagre: eu o encontrara! Ele estava ali, comigo, em minha cama, ofertando-me seu sexo. Inegável oferenda.
Acredito, em primeiro lugar, que nenhuma mulher tenha o aborto como perspectiva de vida, como método contraceptivo. Não concebo, por não achar possível, alguém dizer “tudo bem, amor, qualquer coisa a gente aborta”. Não há nenhum motivo para eu escrever meu relato: catarse, já a fiz, e quanto a assustar as mulheres, não é necessário. Eu sobrevivi porque paguei. Diga-se de passagem, paguei mais com meu corpo do que com aqueles 800 reais, dados na mão de uma secretária que sorria. “Tudo bem?”, ela perguntou, anotando meus dados com certa distração. “Seu nome se escreve com S ou com Z?”, e continuava escrevendo. Foram muitas salas e antessalas, câmaras e antecâmaras, até acordar com muito frio em uma maca. A enfermeira disse que eu estava bem, eu saí andando com minhas próprias pernas, fui para casa de ônibus. O dia seguinte era 07 de setembro.
Não doeu. Desde então, contudo, palmilhando o solo de um feminismo muito embrionário e confuso, eu comecei, apenas comecei, a pensar sobre o que estava fazendo com meu corpo. Quantas pessoas ainda atravessariam meu interior como completos estrangeiros a passar férias em um país tropical. Extraindo de mim seu prazer, meu dinheiro, perscrutando meu interior, e abandonando seu lixo dentro de mim. Fazendo da minha paixão, ou da minha lascívia, motivo para dizer “tem como ser sem camisinha, só hoje?”. E eu me dei conta, tristemente, de que para nós, mulheres, o aborto se configura como a saída de emergência para um prédio em chamas: dependendo do andar, muitas de nós acabamos nos jogando pela janela. Mas para os homens, para muitos deles, o aborto figura em um horizonte muito próximo. Porque afinal, ela também não queria a camisinha. Porque no final, “ela gostou”.
Cada um de nós, creio eu, coleciona seus próprios medos. E faz deles os mais incríveis e prodigiosos usos: nunca conheci alguém que não se apegasse aos seus. Alguns, sob a alegação de que superá-los adicionaria algo a seus caráteres: o desafio, a superação, a conquista, a força... Outros, para obter atenção, desbragadamente: pessoas que cuidam e envernizam seus medos como uma fonte preciosa de afeto. Quanto a mim, sou parte dessa cultura, dessa sociedade, deste mundo. Acho que compreendê-los faz parte de compreender a todas as estruturas que fazem de mim quem eu sou. Três frases hoje são as que me liquefazem de medo: “ela deixou”, “ela gostou”, “ela queria”. Fico pensando em todos os parceiros graduados em Nelson Rodrigues e Chico Buarque, que, sob essas alegações, me machu-caram. Não eram machucados no meu corpo, mas eram abertos atentados contra o meu gênero, contra o gênero em que eles me queriam ou faziam estar. Falar em “ela queria” pressupõe um desejo original, de um indivíduo intocado pela cultura, pela sociedade, pelo capitalismo. Falar em “ela queria” é supor uma mulher cujo único prazer é dar prazer ao homem. Falar em “ela queria”, em suma, é falar: “eu quis”.
Ainda assim, defendo a legalização do aborto. Porém, a quem perguntar o que eu desejo, eu posso responder: um mundo em que nenhuma de nós tenha de abortar.
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