Por que as pessoas ainda falam
sobre o FEMEN me é um completo mistério. Um grupo que se diz feminista e
homenageia Margareth Thatcher por suas políticas neoliberais, ou ainda Hugh
Heffman, criador da revista playboy, como um ferrenho partidário da emancipação
da mulher, já deveria ser visto como desconfiança. Aliás, grupos que falem
indistintamente em “emancipação da mulher” como se se tratasse de um grupo política,
étnica, cultural e economicamente homogêneo que tivesse no horizonte uma solução
unívoca para os seus problemas, devem ser encarados com um pezinho atrás,
SEMPRE. Por fim, estou até pasma pelo fato de haver ativistas gordinhas entre
as “louraças” da organização, visto que até pouco tempo atrás, magreza, lourice
e branquitude eram pré-requisitos sem os quais não se poderia aderir à
organização. Enfim, como eu disse: procurar sentido no FEMEN é pra quem tem
muito boa vontade ou muito tempo livre, e eu não disponho de uma ou outra
coisa.
O que importa é que recentemente,
a organização fez um protesto pela “liberação das mulheres muçulmanas”,
criticando o véu entre outros aspectos da cultura islâmica – o que aliás, é uma
grosseria teórica, visto que islamismo não é sinônimo de muçulmano, e por aí
vai. Como é de praxe, o FEMEN gera muito mais impacto negativo que positivo,
pipocando instantaneamente, e nos dias conseguintes, ferrenhas críticas à
postura colonialista e racista das moças e apoios incondicionais ao uso do véu.
Para tanto, gostaria de tecer algumas considerações.
Não sei muita coisa sobre o
assunto “véu”. O único caso que conheço de país islâmico onde o véu é obrigatório
é o Irã, caso que conheci por um único livro, o
Persépolis. Trata-se de uma autobiografia de uma menina que, por
volta dos 7 anos, encontra-se no país quando acontece a “revolução” islâmica
que leva Aiatolá
Khomeini ao poder, juntamente a um grupo
religioso radical. Marjani, que era apenas uma criança, vivera até então da
maneira como a maior parte de nós “ocidentais” vive: estudava numa escola
mista, vestia-se com roupas como as nossas, até que, após a chegada dos
religiosos ao poder, o uso do véu se torna obrigatório, homossexuais passam a
ser perseguidos, e sob a pena de as “mulheres” serem taxadas de imorais e
sofrerem perseguições por isso, os casamentos voltam a ser arranjados pela família
e, se não me engano, o divórcio se torna ilegal (essa parte do livro eu não
lembro, posso estar errada, confiram aí por mim!). O Irã era um país laico,
portanto, até 1979, e o uso do véu como obrigação do Estado, antes disso, era
impensável. Também o Afeganistão era um país laico até a chegada do grupo Talibã
ao poder e, da mesma forma, só então o véu passa a ser uma obrigação legal. Quanto
à Marjani, só pra constar, não vive mais no Irã.
Isso serve para pensarmos a
maneira como o ocidente pensa o “oriente”: é o que Edward Said chama de
orientalismo, e que Stuart Hall aborda em Da
diáspora e Identidades culturais na pós-modernidade.
Em geral, o ocidente capitalista tende a tratar “O Oriente” como um grande ente
exótico e homogêneo, culturalmente insular, tão externo e alheio a nós que
caberia a nós, ocidentais, apenas a alteridade completa, a admiração. Daí
surgem alguns fetichismos que resumem culturas diversas e complexas a um
conjunto de signos convenientes à leitura ocidental, como reduzir a cultura islâmica
ao véu, ou a cultura indiana ao politeísmo, como se as culturas não-ocidentais
fossem um reservatório de tradição pura e sempre igual a si mesma ao longo do
tempo, como se se pudesse traçar uma linha reta partindo do presente ao seu
passado mais recôndito, como se as culturas não-ocidentais encontrassem-se
todas em um estado original, cristalizado e puro. Isto se realiza, por
exemplo, na leitura liberal do hinduísmo, que coloca este conjunto de crenças
num estado de “verdade” e de “proximidade com Deus”, ou na leitura de que as
tribos autóctones, por disporem de um modo de vida que agride menos o ambiente
onde se encontram, quase não dispõem de cultura, vivendo num estado quase
natural. Opondo-se a esse oriente místico, logo, temos um ocidente caótico
marcado pela distância entre homem (sic) e natureza, tanto quanto pela distância
entre homem (sic) e Deus, construindo-se duplamente um ocidente homogêneo,
capitalista, marcado pelo desequilíbrio e relações de poder, em oposição a um Oriente
pacífico, estável, e cujas culturas não apresentam tensões ou relações de poder
em seu interior.
A utilidade dessas teorias, pois,
não é pensar o Oriente, mas pensar como o Ocidente constrói o Oriente
discursivamente a partir de relações de poder, quais são e para que servem
essas apropriações discursivas, por parte do capitalismo. Por que é tão
importante, para nós, falar do véu? Acredito que falar do véu tenha, em oposição
ao que postula o senso comum, uma importância muito maior na veiculação de idéias
às mulheres ocidentais do que
propriamente um embate cultural com outros países.
Em primeiro lugar, em sua maioria, os discursos anti-femen
e pró-véu trabalham com “mulheres” como uma categoria biológica. É muito
precipitado dizer que há mulheres em outras culturas, exatamente porque a
categoria mulher é uma assinalação biopolítica atribuída a um corpo que, a
partir de uma série de dispositivos culturais
de assujeitamento e subjetivação, têm como horizonte a produção de corpos dóceis
capazes de se engajar em atividades sexuais, laborais, reprodutivas, estéticas,
etc etc. A categoria mulher (cis, no caso), na acepção que luto para afirmar, é,
pois, uma produção cultural muito específica, e que não necessariamente
aparecerá em todos os arranjos sociais entre seres-humanos. Formular frases
como “as mulheres dos países islâmicos” pode, pois, ter duas acepções possíveis:
1) que existam pessoas com vaginas nos países islâmicos, donde se conclui que
sua concepção acerca de gênero está vinculada a um discurso médico
profundamente reacionário que pressupõe a opressão de gênero como algo que
tenha suas origens na biologia e, que como dado do Real, é imutável; 2) você
concebe que, mesmo em outra cultura, ainda existe uma relação de poder tal que
a sociedade seja radicalmente dividida entre os seres dotados de pênis e seres
dotados de vaginas (intersexuais, por exemplo, estão automaticamente excluídxs),
e que mediante seu papel reprodutor, laboral, sexual, estético, etc etc, os
seres humanos desse lugar são subjetivados como mulheres. E nesse segundo caso,
não há maneira de negar que homens e mulheres vivam numa situação de
desigualdade e que o avesso desse binário sejam corpos condenados à abjeção.
Algo que Hall, negro e jamaicano,
frisa sobre o exotismo atribuído pelo Ocidente ao resto do mundo, é o fato de
que todas as culturas e tradições são frutos de tensões, de assimetrias no
poder, de disputas políticas, de modo
que não se pode falar em tradição como algo que remonta ao passado, retirando
daí sua legitimidade, mas algo que diz respeito a um conjunto de narrativas sobre o passado, leituras,
apropriações e deslocamentos de hábitos e costumes, que têm por meta tanto a
coesão social de um grupo, como a manutenção (ou contestação, dependendo do
caso) das relações estabelecidas no interior desse grupo. Defender o véu sob a
premissa de que “é uma tradição” não tem por objetivo qualquer relação com o véu,
mas defender que são as tradições, ou seja, a persistência no tempo, que levam
um hábito a atingir o status de legítimo. Defender o véu, repito, é defender o
discurso da tradição como aquilo que se perpetua no tempo por alguma espécie de
utilidade, de legitimidade ou de força, e que o fato de um hábito ou objeto “atravessar
o tempo” é motivo suficiente para que o deixemos como está.
Não existem, por isso, culturas
puras, já que a cultura é sempre fruto de deslocamentos e negociações internas.
Além disso, estamos falando de um capitalismo integrado por meios de comunicação
de rede e de massa, pelo fluxo de mercadorias, pessoas e signos, de apropriações
e ressignificações. Estamos falando de burkas fabricadas na China, de
muçulmanos que comem hambúrguer e ouvem Britney Spears. Num contexto de tantas
mudanças, por quê é o corpo da “mulher” o lócus tão privilegiado da manutenção
das tradições? Por outro lado, por quê é o véu a tradição privilegiada da crítica
liberal?
Quanto à primeira pergunta, cabe às
mulheres de lá responder, e não a mim. Quanto à segunda, eu tenho um palpite.
Num momento histórico em que há uma bancada religiosa que se coloca no Estado
como representantes de suas crenças, e não como empregados da máquina estatal
(não que eu concorde com a democracia burguesa, vejam bem), é muito importante
veicular mensagens tais como “o uso de véus não é uma opressão”, ou “o
apedrejamento de mulheres adúlteras e homossexuais não é um problema, mas outra
cultura que devemos respeitar”, ou ainda “uma mulher que afirma ter sido
estuprada deve levar 100 chibatadas e casar com seu estuprador”. Porque estamos
falando de pessoas que defendem uma “jesuscracia” que adorariam ser vistos
apenas como uma cultura, um inocente e trivial arranjo de seres-humanos que não
se pauta em relações vívidas de poder mas em tradições puras, legítimas e
cristalizadas, que não cabe criticar, mas admirar em sua plena “outridade”.