A monogamia carcerária, aquela em que a esposa zelosa estava restrita pelo pudor das cercas vivas dos jardins, foi sacudida pelas ondas do feminismo: mas daninha que é, a cerca do jardim não tardou em crescer novamente, senão mais forte, muito mais sedutora. A cada sistema de produção coube um machismo adequado às suas demandas econômicas e simbólicas, nos marcos da tecnologia de cada uma das sociedades em que se apresentou. No mundo ocidental, aquele machismo rural e medievo da castidade e do pudor, que encarcerava não só o corpo da mulher como também a imagem desse corpo, foi substituído por um machismo capitalista que transformou esse mesmo corpo numa mercadoria fragmentada – da mesma maneira, aliás, que fragmenta a vaca: vendem-se nossos peitos, nossas bundas, nossas silhuetas, nossas vozes. E descarta-se o nosso cérebro.
Ainda não entendemos plenamente o poder da palavra, posto ainda não entendermos o ser humano como aquilo que se faz além (mas também) da carne. O machismo nem sempre mata com as próprias mãos, sendo inclusive perito em terceirizar a violência para que a mulher pratique-a sobre si mesma. E assim segue o machismo, garboso, o colarinho branco, impecável. Quando uma menina de 14 anos submete seu organismo a jornadas de 3 a 4 dias de fome; quando essa menina submete o próprio corpo a uma dieta de desnutrição para obter o “corpo correto”; quando a menina negra gasta o salário dos pais com formol e outros venenos para que seus cabelos balancem ao vento; quando a mulher, sob pressão do parceiro, abdica da camisinha e morre anos mais tarde de câncer no colo do útero são apenas os exemplos grosseiros de como o machismo não precisa acorrentar a mulher à cozinha para continuar a matá-la. Sem contar a morte subjetiva, silenciosa e diária, de não sabermos se esta rua é realmente segura, de não podermos voltar tarde para casa, de não podermos andar com uma roupa que nos agrada com medo de que a nossa simples existência convide um pervertido ao estupro.
Aliás, a imagem que se vende da mulher não é meramente o retrato do corpo, mas a imagem simbólica: a figura da mulher é um acumulador de significados, é a sede da moral, tanto enquanto exemplo positivo quanto exemplo negativo de conduta. Não só o corpo da mulher diz respeito a toda sociedade – todos se sentem à vontade para dizer que você está gorda, mal vestida, ou magra e bonita – como sua própria vida: seus amores, seus amantes, seu sexo. Se ela bebe, se ela fuma, se ela se senta com as pernas bem abertas, as línguas não param de bater, as portas da vizinhança se fecham, os rostos antes amigos não tardam a virar-se, olhar para o outro lado, cercando a mulher de uma invisibilidade que a marginaliza, e é com medo dessa marginalidade que muitas deixam de viver a plenitude de sua subjetividade, fazendo sexo, bebendo, fumando, e andando com as roupas que desejam andar.
Com as famosas a situação só se agrava, e o caso de Amy Winehouse não foi diferente. Quando um entusiasta da música bradou para mim que Amy era a nova Janis Joplin, corri para a internet para conhecê-la. Não achei nada demais: uma boa voz, é verdade, numa menina bonita para os padrões capitalistas, e uma música engraçadinha sobre recusar a tratar o vício pelas drogas. Mas meu amigo insistia: ela não é a nova Janis apenas pela “voz negra numa garota branca”, mas pela atitude! Ela usa drogas, causa escândalo por onde passa, she doesn’t give a shit.
Não tardou muito mesmo para que os escândalos começassem. Primeiro, as brigas homéricas com marido: pipocava de todos os lados o rosto inchado, os olhos comprimidos pelas bochechas, e o galanteador em questão completamente fatiado pelas unhas da menina. Estavam todos consternados: ele era o vilão; era por ele que Amy dizia com tanta veemência “no, no, no” para sua rehab. A história de amor redimia a cantora, que no final das contas, pobrezinha!, era apenas a vítima de um crápula que se aproveitava de seu coraçãozinho feminino.
A história, é claro, uma hora encheu o saco, e Amy ausentou-se brevemente do mundo papparazzo até que a questão das drogas fosse seu novo holofote. Agora, não era mais a pobre menina seduzida por um par de olhos azuis: era simplesmente a vagabunda, inconseqüente, viciada. Quando se trata dos narcóticos, a vítima é sempre culpada pelo vício, o que é tão absurdo quanto dizer que a mulher é culpada pelo estupro que sofreu. As imagens da decadência de Amy estavam por todo lugar, os carniceiros de plantão fizeram suas apostas: quanto tempo você acha que ela ainda vai durar? Um ano, dois, no máximo. E a única coisa que eu pensava era: o produtor dessa mulher é um idiota de deixar uma artista assim morrer.
Nessas horas, um publicitário torna a vida mais fácil de se entender. Fui perguntar ao meu irmão o que raios o produtor de Amy tinha na cabeça: a decrepitude da mulher estava espalhada na internet e reverberava mais alto que sua voz, que teoricamente era o produto da artista em questão. Fui perguntar se não estava fazendo mal para as vendas, e meu irmão levantou a sobrancelha direita, pendurando um sorriso disfarçadamente no canto da boca: “you’re doing it wrong, sis”. Comecei então a pensar que minha análise estava no mínimo equivocada, mas havia coisas mais urgentes a tratar do que Amy Winehouse, e a deixei de lado mais um tempo, até o dia em que calmamente, num bar da vida, num domingo quieto, recebi incrédula a notícia da morte da cantora.
Dias mais tarde fui às Lojas Americanas adquirir umas canetas que estava precisando, e Amy estava em todo lugar. Havia banners pendendo do teto como bandeiras fúnebres, sua voz ecoava pela loja num silêncio opressor, centenas de CDs estavam empilhados na entrada. Então percebi que a voz de Amy estava sendo vendida pela primeira vez: Amy Winehouse é a vítima de um feminicídio, no qual a voz é um produto post mortem. O corpo de Amy, bem como sua imagem, foram explorados pela indústria fonográfica, convertendo-se na mais bem arquitetada propaganda, na qual o desfecho trágico, a morte na juventude, veio apenas aumentar as luzes sobre o produto final. O produtor de Amy não era um ingênuo negligente, nem a cantora estava selvagem e fora de controle: estava tudo perfeitamente dentro do script.
Sempre penso comigo, nas horas vagas, que o machismo estará longe de acabar enquanto não entendermos que a exploração simbólica da mulher também é um abuso sexual, na medida em que só incide sobre o corpo feminino, sobre sua anatomia bem como sobre sua subjetividade. A vida de Amy Winehouse é uma versão longa-metragem do assassinato de Eloá, aquela menina que, após horas e horas seqüestrada pelo próprio companheiro, acabou sendo morta, enquanto a imprensa de rapina fazia de seu drama um frio espetáculo. Dessa vez, contudo, as próprias câmeras foram o assassino, e mais uma vez, o colarinho branco do machismo sai ileso, branco, intocado...
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