Foi de pé, no meio do outono, tomando sorvete de casquinha. Velho hábito esse meu, tomar sorvete no frio. Mamãe, médica, diz que o corpo humano, mui primitivo, pede gordura para proteger-se, mal sabendo que bem ali, nas Lojas Americanas ou na Leader da esquina, há casacos. Pedia sorvete, eu tomava o sorvete de pé, erguida contra o vento frio como um obelisco inabalável, como um obelisco erguido por reis do passado, quando animais falavam. Um obelisco que atravessava todos os tempos, uma estátua de uma certa liberdade. Quis lhe dizer tudo isso, mas você não estava a meu lado, e pela primeira vez senti saudades de você. Eu quis lhe contar alguma coisa sobre como aquela tarde trazia ventos do Sul, eu quis lhe dizer como havia asas de fadas transparentes naquele ar gelado, e também quis com você rir de algum sátiro que passou pulando na rua. Porém, tínhamos crescido, saído da escola, você agora morava em outra cidade e eu não tinha como lhe dizer absolutamente nada. Pois além de saber que você estava em Minas Gerais, eu não sabia mais nada; minha amiga agora representava um vago conhecimento de geografia.
Quando meses depois fui te ver, você tinha lindos cabelos azuis. Lindos cabelos de anis, que dava vontade de enfiar inteiro na boca, e chupar essa cor de arco-íris até a última gota, até que o cabelo descolorido como palha aparecesse sob a tintura. Nunca achei que fosse de mentira aquele azul, não acredito que haja de fato coisas de mentira. Se não foi a natureza, se foi a farmácia que te tingiu a cabeça de céu, não é menos verdade, por não ser menos você. Tivesse cabelos vermelhos, laranjas, saía de você esse bando de cores, do seu sorriso, e eu tive certeza de que meu lugar era ao seu lado. Que não fosse físico, esse lado, eu também sabia, conquanto tivesse o conforto das suas palavras, conquanto você pudesse me abraçar com a alma, conquanto pudéssemos tomar sorvetes contra o outono em cidades diferentes, sabendo que estávamos unidas pelo tempo.
E naquele dia de ressaca, quando acordamos lado a lado, eu acordei primeiro, e a primeira coisa que vi foi aquela cascata azul manchando o travesseiro, enquanto uma nesga de sol rasgava o quarto em dois. Eu sabia que era aquele ali meu lugar, ao lado do seu azul.
Eu nunca tinha tido 13 anos de relacionamento, muito menos tinha me visto querendo terminar tal feito. Porque, veja bem, de fato não ligo para as histórias das coisas, se o presente me machuca. Mas com você, com você é tão diferente! Com você eu só podia lembrar daqueles lindos cabelos azuis. Daquele banho de chuva que levou embora um pé das minhas havaianas. Mesmo que a Você do presente me machucasse, e eu tenho certeza, certeza, de que te machuquei também: nas manhãs de outono que vieram antes do fim, não havia um dia sequer em que eu não pensasse em reaver aqueles seus cabelos azuis. E aquele sorriso que irradiava todas as cores. E as histórias de todos os mundos que inventamos na esquina da sua casa, antes mesmo de você se mudar para aquele distante continente de Minas Gerais. Não havia um dia em que eu não tentasse reaver aquela menina com quem eu queria encontrar liberdade dos pais e avós assassinos de sonhos, com quem eu queria salvar o mundo do capitalismo, e do machismo, e do racismo, e do especismo... Não... terminar com você não era apenas dar por encerrada uma história, mas fechar as cortinas de um futuro que desenhamos juntas, lá no quadro de giz da nossa infância.
Então, uma manhã de verão derreteu o nosso sorvete de uma vez por todas, uma ligação de telefone, e burocráticas como duas stalinistas, estava por terra o nosso portentoso castelo de cartas. E pensar que jamais enxerguei a fragilidade de nossa arquitetura de papel, cheguei a apostar certas feitas que era inabalável, enquanto cá e lá já as traças invisíveis comiam nosso alicerce. Subestimamos o poder das pequenas mágoas e das pequenas feridas, enquanto estávamos ambas concentradas em problemas maiores. E não vimos. Mal vimos. Que a poeira assentou no seu cabelo azul e a miopia se assentou nos seus olhos. Agora não sei, já não sei, se a garota que tinha aqueles lindos cabelos ainda existe. Por último, vale dizer, que os cabelos eram tão mais lindos na medida em que eram seus...
Texto extremamente poético.
ResponderExcluirCheguei a conclusão de é humanamente impossivel entender a riqueza e complexidade do sentimento humano, o que podemos é trocar experiências. Vamos tentar de novo?
"Existe"sim. As pessoas nunca se vão, carregamo-nas em nossos corações junto com as suas marcas para onde formos.
POr mais que a gente imagine que "ä fila anda", ela anda, pára, retrocede. O tempo não existe, portanto cada momento é momentâneo e eterno.
Dizem que o tempo anda mais rápido quando estamos felizes, mas paradoxalmente as vezes ele anda tao rápido que simplesmente pára. E nós nunca estamos num mesmo instante, mas tudo o que é sólido se desmancha no ar e tudo que derrete também congela. Ir para frente ou para trás depende exclusivamente de nós mesm@s e no fundo dá no mesmo.
Em suma, me contempla muito este texto. Sentir saudades é uma experiência maravilhosa e salutar e pode ser dividida com o universo ;)
Parabéns, estou orgulhosa de novo
*postando direto da ocupaçao da reitoria UFPR
Em tempo: achei que não fossem mais atualizar (ufa! rs)
ResponderExcluirchorei lendo! (achei que você gostaria de saber, ainda que não me conheça)
ResponderExcluirJá escrevi algumas respostas para esse texto.
ResponderExcluirMas decidi não postar nenhuma. Porque a minha decisão no dia da nossa separação foi objetivamente parar de engolir as suas verdades que são só suas.
Queria apenas dizer que a sua história não é a minha. E o seu passado é só seu.
Te admiro, te gosto e quero o seu bem-estar, mas nossa incompatibilidade prepondera.
Cabelos Azuis