quarta-feira, 13 de abril de 2011

A cerca e Eu

Este é um texto muito especial... a desarticulação de todo o sentimento exposto foi o que me fez concluir que eu tinha urgência em organizar meu pensamento de forma pública, articulada com amigxs, em um espaço de interação virtual, ou seja... este blog aqui ^^


                Sei Lá.
                Quero começar esse texto com um grande e sonoro Sei Lá porque é a coisa mais sincera em que consigo pensar no momento, inclusive porque, no estado em que me encontro, está muito difícil pensar. Eu sei que, muitas vezes, imprimo nos meus textos um tom de certeza que é falacioso, e eu faço desse jeito apenas porque é como tenho feito desde que tenho 9 anos e um diário embaixo do braço. Sim, acho que muito antes de ser roqueira eu era uma selvagem libertina que se soltava nas folhas de papel, e foi assim que toda a bagunça que vou contar aqui nessa carta começou. Mas isso são vinte e quatro anos de história do melhor livro que (ainda) vou escrever e não posso contar muito agora, porque não tenho tempo e porque esse não é meu propósito.
                A nossa sociedade já tentou sintetizar o Ser Humano num único órgão várias vezes. Já foi o coração: o centro de nossa Humanidade era esse órgão que governava os sentimentos. Aí veio a ciência, e com ela a razão, e, por fim, o cérebro. Estamos numa sociedade do Homem Cerebral, e estou falando do Homem, sim, do ser fálico e de pele branca, porque à mulher nunca foi dado o direito de ser cerebral. Assim como o negro nunca foi um ser cerebral, no juízo da nossa cultura: o negro é o ser da pele, da voz, dos quadris. E a mulher é o ser uterino, da histeria, da maternidade, da TPM, e por aí vai.
                Daí, a gente muito ingenuamente diz que não é uterina e começa a fazer de tudo pra provar que é racional, quando essa tática só endossa o poder central. A gente nega que tem TPM e coisas assim, o que é um erro tão ingênuo que eu abro um sorriso e sinto muita compaixão pela nossa civilizaçãozinha de merda, uma criança engatinhando a 1000 por hora na direção do abismo, achando lindo a destruição, a queda e a morte. Eu sinto uma pena, danada mesmo, das pessoas que procuram negar o poder reivindicando um lugar dentro dele. Eu só sinto pena porque vejo que a intenção não é ruim. Mas sinto pena desse engano e coço atrás da orelha pensando até quando esse engano vai durar, de achar que a gente é um ser cerebral e que no seio de nossos neurônios tem alguma mágica que os neurônios do cão e do gato não sabem fazer. Ai, ai.
                Então eu falo mesmo, que estou no CIO. Que no meio do mês eu fico mesmo com essa vontade louca. É uma Vontade Louca, PONTO FINAL. Ela não tem forma em si; meus estrógenos não têm a forma dos meus desejos, mas rapidamente se transformam e potencializam esses desejos que eu tenho. E o desejo que eu tenho tido é esse desejo de ir embora.
                Só que eu sou cagona. Não vou mais dizer que sou uma pussy porque minha vagina não tem nada a ver com a minha covardia. Se eu tivesse que chutar, por sinal, diria que meus ovários têm mais coragem que o meu cérebro.
                Há três dias que fico ouvindo as mesmas músicas do Pearl Jam, over and over, e uma velha pessoa que estava adormecida em mim há sabe lá quantos anos acordou. A pessoa que pulou a cerca de arame farpado da escola em dezembro de 1998 está aqui, porque se deparou com uma outra cerca. Depois de andar muito pelo mundo e dentro de mim mesma, encontrei uma cerca muito mais poderosa que a cerca da escola, embora guarde com ela incríveis semelhanças. Ou será que a semelhança sou eu? Porque naquele verão eu estava ouvindo pearl jam também, ainda que fossem outras músicas. E as músicas, outras, estão dizendo a mesma coisa. Estão dizendo que essa porra de cerca, tão sólida e espinhosa, tão imponente e grande, é tão falaciosa quanto aquela calada cerca da escola que eu pulei e deixei pra trás. Nunca mais voltei àquela escola como aluna, embora tenha voltado muitas vezes porque assim o quis. E essa cerca que estou olhando agora, o que eu me torno quando pulo? E o que me torno se resolvo pular de volta, pro lado de cá.
                Essa é uma carta de sinceridades. Se eu sair da minha casa, digamos agora, digamos com aquela pequena mala que uma vez eu arrumei pensando em nunca mais voltar, aquela mala que eu nunca desfiz e que está ali fielmente esperando, qual vai ser a diferença entre mim e o mendigo? Meus ideais. E só. Daí a gente vê como os ideais são pequenos, eles ficam dentro de você e quem passa por você torce o nariz, ou até te bate ou toca fogo em você enquanto você dorme. Se o índio gaudino fosse só um mendigo alguém teria ligado? E aquela moça que foi espancada, cujos agressores tomaram por prostituta mas era empregada: se ela fosse puta de fato, alguém ia ligar? Puta tem que apanhar e mendigo tem que morrer. É nesse mundo que eu vou entrar se pular a cerca, e aí entra meu cérebro, entra meu medo. Eu sou uma cagona.
                Mas eu tb já concluí que não existe meio termo dentro do capitalismo. Se você é professor ou dono da Nike, se você é padeiro. Você não pode achar que é menos ou mais capitalista quem tem mais ou menos dinheiro. A gente nessas horas tem que chamar um Marxista, embora sejam em sua maioria machistas e cerebrais (gostei muito dessa palavra). Eu lembro do Althusser e as máquinas ideológicas do Estado. Ele chamava de Aparelhos. Se você é professor você ta ali, produzindo um novo dono da Nike. Aqui, no perímetro dessa cerca, é todo mundo a mesma bosta. O padeiro alimenta essa corja toda, domestica o trigo e extrai da vaca a sua vida e a também a do bezerro. Cada pecinha, inclusive, e talvez principalmente, as que a gente acha mais insignificantes, são essenciais pra que essa bem azeitada série de Aparelhos continue próspera. Aliás, creio que a Máquina se alimenta da crença de que somos todos dispensáveis. Isso é a maior mentira que o capitalismo conta pra gente.
                Então eu fico aqui encarando a cerca. Acredite, eu estou bem perto dela. Penso que, se eu ficar aqui dentro, nada do que eu sou faz sentido. Aqui dentro não faz sentido ouvir Pearl Jam: embora suas guitarras, suas vozes, me seduzam e me façam bem por si só, pelo som, eu não quero que o Eddie Vedder todos os dias cante no meu ouvido que existe algo ali depois da cerca, que ele mesmo não viu pessoalmente, mas que ele sabe que tem. E aí eu não quero mais ser roqueira, porque se a roqueira é tão patricinha quanto aquela menina que ouve Lady Gaga e que usa bolsa de couro super chique, então ser roqueira é se alimentar da MENTIRA. Roqueiro gosta desta merda aqui tanto quanto os playboys. Se eu ficar aqui, mesmo, vou virar patricinha, vou malhar, vou casar com um dono de iate muito rico, ter cinco filhos que vão estudar na França, vou trair meu marido enquanto puder, vou ser trocada aos 50, vou viver de poupança e transar com o jardineiro que não sabe escrever, vou gostar de humilhar o jardineiro, a empregada vai engravidar dele e eu vou mandar que aborte, vou todos os dias de noite contar meu dinheiro e morrer sorrindo. Porque se não é pra isso, o capitalismo não serve pra mais nada. Todo o resto está infeliz.
                Se eu ficar aqui dentro e não pular a cerca, não quero mais escrever contra o racismo: por que tanta revolta com certo tipo de discriminação e tanta complacência com outra? Não posso te explorar porque a cor da tua pele é TAL, mas já que vc tem menos dinheiro do que eu, tranqüilo, vou te dar um subemprego e um 13° Cala Boca e ficamos assim. Tanta revolta contra a discriminação do útero e da TPM, de um lado, e de outro o completo louvor ao neurônio. Vou ganhar a vida escrevendo artigos contra o sexismo e fazer da minha luta uma estética vazia: realmente, era tudo o que eu queria.
                Daí vou e pulo a cerca, e ali do outro lado, viro mendigo, vivo de recicla, ando pelo mundo vendo as paisagens, viro bicho, quem sabe, e por quê? Será que isso contribui de fato para o fim do capitalismo? O que eu quero é que a cerca acabe. Não estou esperando disco voador de resgate: o resgate é agora. O resgate é ontem.
                Eu ouço a música do Pearl Jam e acho que serei essa velhinha atrás do balcão que reconhece no velho viajante o amor de sua juventude. Ou sou o viajante que reconhece a velhinha atrás do balcão? Tenho 25 anos e não sei. Sob esse aspecto, acho que minha mãe foi muito mais esperta do que eu: aos 17 anos, quando eu fiz as malas, ela não me deixou sair pra ver o show do Siri Local, no Convés. Ela sabia que naquela época era mais fácil ir embora, porque eu tinha mais útero que cérebro e não sabia nada da vida. É mais fácil ir embora quando você não sabe dos riscos que corre, como daquela vez que eu fugi da escola e voltei pra casa pela beira da estrada.
                Enquanto a música não acaba eu fico aqui, olhando a cerca.

Um comentário:

  1. Bacana. O problema de se romper limites é que sempre ao atravessarmos a cerca, criamos outros limites. E tem tb a sensação de solidão. Ir além,significa olhar para os lados e nao ver pessoas tão corajosas quanto nós. Fico imaginando a multidão de pessoas que foram "muito afrente do seu tempo" e tentando avaliar a incompreensão que essas pessoas sofreram no seu tempo. Eu tb não quero um epitáfio...

    Bjookkkksssss

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