Neste carnaval, minha mãe passou por uma intervenção cirúrgica e eu tive conjuntivite bacteriana. O resultado de ter passado sete dias em casa no mais completo confinamento foi muito deleitoso: coloquei leituras em dia, escrevi quase diariamente para O Caju e vi muitos filmes que deram o que pensar. Foi um carnaval muito produtivo, talvez o mais produtivo de minha história.
Entre os muitos filmes que vi, uns na TV, outros alugados e terceiros pirateados, minha mãe trouxe (antes de ser operada, já se precavendo contra o tédio) um filme chamado “Homens em Fúria”. Ela, que adora filmes de ação, viu o nome do filme e os protagonistas (Robert de Niro e Edward Norton) e o colocou no bolo, desavisada do conteúdo. Sem nem ler a sinopse, colocamos o disco no aparelho de DVD e nos sentamos para ver, esperando o momento em que as grandes explosões e toda a suposta fúria dos homens começariam a tomar a tela.
Não aconteceu.
Stone (Edward Norton, e também título original do filme) é um presidiário qualquer, prestes a ser solto de volta ao mundo. Para tal, contudo, deve passar pela avaliação psicológica de Jack (de Niro), cujo trabalho é o de analisar os detentos a fim de determinar se estão ou não aptos a voltar à sociedade. Descrente da própria aprovação, Stone convence sua mulher Lucetta (Milla Jovovitch) a seduzir Jack, prestando a este alguns favores sexuais, para obter uma avaliação positiva do marido detento.
A alguns meses de sair da prisão, Stone se depara na biblioteca com um livro de uma doutrina religiosa (fictícia), e começa a observar o mundo sob o prisma da espiritualidade. Sob essa nova perspectiva, sair da prisão deixa de ser relevante. Sua própria vida pessoal deixa de lhe ser interessante. O personagem passa por momentos de reflexão e angústia sobre o mundo da prisão, sobre o mundo “lá fora”, sobre Jack, seu avaliador, e sobre sua própria mulher. Daí em diante, o filme adota a perspectiva espiritualizada de Stone, ainda que de uma forma bastante sutil, demonstrando o desespero e a sensação de desolamento de personagens possíveis e absolutamente cotidianos, que vivem sua vida ao acaso, a esmo, seguindo única e exclusivamente a inércia de, um dia, terem nascido.
O filme transcende as questões de “final feliz” ou “final triste”. No final, todos saem vivos; mas em qual condição essas vidas estão sendo construídas? Aqui, a questão levantada não é a qualidade material da vida, como dinheiro e sobrevivência de forma geral, mas o fato de que uma vida levada despropositadamente, ou seja, uma vida à qual não se atribui nenhum sentido maior do que simplesmente estar vivo, acaba se tornando uma inevitável fonte de angústia.
Era meia noite quando fui dormir, realmente assombrada pela profundidade e impacto do filme. Recomendo a todos.
Eu cuido muito bem da minha mente. Eu a alimento, eu a estimulo, eu a exercito. Eu proponho desafios a mim mesma, como o texto sobre psicanálise que estava lendo antes de vir escrever. Eu proponho diversão a ela, com crônicas, contos, seriados televisivos, e outras sortes de entretenimento banal. Eu proponho exercícios quando me dedico a escrever minhas reflexões e pontos de vista acerca do universo. Apesar de muitas vezes levá-la ao limite da exaustão e achar que vou acabar louca por sobrecarregá-la, eu sempre sou capaz de parar um pouco antes do curto-circuito e cuidar dela. Não é inteiramente mérito meu, embora eu cuide dela com interesse e dedicação verdadeiros: quem tiver passado por uma boa escola e tiver ingressado em uma faculdade de qualidade, estará em contato com resquícios iluministas, com traços de uma cultura voltada para a saúde da mente.
Infelizmente isso não é tudo. Infelizmente, na contramão dessa saúde mental (não no sentido psiquiátrico, mas num sentido intelectual de “mente”) nossa sociedade é voltada para a depredação do nosso espírito. Nós somos sucessivamente enfileirados em funis e esteiras. Aliás, nossa própria organização espacial é voltada para a massificação do sujeito: nós vivemos enfileirados, arranjados em formas geométricas onde o que importa é nossa ordem de chegada (no caso das filas-retângulos) ou nosso poder aquisitivo (na forma das pirâmides hierárquicas), somos encaixotados em estruturas de concreto cujas formas e materiais são totalmente inorgânicos. A austeridade de nossa cultura nos leva ao ponto em que o olhar é uma afronta e o sorriso só pode ser dado em circunstâncias envolvendo interesse sexual.
Nossa arquitetura (Niemeier que o diga) dedica-se a inventar nossa pequenez. Sim, inventar: porque de modo algum somos pequenos. De modo algum somos insignificantes. Somos tão magníficos quanto leões, girafas, lacraias e estrelas. Sim, lacraias: ontem mesmo, conversando numa roda de amigos, uma lacraia surgiu entre nós, aos nossos pés, e eu nunca vi pessoas subirem tão rápido em cadeiras e mesas que antes sequer pareciam estar ali. Quem inventou que o nosso tamanho em centímetros diz alguma coisa sobre o tamanho de nossas almas é essa mesma sociedade que ergue monumentos para nos tornar pequenos diante de nós mesmos. Sim, essas igrejas e estátuas tão “lindas” nada mais são que grandes mãos enluvadas, esmagando nossos espíritos.
Embora intelectualmente consigamos transpor o determinismo naturalizado desses valores, embora saibamos que não somos de fato pequenos ou insignificantes, essas mensagens que gozam de nosso descrédito ainda nos deprimem, ainda nos chocam. Nessas horas eu realmente penso que existe uma dimensão do existir humano que está além da nossa intelectualidade. Por ter sido educada por pais ateus (depois eles fizeram as pazes com o divino, mas eu já tinha 18 anos e o estrago estava feito), eu não sei se essa dimensão à qual me refiro, eu não sei se esse espírito é apenas mais uma faceta de nossa mente ou se ele é de fato algo além de nós, sem existência material. Mas quanto mais penso sobre o assunto, mais concluo que isso não importa realmente: seja ela material ou imaterial, seja ela cerebral ou não, existe uma dimensão da vida humana que não é nutrida ou satisfeita apenas pelo nosso saber.
Está longe de mim sugerir um livro, uma música, sugerir que nos abriguemos na igrejinha mais próxima, que façamos um culto ecumênico na praia ou na pracinha. Se a espiritualidade consiste, como acredito, num encontro profundo e autêntico com nosso próprio ser, nesta empresa não pode haver dois caminhos iguais – de onde deriva toda a minha desconfiança para com as religiões “disponíveis do mercado”. Mas existem santuários em nossas vidas que excedem qualquer prédio que se pretenda sagrado: existem livros, músicas, sabores e todas as sortes de experiências sensoriais que nos deixam com a nítida sensação de que algo além de nosso corpo está satisfeita. Abrigue-se nisso sempre que necessário.
Dedico este ensaio a todos os ativistas que estão intelectualmente nutridos, mas espiritualmente exaustos. Quando um vegano cai, como diria minha amiga, pode ser por uma questão de “ceder aos prazeres efêmeros do capital”. Mas ser ativista é espiritualmente extenuante, e muita gente cai por isso também. Cuide do seu espírito com a mesma tenacidade que cuida do seu ativismo.
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