Pelo fato de o veganismo não ser uma filosofia centrada em um único pensador ou modelo, e mais ainda ser caracterizado por práticas que se confrontam, que dialogam, que se misturam, ele acaba por encontrar-se com outras ideologias, dando por proles manifestações a meu ver muito bizarras. Claro que essa bizarrice está em meu próprio olhar, e não naquilo que estou olhando, e procede dessa maneira porque certas experiências muito comuns aos membros da nossa sociedade estiveram ausentes de minha vida.
Como eu já disse, não tenho religião; meus pais foram ateus durante minha infância e quase toda adolescência. Na idade em que meus amiguinhos foram catequizados, eu não sabia o que era a Igreja, senão que era uma casa com uma cruz no alto, onde pessoas iam rezar. Mas eu não sabia o que era rezar, para quê se rezaria, o que fazia um padre para além do confessionário, e por aí vai. Essa visão distanciada, aliada a um interesse precoce pelas mitologias de forma geral, me permitiu muito cedo ver que o cristianismo era uma mitologia como qualquer outra, e que se eu podia escolher livremente entre esta e aquelas, não tinha muito sentido em escolher a Igreja antes de uma pesquisa maior.
Acontece que um amigo meu, vegano, é profundamente religioso. Não é católico, vale dizer, mas sua religião tangencia o catolicismo em diversos pontos que na minha opinião são justamente os piores. Eu estava conversando com ele, certa vez, sobre como tenho receio do avanço das igrejas protestantes no Brasil. Receio não só da religião que elas apregoam, mas da maneira como apregoam, e mais ainda da rápida infiltração que têm feito na política, o que acaba por deixar que uma visão dogmática e engessada do mundo decida os destinos de inúmeras vidas. Ele me fez uma pergunta que me desconcertou, sobre a qual eu tive que ponderar durante meses: você tem medo dos evangélicos?
Não só deles, posso agora responder com segurança; tenho medo de qualquer coisa que se apóie na bíblia para validar-se enquanto atitude, pensamento e religião.
A bíblia é a cartilha da propriedade privada por excelência. Deus, esse grande doador, tudo dá ao Homem: cria a natureza, o planeta, e entrega a seu filho, que por sinal é sua imagem e seu ÚNICO semelhante. Cria a mulher e dá a ele. Somente o Homem, por ser a imagem de Deus, goza do direito da posse; os demais, cá estão para ser possuídos. Isso gera inúmeras distorções perigosas, e a principal delas, a meu ver, é o ponto exato em que somente o Homem goza de direitos, e que esses direitos são, na verdade, o direito AO resto e SOBRE o resto da criação. Sendo assim, a bíblia sedimenta o Homem, a Propriedade e o Patriarcado.
Não só na bíblia, mas em todo o imaginário cristão – que é composto de uma rede extensa e complexa que se amalgama à cultura popular e se infiltra em outros credos – todos os heróis, pessoas virtuosas, Santos, são tocados pela graça. E o que é a Graça senão a doação divina de ALGUMA COISA? Ave Maria é cheia de Graça, e essa Graça não é a candura, ela é ALGUMA COISA.
O cristianismo COISIFICA. Isso faz com que muitas de suas comemorações sejam festas de carnificina e terror: esse caráter do Deus-donatário é o que permite que tenhamos Natais e Páscoas sangrentos como estes que temos. A vida do animal, muito diferente da vida humana, pode ser livremente sacrificada e doada a Deus, posto que o sacrifício devolve a criação ao seio divino.
O cristianismo COISIFICA. É isso que permite ao Homem, fálico, ver a mulher como instrumento de realização dos seus prazeres mais sórdidos, e, nos casos extremos, chega a dar ao Homem o direito de sacrificar a mulher no momento em que ela não honra a lei divina – a lei divina de entregar-se e empregar-se como propriedade de seu marido. Sim, é o cristianismo uma das principais, se não a principal, referência do machismo, mesmo do machismo contemporâneo pós-moderno.
O cristianismo COISIFICA. Na sua expansão pelo planeta, conquistando, devorando e destruindo outros cultos, é patente o interesse cristão em quebrar os laços das religiões “primitivas” do ser humano com a natureza, e no Brasil isso deveria ser claro, evidente, sabido por todos. Não é possível ser cristão e ecologicamente correto, pois mesmo quando o cristianismo, atravessado pela ecologia, nos diz que devemos respeitar a natureza, não tira a natureza dessa posição passiva de coisa-criada. Não individualiza, não dá voz à fauna, à flora ou aos recursos naturais, e muito menos, obviamente, ao planeta. O respeito à natureza pregado pelo cristão é o respeito a Deus.
“Tudo quanto no reino animal metia medo ou dava nojo ao europeu, vira signo dúbio de entidades funestas em ambos os planos, o natural e o sobrenatural”[1]. Quando da colonização da América, o Padre Anchieta celebrado na História pela catequese pacífica dos índios utilizou-se do recurso do bestiário, demonizando o mundo natural, para que o índio temesse e matasse a natureza que antes celebrara. E se a colonização parece distante, citemos o caso dos missionários protestantes no Equador que, na década de 1980, procuravam catequizar os índios, convencê-los do caráter amaldiçoado da terra em que haviam vivido por gerações, expulsando-os dali para instalar pontos de extração e refino de petróleo[2].
Os exemplos interessam para trazer à tona um padrão, um modus operandi que se apóia nos pilares da colonização/coisificação, que deixa no rastro do cristianismo a disjunção do ser humano da natureza ao seu redor e de sua própria natureza. Não só isso: o cristianismo é oportunista, aliando-se aos grupos da situação para avançar com sua ideologia, desvinculando-se desses grupos e aliando-se a outros sempre que conveniente, tendo em vista a perpetuação de sua moral.
Cristianismo pressupõe poder, opressão e exploração. Eu tenho, sim, medo de tudo isso e, caso não tivesse, não seria vegana, nem teria um blog. Para mim, o estranho, bizarro e bestial dessa história toda é: quem é que NÃO tem medo do cristianismo? E por quê?
Uma vez vi uma palestra bastante interessante de um francês que declarava que o Cristianismo foi e é um dos grandes responsáveis pela destruição da natureza e da Terra. Por dar valor mais ao espiritual do que o mundano. Por tratar a Terra como "impura" e dar prioridade aos "bens espirituais" apenas.
ResponderExcluirDe certa forma, faz sentido.