Nós dois na cama, deslizando em nossos suores. Cama fedida, suores de outros seres humanos que já haviam gotejado orgasmos por ali. Se seguisse as trilhas de cheiros, podia adivinhar seus rostos, seus sorrisos, seus gemidos afogados na noite, nas estrelas. Que belíssima orgia, nossos corpos se fundindo, seus lábios colados nos meus, suas mãos me guiando e ao mesmo passo me descobrindo, eu me desfazendo na sua boca com uma risada gostosa. Eu e esse estranho, esse desconhecido, para quem eu vinha dando olhares, que eu vinha cortejando com músicas e palavras tímidas. Agora o tinha entre as minhas pernas, sua barba nos meus pentelhos, seu sorriso no meu, um orgasmo assomando no horizonte das possibilidades.
Eu não queria que acabasse, o rock n’ roll tocava sozinho na minha cabeça. Eu e os feromônios de, quem sabe, dezenas de fêmeas no seu lençol. E eu sim, eu fazia sexo com cada uma delas, cada vez que afundava meu rosto naquelas cobertas toscas, rotas, fedidas. Sua língua não se cansava de mim, minhas mãos patinavam nas suas costas sardentas, enquanto as estrelas se retiravam uma a uma para dormir. E lá vem o sol de domingo iluminar nossos orgasmos bêbados! Lá vem o sino da igreja, blasfemar contra a nossa união! Do outro lado da rua, acorda a janela de um apartamento, uma velhinha horrorizada deixa-se olhar para nós um instante, um breve instante a mais. “Como era bom, no meu tempo!”.
Nem o cansaço, nem a fome, nem a possibilidade ruidosa de que alguém empurrasse a porta levemente entreaberta. O que conjurou aquele orgasmo conjunto do fundo primitivo do nosso sangue, das nossas nervuras? Quem puxou os títeres dos nossos membros contorcidos? De onde veio a piada cósmica que provocou o riso frouxo, o riso desvairado daquele gozo? Você desfaleceu entre as minhas pernas, e depois encostou a cabeça cacheada no meu peito, onde meu coração agitado não deixou você dormir. As palavras subiram gorgolejantes, e já na ponta da língua calei; calei a última vez na vida em que desejei dizer “eu te amo” a alguém.
Outro dia vi um amigo declamar uma poesia. Sofria. A mão gesticulava no ar sem esperança alguma. Apontava vagamente um pássaro que estava voando muito longe, mas do qual eu não via senão um ponto indistinto e sem cor, entre as nuvens. Vem daí a expressão “cor de burro quando foge”: quando as coisas fogem de nós em velocidade muito grande, ou quando estão no limite do horizonte, prestes a sumir, não têm cor mesmo. A gente pesca na memória as cores que acha que tinha aquele pássaro distante; mas as cores da memória são muito mais vivas do que as da paleta do pintor. Qual é a cor da angústia, da paixão, do amargo ou do doce? Daí, com sua poesia, meu amigo pintava seu amor com cores fúnebres. E eu pensava: “acho que isso não é amor”.
Tenho tido problemas com essas palavras. E, para meu total espanto, não tenho tido problema algum em não ouvi-las nos últimos dois anos. Pelo contrário, isso muito me descansa. O medo, portanto, é que alguém venha a dizer-mas. E, novamente, pasmo por não as querer. Porque não sei exatamente o que significam, aliás isso nunca soube. Mas assim como andam na boca do povo, pintadas com as tintas da agonia, assim não as quero.
Outro dia ouvi uma fábula em que um menino se apaixona por uma feiticeira. Em dado ponto da história, o menino se depara com uma escolha: se decidir por casar-se com ela, ela perderia seus poderes e passaria a ser uma menina comum. Se se decidisse por não casar com ela, ela voltaria a ser uma bruxa feliz, trotando por aí com sua vassoura de capim e um gatinho preto na cesta de vime. Como convém aos finais felizes, o garoto escolhe casar-se com a bruxa, que perde seus poderes.
Que escolha estranha, essa. É como escolher mutilar as asas de um pássaro para que ele cante apenas no seu quintal. O amor, devo concluir que é isso? Belo dia acordarei sem asas, deitada numa cama de plumas, numa torre de cristal? Por que é tão difícil escolher que o pássaro possa cantar em outras paragens, que a bruxa possa enfeitiçar outros homens e casar-se com o gato? Chego a pensar que as pessoas não se apaixonam umas pelas outras, não amam-se umas às outras, mas às fantasias de dor que recobrem esse sentimento que deveria – pelo menos é o que dizem – libertá-las. Acho que isso não é amor.
As pessoas que entram silenciosamente no mundo das palavras, e de lá colhem os poemas deixados pelos poetas mortos, encantam-se com as tintas mortíferas que revestem o amor desde os mais tenros primórdios. Mas há muita diferença em gostar do amor e de todo o aparato fantástico e fantasmagórico que o embrulha, ou que precede sua chegada. Não gosto de chamas que ardem sem eu ver, não gosto de me perder pelos mares um tanto quanto conhecidos da angústia pré-fabricada das liras, dos rococós, dos sonetos de Vinícius ou das novelas mexicanas. A mim agradam mais os jogos selvagens dos gemidos indistintos, a acrobacia deslizante dos corpos que não oferecem qualquer aderência às palavras.
Hoje não tem revolução nessa pena digital que vos escreve. Hoje não tem grito, não tem revolta. Hoje tem a lembrança silenciosa daquelas palavras que não foram ditas naquela cama. Porque, para mim... para MIM... amar era aquilo que eu estava sentindo, e que provavelmente só senti uma vez: não era me confundir com quem me devorava. Não era sentir aflição ao partilhar a cama com gerações e gerações de lascívias fêmeas. Amar era simplesmente abandonar o barco do Eu na risada da nossa comunhão.
Vídeo da Semana:
Vívido...
ResponderExcluirQue máximo!!!!
ResponderExcluirInteressante. Gostei do excesso.
ResponderExcluirRá!