domingo, 23 de setembro de 2012

Cacos de vidro vermelho

Eu queria fazer um verso pra você musicar
eu queria fazer um verso pra eu cantar
eu queria que você tivesse lá pra me ouvir
eu queria que você fosse o primeiro a me aplaudir
eu queria jogar fora o rosto de boneca que você tentou me vestir
eu queria me transformar naquilo que me agrada
naquilo que me faça rir
mas foi impossível
foi impossível
foi impossível
foi impossível

a rima ficou perdida
o falsete se perdeu no ar
as notas da minha voz se perderam em alguma vida passada
alguma vida de merda talvez tão merda quanto essa
o grito rouco e desafinado nunca me pareceu tão melódico
porque é isso o que eu escuto
só isso o que eu escuto
um estrondo rouco, desafinado, melódico
o som, aquele som
aquele som

você nunca tentou compreender
achou que era tudo pessoal
(risos)
talvez fosse mesmo
o que não é pessoal?
se eu tô aqui vivendo, é porque se tornou pessoal
sempre foi pessoal
nós é que levamos tempo demais pra perceber
levamos tempo demais pra entender

eu queria crescer e me transformar em tudo aquilo que você me fazia temer
eu queria crescer pra jogar meu molotov naquele corpo que você me fez usar
eu queria crescer pra lamber o veneno que escorria daquela ferida aberta
eu queria crescer pra quebrar aquele copo vermelho
copo vermelho
copo comprido, vermelho

é que você não entende
não entende a nota que eu canto
não entende o falsete na minha voz
não entende o rasgado nas minhas roupas
não entende a calcinha velha e manchada de menstruação
não entende os óculos sujos e velhos
(risos)
não serei eu a te explicar nada agora

agora tudo ficou pra trás
toda a vontade, todo o desejo
tudo virou raiva
todo o desejo de um dia ver você na primeira fila
se tornou ódio e vontade de te chutar pra fora daqui
vontade de gritar e fazer o amplificador explodir
é que de repente eu entendi
eu entendi que jamais fui daqui
todo o pensamento macabro
toda vontade de suicídio
todo sangue que tive vontade de ver escorrer
todo grito sufocado
todo gozo escondido
tudo legítimo!
Violentamente reprimido!
Violento é você
violento era o rosto de boneca que você queria que usasse
violento era o batom fálico que você queria manchar meus lábios
violento é o corpo enquadrado que você ainda quer que eu vista
violento é essa merda que você chama de amor

eu quero gritar do jeito que eu quiser
quero dizer que já cresci
cresci e me tornei tudo aquilo que você me fazia temer
cresci e jogo um molotov por dia nesse corpo que você queria que eu usasse
cresci e uso minha língua pra lamber
lamber gozos que escorrem de fendas abertas em corpos
corpos bem diferentes daqueles que você queria pra mim
(risos)
minha vida são cacos de vidro vermelhos...

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Era uma manhã de sábado, perdida em um março do tempo.


Sobretudo, despedia-me de seu corpo. Daquelas ondas castanhas que se derramavam sobre os ombros, dos olhos verdes que expressavam sua amável burrice. Seus lábios finos e suas mãos delicadas desenhavam no ar palavras e gestos inúteis que me pediam para ficar, para continuar, para lhe dar uma nova chance. A. erguia-se diante de mim como uma dupla criatura: sua personalidade odiosa, sua teima em que deveria domar-me e conquistar-me, sua certeza inabalável de que seu corpo deveria ser o primeiro e o último de minha vida. Esta era a Letra A. que eu queria matar, a dentadas, cravando garras e dentes em seu frágil pescoço. MAS aqui entrava a segunda letra A., aquela fragilidade tão linda, ossos que eu podia enrolar com o fechar de uma mão, aquela língua com a qual a minha já tanto dançara e tanto mais gostaria de dançar. Porém, era impossível estar com aquele corpo A sem que a pessoa A fizesse parte de minha vida; e entre ser infeliz ao lado de um belo corpo, e tentar a sorte da felicidade na obscura senda da solidão, disse-lhe adeus pelas grades, abraçando o desconhecido. Não tornaria a vê-lA por anos depois deste evento.
Era estranho como seu corpo continuava a habitar notas de música, pedaços de papel. Olhava, encostado à parede, um velho disco de vinil que comprara naquela estranha semana em que nos conhecêramos. Os beijos dados no sábado alimentaram-me até a quarta-feira, e como uma máquina movida a um novo combustível, eu vivia de suspiros, caminhando apenas com os dedos dos pés sobre a freqüência imaterial da paixão. A melhor semana de nosso namoro havia sido aquela primeira, quando A não passava do conjunto das lembranças de uma noite selvagem, quando eu podia sonhar que A era o ente imaginário ao lado do qual eu poderia passar, descansada, o resto de meus dias, sem fazer qualquer esforço para ser feliz. Percebia, olhando o velho vinil um pouco entediado, que a letra A de quem eu sentia tanta falta era aquela que havia, durante oito dias, vivido em minha imaginação, correndo solta pelas páginas dos diários, aquela letra A que eu desenhara, tão sonhadora, no quadro da sala de aula.
Era uma manhã estúpida de sábado, em um março hoje perdido. O Yes desenhava sua psicodelia arco-íris berrante em minha sala, e dos escombros de uma relação que nascera falida brotava, paradoxal, a flor da felicidade. Observava o quintal de maneira desinteressada quando a beleza do mundo me arrebatou, sacudindo-me pelos ombros: a grama era verde, o céu era azul, o cachorro negro e a borboleta amarela. Todas as cores redescobertas dançavam ao vento o som de um rock esquecido; meu rosto, pousado sobre as mãos na janela, olhava imóvel, enquanto meus quadris – independentes! – desenhavam lenta e persistentemente o infinito no ar. Contra todas as hipóteses. Contra tudo o que me disseram. A felicidade forçava sua entrada trazendo pela mão a companhia de todas a mais inusitada: a Solidão. De todos e todas as criaturas do mundo, aquela cuja companhia havia sido terrivelmente amaldiçoada pela Tristeza e pela Loucura, ela se tornara subitamente a mais macia e agradável.
Não fazia muitos dias, comprara um livro de Bakunin. O Anarquismo entrava, brilhante, em minha vida. Não havia um método, não havia um caminho; a liberdade era uma certeza para a qual nossos pés deveriam caminhar com debilidade, debilidade e dor, mas se se conservasse como princípio a premissa de que qualquer poder era abominável, só poderia dar certo. Só se poderia, irremediavelmente, chegar “lá”. Embora Baku não trouxesse em suas linhas qualquer nota sobre feminismo, não me seria difícil diagnosticar o que havia de tão odioso em A: sua vontade de dominar-me, fazendo do amor um cativeiro ideológico, aprisionando meu corpo aos seus desejos. E então, pela primeira vez em 18 anos, pensei e senti coisas que poderiam muito bem não terem sido sentidas e pensadas, se não fosse o acidente cósmico de em minha vida terem entrado um livro, uma música e uma pessoa. Do alto de meu ateísmo, nunca antes mais forte, percebia que meus pensamentos não eram o resultado imediato da leitura de umas 15 páginas, mas a fermentação última de uma reação que começara em minha infância, mas que acontecera dia a dia em minha vida. Manhã após manhã, secretamente, crescera em mim uma estrela, e essa estrela era a certeza brutal de que a felicidade não estava no casamento – fosse com um homem, com uma mulher, com um objeto, com um animal. Eu tentava recobrar exatamente quem e quando me havia dito que eu era apenas a desgarrada contraparte de outro humano; quem me orientara a vagar, a errar em busca de outro, ao lado de quem minha vida poderia ser considerada finda; essa pessoa estava errada.
Começaria aí uma saga. Não sem volta, tampouco certa e linear como parecem os caminhos espirituais que lemos ou que imaginamos, acerca dos santos e dos sábios. Isto, porque não se tratava de um caminho espiritual, mas eu diria que se tratou exatamente do contrário: assim começou meu caminho político. Ele era, ainda é, indiscernível de minha vida pessoal, dos meus amores, dos meus dissabores; eu não poderia ter-me tornado anarquista sem, simultaneamente, tornar-me descrente no amor; nem poderia amar a mim mesma, se naquele momento não tocasse aquela música. A vida é um acidente: se tragédia ou aventura, não se trata da qualidade dos acontecimentos, mas da qualidade de nosso olhar.
Era uma manhã de sábado, perdida em um março do tempo. 

domingo, 1 de julho de 2012

A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA

Por Beatriz Preciado. Este é um excerto da obra Testo Yonqui traduzido pelo Coletivo Caju, sem fins lucrativos. TODO PODER AO FEMINISMO!



A ERA FARMACOPORNOGRÁFICA

Nasci em 1970, momento no qual a economia do automóvel, que parecia então estar em seu apogeu, começava a declinar. Meu pai tinha a primeira e mais importante loja de automóveis de Burgos, uma vila gótica de curas (?) e militares na qual Franco havia instalado a nova capital simbólica da Espanha fascista. Ganhasse a guerra Hitler, a nova Europa haver-se-ia assentado em torno desses polos (certamente desiguais), Burgos e Berlin, ou amo menos com isso sonhava o general galego. Na Garaje Central, assim se chamava o florescente negócio de meu pai, situado na General Mola (o militar que havia dirigido o levante contra o regime republicano em 1936), eram guardados os carros mais caros da cidade, os carros dos ricos e chiques. Em minha casa não havia livros, só havia carros. Chryslers de motor Slant Six, vários renaults Gordini, Dauphine e Ondine (“os carros das viúvas”, assim os chamavam na época, porque tinham a fama de acabar, nas curvas, com a vida dos maridos automobilistas), renaults D-S (que os espanhóis chamavam “tubarões”), e alguns Standards trazidos da Inglaterra e reservados (abjudicados?) aos médicos. A esses adicionavam-se a coleção de carros antigos que meu pai vinha comprando: um Mercedes “Lola Flores” negro, um citröen cinza Traction Avant dos anos 1930, um Ford 17 cavalos, um dodge Dart Swinger, um citroën “culo-rana” de 1928 e um cadillac 8 cilindros. Meu pai investiu, naqueles anos, na indústria de ladrilhos, que veio abaixo em 1975 (acidentalmente, como a ditadura) com a crise do petróleo. Ao final teve de vender sua coleção de carros para pagar a quebra da fábrica. Eu chorei por aqueles carros. Entretanto, eu estava crescendo como uma pequena marimacho1. Meu pai choraria por isso.

Durante essa época, recente e todavia já irrecuperável, que hoje conhecemos como “fordismo”, a indústria do automóvel sintetiza e define um modo específico de produção e de consumo, uma temporalização taylorizante da vida, uma estética polícroma e lisa do objeto inanimado, uma forma de pensar o espaço interior e de habitar a cidade, um agenciamento conflitante do corpo e da máquina, um modo descontínuo de desejar e de resistir. Nos anos que se seguem à crise energética e àqueda das cadeias de montagem, procurar-se-iasm novos setores portadores das transformações da economia global. Se falarão assim das indústrias bioquímicas, eletrônicas, informáticas ou de comunicação como novos suportes industriais do capitalismo... Mas esses discursos seguirão sendo insuficientes para explicar a produção de valor e da vida na sociedade atual.

Todavia, parece possível esquadrinhar a cronologia das transformações da produção industrial do último século do ponto de vista do que se converterá progressivamente no negócio do novo milênio: a gestão política e técnica do corpo, do sexo e da sexualidade. Dito de outra forma, resulta hoje filosoficamente pertinente levar a cabo uma análise sexopolítica da economia mundial.

Se do ponto de vista econômico, a transição a um terceiro tipo de capitalismo, depois dos regimes escravista e industrial, se situa habitualmente em torno dos anos setenta, a condução de um novo tipo de “governabilidade do ser vivo” emerge das ruínas urbanas, corporais, psíquicas e ecológicas da Segunda Guerra Mundial – e no caso espanhol, da Guerra Civil.

Mas como o sexo e a sexualidade, vocês se perguntarão, convertem-se no centro da atividade política e econômica? Sigam-me:

Durante o período da Guerra Fria. Os Estados Unidos investem mais dólares na investigação científica sobre o sexo e a sexualidade que nenhum outro país ao longo da história. A mutação do capitalismo a que assistiremos se caracterizará não somente pela transformação do sexo em objeto de gestão política da vida (como já havia intuido Foucault em sua descrição “biopolítica” dos novos sistemas de controle social), como também esta gestão se levará a cabo através de novas dinâmicas do tecnocapitalismo avançado. Pensemos simplesmente que período que se estende do final da Primeira Guerra Mundial à Guerra Fria constitui um momento sem precedente de visibilidade das mulheres no espaço público, assim como de emergência de formas visíveis e politizadas da homossexualidade em lugares tão insuspeitados como, por exemplo, o exército estadunidense. O macartismo ianque nos anos 1950 soma à perseguição patriótica do comunismo a luta contra a homossexualidade como forma de antinacionalismo, ao mesmo tempo em que exalta valores da família, da masculinidade trabalhadora e da maternidade doméstica. Abrem-se durante esse tempo dezenas de centros de investigação sobre a sexualidade ocidental como parte de um programa de saúde pública. Ao mesmo tempo, os doutores George Henry e Robert L Dickinson executam a primeira demografia do “desvio sexual”, um estudo epidemiológico conhecido pelo nome de “Variante Sexual”, ao qual seguir-se-ão, mais tarde, os Relatórios Kinsey sobre a sexualidade e os protocolos de Stoller sobre a feminilidade e a masculinidade. Entretanto, colaboram com o exército estadunidense os arquitetos Ray e Charles Eames para fabricar plaquilhas de identificação dos membros mutilados na guerra a partir de placas de compensado playwood. Poucos anos depois utilizarão o mesmo material para construir os móveis que caracterizarão o design ligeiro e a arquitetura americana modulada. Harry Benjamin põe em marcha e sistematiza a utilização clínica de moléculas hormonais, serão comercializadas as primeiras moléculas naturais de progesterona e estrogêneo obtidos a partir do soro sanguíneo de uma égua (Premarin) e pouco mais tarde sintéticas (Norethindrone). Em 1946 é inventada a primeira pílula antibaby a base de estrógenos sintéticos – o estrogêneo será imediatamente a molécula farmacêutica mais utilizada de toda a história da humanidade. Em 1947, os laboratórios Eli Lily (Indiana, EUA) comercializam a molécula metadona (o mais simples dos opiáceos) como analgésico, convertendo-se nos anos 1970 no tratamento básico de substituição no vício em heroína; neste mesmo ano, o pseudopsiquiatra ianque John Money inventa o termo gênero, diferenciando-o do tradicional “sexo” para nomear o pertencimento de um indivíduo a um grupo culturalmente reconhecido como “masculino” ou “feminino” e afirma que é possível “modificar o gênero de qualquer bebê até seus 18 meses”. Multiplica-se exponencialmente a produção de elementos transurânicos, entre eles os do plutônio, combustível nuclear empregado mitilarmente durante a Segunda Guerra Mundial e que agora se converte em material de uso no setor civil: o nível de toxicidade dos elementos transurânicos sobrepuja o de qualquer outro elemento terrestre, gerando uma nova forma de vulnerabilidade da vida. O lifting facial e diversas intervenções de cirurgia estética se convertem pela primeira vez em técnicas de consumo de massa nos EUA e Europa. Andy Warhol se fotografa durante uma cirurgia de lifting facial, fazendo de seu corpo um dos objetos pop da sociedade de consumo. Frente à ameaça induzida pelo nazismo e pelas retóricas racistas de uma detecção da diferença racial ou religiosa através de signos corporais, a “des-circuncisão”, reconstrução artificial do prepúcio do pênis, converte-se em uma das cirurgias estéticas mais praticadas nos EUA nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. Simultaneamente, generaliza-se o uso do plástico para a fabricação de objetos da vida cotidiana. Este material viscoso e semirrígido, impermeável, isolante elétrico e térmico, produzido a partir da multiplicação artificial de átomos de carbono em largas cadeias moleculares de compostos orgânicos derivados do petróleo e cuja queima é altamente contaminante, definirá as condições materiais de uma transformação ecológica em grande escala: destruição dos recursos energéticos primitivos do planeta, consumo rápido e alta contaminação. Em 1953, o soldado americano George W. Jorgensen se transforma em Christine, tornando-se o primeiro transexual mediatizado; Hugh Hefner cria Playboy, a primeira revista pornô ianque difundida em bancas de jornal, com a fotografia de Marilyn Monroe nua na capa do primeiro número. Na Espanha franquista, a Lei de Vadios e Meliantes de 1954 inclui pela primeira vez homossexuais e sexualidades desviantes. O comandante Antonio Vallejo-Nájera, chefe dos serviços médico-militares, e Juan José López Ibor conduzem sucessivas investigações com o fim de examinar as raízes psico-físicas do marxismo (para descobrir o famoso “gen vermelho”), a homossexualidade e a interssexualidade, preconizando, apesar da escassa tecnificação das instituições médicas durante o franquismo, a lobotomia, as terapias de modificação de conduta, o tratamento mediante eletrochoque e a castração terapêuticos por razões de eugenia; Em 1958 faz-se, na Rússia, a primeira faloplastia (construção de um pênis a partir de um enxerto da pele e dos músculos do braço), como parte de um processo de mudança de sexo de mulher a homem. Em 1960, os laboratórios Eli Lilly comercializam Secobarbital, um barbitúrico com propriedades anestésicas, sedativas e hipnóticas concebido para o tratamento da epilepsia, insônia ou como anestésico para cirurgias breves. Secobarbital, mas conhecido como a “pílula vermelha” ou doll (em inglês. “boneca”, nota da tradutora), torna-se uma das drogas da cultura rock underground dos anos 1960; ao mesmo tempo, Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline utilizam pela primeira vez o termo cyborg para referir-se a um organismo tecnicamente suplementado que poderia viver em um meio-ambiente extraterrestre e operar como um “sistema homeostático integrado inconsciente”. Tratava-se de um rato de laboratório à qual se havia implantado uma prótese osmótica que arrastava em forma de cabo cibernético. Em 1966 são inventados os primeiros anti-depressivos que intervêm diretamente na síntese do neurotransmissor serotonina, e que levarão até 1977 à concepção da molécula de Floxetina que será depois comercializada sob diversos nomes, dependendo do laboratório, dos quais o mais conhecido será o Prozac, fabricado por Eli Lilly. Em 1969 cria-se, como parte de um programa de investicação militar estadunidense, arpanet, a primeira “rede de redes” de computadores interconectados capazes de transmitir informação, que dará lugar mais tarde à Internet. A 18 de setembro de 1970 morre Jimi Hendriz, depois de haver ingerido (acidentalmente, suicídio ou assassinato?) um coquetel farmacêutico que continha pelo menos nove pílulas de Secobarbital. Em 1971 o Reino Unido estabelece a Lei de Abuso de Drogas, que regula o consumo e tráfico de substâncias psicotrópicas. A gravidade dos crimes por uso e tráfico vai desde a categoria A (cocaína, metadona, morfina, etc) até a categoria C (cannabis, ketamina, etc). O álcool e o tabaco ficam fora desta classificação. Em 1972 Gerard Damiano realiza, com dinheiro da máfia californiana, Garganta Profunda, uma das primeiras películas pornô comercializadas publicamente nos EUA. Garganta Profunda se converterá em um dos filmes mais vistos de todos os tempos, gerando lucros de mais de seiscentos milhões de dólares. Estoura a partir de então a produção cinematográfica pornô, passando de trinta películas clandestinas em 1950 a dois mil e quinhentas em 1970. Em 1973 retira-se a homossexualidade da lista de enfermidades mentais do DSM (Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais). Em 1974, o soviético Victor Konstantinovich Kalnberz registra a patente do primeiro implante peniano a base de hastes plásticas de polietileno como tratamento para falta de ereção, criando um pênis natural ereto permanentemente. Esses implantes serão abandonados em função de suas variantes químicas por serem “fisicamente incômodos e emocionalmente desconcertantes”. Em 1977, o estado de Oklahoma introduz a primeira injeção letal a base de um composto barbitúrico semelhante à pílula vermelha para aplicar a pena de morte; um método similar havia sido utilizado já no chamado programa Ação T4 de higiene racial na Alemanha nazista, que matara entre setenta e cinco mil e cem mil pessoas com deficiências físicas ou psíquicas, método abandonado depois em função de seu alto custo farmacológico e substituído pela câmara de gás ou simplesmente pela morte por inanição. Em 1983, a transexualidade (“disforia de gênero”) é incluída na lista do DSM como enfermidade mental. Em 1984 Tom F. Lue, Emil ª Tanaghoy e Richard A Schidt colocam pela primeira vez um “marcapasso sexual” no pênis de um paciente, um sistema de eletrodos implantados junto à próstata que permitia desencadear uma ereção por controle remoto. Durante os anos 1980, descobrem-se e comercializam-se novos hormônios como o DHEA ou hormônio do crescimento, assim como numerosas substâncias anabolizantes que serão utilizadas legal e ilegalmente no esporte. Em 1988 aprova-se a utilização farmacêutica de Sildenafil (comercializado como Viagra pelos laboratórios Pfizer) para tratar a “disfunção erétil” do pênis. Trata-se de um vaso-dilatador sem efeito afrodisíaco que induz a produção de óxido nítrico no corpo cavernoso do pênis e o relaxamento muscular. A partir de 1966 os laboratórios ianques se lançam na produção sintética de oxyntomodulina, um hormônio relacionado ao sentido de saciedade, que pdoeria afetar os mecanismos psicofísiológicos reguladores da adicção e ser comercializado para provocar perda de peso. No princípio do novo milênio, quatro milhões de crianças são tratados com Ritalina por hiperatividade e pelo chamado DDA, e mais de dois milhões consomem psicotrópicos destinados a controlar a depressão infantil.

Estamos diante de um novo tipo de capitalismo quente, psicotrópico e punk. Essas transformações recentes apontam na direção da articulação de um conjunto de novos dispositivos microprostéticos de controle da subjetividade com novas plataformas técnicas biomoleculares e mediáticas. A nova “economia mundo” não funciona sem o desdobramento simultâneo e interconectado da produção de centos de toneladas de esteróides sintéticos, sem a difusão global de imagens pornográficas, sem a elaboração de novas variedades psicotrópicas sintéticas legais e ilegais (Lexomil, Special K, Viagra, speed, cristal, Prozac, extasi, popper, heroína, Omeoprazol, etc), sem a extensão da totalidade do planeta numa forma de arquitetura urbana difusa na qual mega-cidades miséria se articulam com nós de alta concentração de capital, sem o tratamento informático de signos e da transmissão numérica de comunicação.

Estes são someste alguns dos índices de aparição de um regime pós-industrial, global e mediático que chamarei, a partir de agora, tomando como referência os processos de governo biomolecular (fármaco-) e técnico-semiótico (-pornô) da subjetividade sexual, dos quais a pílula e a Playboy são paradigmáticos, “farmacopornográfico”. Ainda que suas linhas de força fundam suas raízes na sociedade científica e colonial do século XIX, seus vetores econômicos não se farão cisíveis até o final da Segunda Guerra Mundial, ocultos a princípio sob a aparência da economia fordista expondo-se gradativamente ao longo do gradativo desmoronamento desta nos anos 1970.

Durante o século XX, período no qual se leva a cabo a materialização parmacopornográfica, a psicologia, a sexologia, a endocrinologia estabeleceram sua autoridade material transformando os conceitos de psiquismo, libido, consciência, feminilidade e masculinidade, de heterossexualidade e homossexualidade em realidades tangíveis, substâncias químicas, em moléculas comercializáveis, em corpos, em biotipos humanos, em bens de intercâmbio gestionáveis pelas multinacionais farmacêuticas. Se a ciência alcançou o lugar hegemônico como discurso e como prática em nossa cultura, é precisamente graças ao que Ian Hacking, Steve Woolgar e Bruno Latour chamam “sua autoridade material”, isto é, sua capacidade para inventar e produzir artefatos vivos. Por isso a ciência é a nova religião da modernidade. Porque tem a capacidade de criar, e não simplesmente descrever, a realidade. O êxito da tecnologia contemporânea é transformar nossa depressão em Prozac, nossa masculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa fertilidade/esterilidade em pílula, nossa SIDA em coquetel. Sem que seja possível saber quem vem antes, se a depressão ou o Prozac, se o Viagra ou a ereção, se a testosterona ou a masculinidade, se a pílula ou a maternidade, se o coquetel ou a SIDA. Essa produção em auto-feedback é própria do poder farmacopornográfico.

A sociedade contemporânea está habitada por subjetividades toxicopornográficas: subjetividades que se definem pela substância (ou substâncias) que dominam seus metabolismos, pelas próteses cibernéticas através das quais se tornam agentes, pelos tipos de desejos farmacopornográficos que orientam suas ações. Assim, falaremos de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos cocaína, sujeitos álcool, sujeitos ritalina, sujeitos cortisona, sujeitos silicone, sujeitos heterovaginais, sujeitos duplapenetração, sujeitos Viagra, etc.

Não há nada que desvelar na natureza, não há um segredo escondido. Vivemos na hipermodernidade punk: já não se trata de revelar a verdade oculta da natureza, mas é necessário explicitar os processos culturais, políticos, técnicos através dos quais o corpo como artefato adquire estatuto natural. O oncomouse, rato de laboratório criado biotecnológicamente para ser portador de gen cancerígeno, come Heiddeger. Buffy, a vampira mutante televisiva, devora Simone de Beauvoir. O dildo, paradigma de toda prótese de teleprodução de prazer, devora a rola de Rocco Siffredi. Não há nada que desvendar nem na identidade sexual, não há um segredo escondido. A verdade do sexo não é desvelamento, mas sex design.

1Mantive o termo marimacho por não ver necessidade de traduzi-lo.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

POTENTIA GAUDENDI


Por Beatriz Preciado

Para compreender como e por que a sexualidade e o corpo, o corpo excitável, irrompem no centro da ação política até chegar a ser objetos de uma gestão estatal e industrial minuciosa a partir de finais do século XIX, é preciso elaborar um novo conceito filosófico equivalente no domínio farmacopornográfico ao conceito de força de trabalho no domínio da economia clássica. Nomeio a noção de “força orgásmica” como potentia gaudendi: trata-se da potência (atual ou virtual) de excitação (total) de um corpo. Esta potência é uma capacidade indeterminada, não tem gênero, não é feminina ou masculina, nem humana nem animal, nem animada nem inanimada, não se dirige prioritariamente ao masculino ou ao feminino, não conhece a diferença entre heterossexualidade e homossexualidade, não diferencia entre o objeto e o sujeito, não sabe tampouco a diferença entre ser excitado, excitar e excitar-se-com. Não privilegia um órgão sobre outro: o pênis não possui mais força orgásmica que a vagina, o olho ou um dedo do pé. A força orgástica é a soma da potencialidade de excitação inerente a cada molécula viva. A força orgásmica não busca sua resolução imediata, aspira, isto sim, a estender-se no tempo e no espaço, a tudo e a todos, em todo lugar e em todo momento. É força que transforma o mundo em prazer-com. A força orgásmica reúne ao mesmo tempo todas as forças somáticas e psíquicas, põe em jogo todos os recursos bioquímicos e todas as estruturas da alma.

No capitalismo farmacopornográfico, a força de trabalho revelou seu verdadeiro substrato: força orgásmica, potentia gaudendi. O que o capitalismo atual poé a trabalhar é a potência de correr-se como tal (?), seja em sua forma farmacológica (molécula digerível que se ativará no corpo do consumidor), seja em sua representação pornográfica (como signo técnico-semiótico1 conversível em dado numérico e transferível a suportes informáticos, televisuais e telefônicos) ou em sua forma de serviço sexual (como entidade farmacopornográfica viva cuja força orgásmica e cujo volume afetivo são postos a serviço de um consumidor por um determinado tempo sob um contrato mais ou menos formal de venda de serviços sexuais).

O que caracteriza a potentia gaudendi não é somente seu caráter não permanente e altamente maleável, mas também, sobretudo, sua impossibilidade de ser possuída e conservada. A potentia gaudendi, como fundamento energético do farmacopornismo, não se deixa reduzir a objeto nem pode ser transformada em propriedade privada. Não so não posso possuir nem conservar a potentia gaudendi de outro, como não posso possuir e conservar aquela que aparece como minha. A potentia gaudendi existe unicamente como evento, relação prática, devir.

A força orgásmica é ao mesmo tempo a mais abstrata e a mais material de todas as forças de trabalho, inextricavelmente carnal e numérica, viscosa e digitalizável. Ah, glória fantasmática ou molecular transformável em capital!

O corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Este corpo não se reduz a um corpo pré-discursivo, nem tem seus limites no invólucro carnal que a pele delimita. Esta vida não pode ser entendida como um substrato biológico fora dos entremeios da produção e cultivo próprios da tecno-ciência. Este corpo é uma entidade tecnoviva multiconectada que incorpora tecnologia. Nem organismo, nem máquina: tecnocorpo. Nos anos 1950, MacLuhan, BuckMister Fuller e Wiener já o haviam percebido: as tecnologias de comunicação funcionavam como extensões do corpo. Hoje a situação parece muito mais complexa: o corpo individual funciona como uma extensão das tecnologias globais de comunicação. Dito como a feminista Donna Haraway, o corpo do século XXI é uma plataforma tecnoviva, o resultado de uma implosão irreversível de sujeito e objeto, do natural e do artificial. Daí, a noção própria de “vida” resulta arcaica para identidicar os atores desta nova tecnologia. Portanto, Donna Haraway prefere a noção de “tecnobiopoder” à foucaultiana “biopoder”, posto que já não se trata de poder sobre a vida, de poder de gerir e maximizar a vida, como queria Foucault, mas poder e controle sobre um todo tecnovivo conectado.

No circuito de tecnoprodução de excitação não há corpos vivos ou mortos, mas conectores presentes ou ausentes, atuais ou virtuais. A imagens, os virus, os programas informáticos, os internautas, as vozes que respondem aos telefones rosas, os fármacos, e os animais de laboratório nos quais estes são testados, os embriões congelados, as células tronco, as moléculas de alcaloides ativos... não apresentam na atual economia global um valor em termos de “vivos” ou “mortos”, mas em termos de integráveis ou não na bioeletrônica da excitação global. Haraway nos lembra de que “as figuras do cyborg, assim como la semilla (?), o chip, o gen, o banco de dados, a bomba, o feto, a raça, o cérebro e o ecossistema, descendem de implosões de sujeitos e objetos, do natural e do artificial”. Neste sentido, todo corpo, incluindo aqui o corpo “morto”, pode suscitar força orgásmica, e portanto pode ser portador de potência de produção de capital sexual. Esta força que se deixa converter em capital não reside no bios-, tal como se entende desde Aristóteles a Darwin, senão como tecnoeros, no corpo tecnovivo encantado e sua cibernética amorosa. Disto, conclui-se: tanto biopolítica (política de controle e produção da vida) como tanatopolítica (política de controle e gestão da morte) funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias da potentia gaudendi.

O sexo, os órgãos sexuais, o pensamento, a atração, deslocam-se para o centro da gestão tecnopolítica na medida em que está em jogo a possibilidade de se tirar proveito da força orgásmica. Se os teóricos do pós-fordismo se interessam pelo trabalho imaterial, pelo “trabalho não-objetividade”, pelo “trabalho afetivo”, aos teóricos do capitalismo farmacopornográfico nos interessa o trabalho sexual como processo de subjetivação, abrindo a possibilidade de fazer do sujeito uma reserva interminável de corrida planetária conversível em capital, em abstração, em dígito.

Não devemos ler esta teoria da “força orgásmica” através do prisma hegeliano paranóico ou rousseauniano utópico/distópico: o mercado não é um poder exterior que vem a expropriar, reprimir e controlar os instintos sexuais do indivíduo. Enfrentamo-nos, pelo contrário, com a mais difícil das situações políticas: o corpo não conhece sua forma orgásmica até que a coloca em ação.

A força orgásmica enquanto força de trabalho tem sido progressivamente regulada por um estrito controle tecnobiopolítico. A mesma relação de compra-venda e de dependência que unia o capitalista ao trabalhador regia, até pouco tempo, a relação entre os gêneros como a relação entre o ejaculador e o facilitador da ejaculação. De aquí la definición (?): o feminino, longe de ser uma natureza, é uma qualidade que cobra sua força orgásmica quando pode ser convertida em mercadoria, em objeto de intercâmbio econômico, ou seja, em trabalho. Evidentemente um corpo masculino pode ocupar (de fato já ocupa) no mercado de trabalho sexual uma posição de gênero feminino, quer dizer, pode ver sua potência orgásmica reduzida a capacidade de trabalho.

Mas o controle da potência orgásmica não define unicamente a diferença entre os gêneros, a dicotomia masculino/feminino: define também, e de modo mais geral, a diferença tecnobiopolítica entre heterossexualidade e homossexualidade. A patologização da masturbação e da homossexualidade no século XIX acompanha a constituição de um regime do qual a força orgásmica coletiva é posta a serviço da reprodução heterossexual da espécie. Tal situação será drasticamente transformada com a possibilidade de tirar benefícios da masturbação através do dispositivo pornográfico e de controlar tecnicamente a reprodução sexual através da pílula e da inseminação artificial.

Se pensarmos, seguindo Marx, que “a força de trabalho não é o trabalho de fato realizado, e sim a simples potência de trabalhar”, então teremos de admitie que qualquer corpo, humano ou animal, real ou virtual, feminino ou masculino, possui esta potência masturbatória, potência de fazer ejacular, potentia gaudendi, portanto, potência produtora de capital fixo – posto que participa do processo produtivo sem consumir-se no próprio processo. Até então conhecemos uma relação direta entre pornificação do corpo e grau de opressão. Assim, os corpos historicamente mais pornificados têm sido o corpo da mulher, o corpo infantil, o corpo racializado do escravo, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Porém, não há uma relação ontológica entre anatomia e potentia gaudendi. Corresponde ao escritor francês Miches Houellebecq o mérito de haver sabido desenhar uma formulação distópica deste novo poder do capitalismo global para fabricar a megafurcia (?) e o megapollón (?): em tal contexto, o novo sujeito hegemônico é um corpo (aos poucos codificado como masculino, branco, heterossexual) farmacopornograficamente suplementado (pelo viagra, pela cocaína, pela pornografia, etc), consumidor de serviços sexuais pauperizados (pouco a pocuco exercidos por corpos codificados como femininos, infantis, racializados):

[…] Quando pode, o ocidental trabalha; seu trabalho suele enfastiá-lo e exasperá-lo, mas ele finge que lhe interessa. Aos cinquenta anos, cansado do magistério, das matemáticas e de todo o mais, decidi descobrir o mundo. Acabava de divorciar-me pela terceira vez; no âmbito sexual, não esperava nada em particular. Primeiro viajei a Tailândia; imediatamente depois fui a Madagascar. Desde então não voltei a foder com uma branca; nem sequer voltei a ter vontade de fazê-lo. Acredite-me – digo, tocando com firmeza o braço de Lionel – , já não encontrará na branca a buceta suave, dócil, flexível e musculosa, tudo isso desapareceu por completo.

Aqui a potência não se encontra simplesmente no corpo (“feminino” ou “infantil”) como espaço tradicionalmente imaginado como prediscursivo e natural, mas em um conjunto de representações que o transformam em sexual e desejável. Trata-se em todo caso de um corpo sempre farmacopornográfico, um corpo efeito de um amplo dispositivo de representação e produção cultural.

Revelar nossa condição de trabalhadores/consumidores farmacopornográficos é a condição de possibilidade de toda teoria crítica contemporânea. Se a atual teoria da feminização do trabalho esconde um cum-shot, a ejaculação videográfica diante da tela da comunicação cooperante, é talvez porque os filósofos da biopolítica, diferentemente de Houellebecq, preferem não revelar sua qualidade de clientes do farmacopornomercado global.

No primeiro tomo de Homo Sacer, Giorgio Agamben retoma o conceito de “vida nua” de Walter Benjamin para designar o estatuto biopolítico do sujeito depois de Auschwitz, cujo paradigma seriam o interno do campo de concentração ou o imigrante ilegal retido em um centro de permanência temporal: ser reduzido a existência física, despojado de todo estatuto político ou de cidadania. Poderíamos acrescentar a esta noção de vida nua a de “vida farmacopornográfica”, pois o próprio do corpo despojado de todo estatuto legal ou político em nossas sociedades pós-industriais é servir como fonte de produção de potentia gaudendiNeste sentido, o que caracterizaria aqueles que, segundo Agamben, se vêem reduzidos a “vida nua” tanto nas sociedades democráticas como nos regimes fascistas é precisamente poder ser objeto de uma exloração farmacopornográfica máxima. Por isso não é de estranhar que códigos similares de representação pornográfica dominem as imagens dos prisioneiros de Abu Ghraib ou Guantánamo, a representação erotizada dos adolescentes tailandeses e as páginas da Hot Magazine. Todos estes corpos funcionam já, e de maneira inagotable (?), como fontes carnais e numéricas de capital ejaculante. A distorção aristotélica entre zoe e bios, vida animal desprovida de toda intencionalidade frente a vida digna, vida dotada de sentido, de autodeterminação e substrato de governo biopolítico, teria de ser substituída hoje pela distinção entre raw e bio-tech, entre cru e biotecnoculturalmente produzido, sendo esta última a condição da vida na era farmacopornista. A realidade biotecnológica desprovida de toda condição cívica (o corpo do imigrante, do deportado, do colonizado, da atriz e do ator pornô, da trabalhadora sexual, do animal de laboratório, etc) é a de corpus (já não homo) pornograficus, cuja vida (condição técnica mais que puramente biológica), desprovida de direitos e cidadania, autor e trabalho, está exposta a é construída por aparatos de autovigilância, publicização e mediatização globais. E por tudo isso em nossas democracias pós-industriais, não tanto sob o modelo distópico do campo de concentração ou de extermínio, facilmente denunciáveis como dispositivos de controle, mas formando parte de um bordel-laboratório global integrado multimídia, no qual o controle dos fluxos e dos afetos se levam a cabo através da forma pop da excitação-frustração.

1Preciado escreve técnico-semiótico, inverti a ordem por razão puramente estética.

terça-feira, 19 de junho de 2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Homens, saiam da minha teoria


Um update pessoal...

Para ser sincera, eu sou uma pessoa desinformada: isso não é nada bom. Por saber que a mídia burguesa é, como qualquer conglomerado empresarial, um cartel de entidades político-econômicas comprometidas com o lucro via entretenimento alienado e alienante, poupo-me de ver televisão e não leio revistas ou jornais de grande circulação. É um misto de comodismo com um esforço sincero de não ser agredida em meus ideais sexo-políticos – do ponto de vista simbólico, qualquer emissora que veicule comerciais de produtos de limpeza abusa profundamente da minha assignação bio-política, e acaba por me agredir. Mas não, não está certo, embora, por hoje, seja o que está dentro das minhas capacidades.

Acabo me atualizando por outros blogs e por outras feministas. A quem pense que “assim você já está recebendo a notícia pelo viés político”, a “forma notícia” também não é uma forma de pensar politicamente um acontecimento? Na medida em que o recorte primeiro desta forma de narrar é “deixai à porta da mídia todas as marcas discursivas de sua opinião”, a notícia não é o mecanismo pelo qual uma visão política se traveste de evidência? Para mim, assim o é, de forma que receber as notícias por um olhar feminista muito me agrada.

Para me atualizar, o blog que leio é o da Lola. Com todas as críticas que se fazem dela, uma coisa é certa: o fato de postar todos os dias faz com que seja um método eficiente para me manter atualizada. E o contato com feministas de outras partes do mundo dá uma dimensão importante na luta contra o machismo, no sentido de termos noção das especificidades das lutas pelo mundo afora. Enfim, o post que eu gostaria de comentar é o bom e velho post sobre “homexplicar”: embora a maior parte de mis amigues já tenha lido sobre o assunto, do blog da Lola ou de fontes outras, acho que eu preciso ver essas palavras saindo de mim mesma, como a mais ateia e desiludida das preces. Para entender, preciso fazer essas palavras passarem pelas minhas vísceras neurais, torná-las parte do meu corpo e da minha identidade. E eu o faço através da escrita.

E vamos ao que interessa

Parafraseando uma blogueira estadunidense (aconselho que vocês leiam o post da Lola também), a autora diz:

 “Homexplicanismo não é apenas o ato de um macho se explicar; muitos homens conseguem explicar coisas todos os dias sem serem minimamente ofensivos a suas interlocutoras. Homexplicanismo é quando um cara explica a você, mulher, como fazer algo que você já sabe fazer, ou como você está errada a respeito de algo que você de fato está certa, ou apresentar 'fatos' variados e incorretos sobre algo que você conhece muito melhor que ele. Pontos extras se ele te explicar como você está errada sobre algo ser sexista!

No caso da Lola, ela está visivelmente preocupada com o average man, a pessoa comum, o que, tendo em vista estarmos numa sociedade hetero-capitalista, acaba resultando no indivíduo com inclinações políticas liberais. Minha preocupação, contudo, é outra. Meu buraco é mais à esquerda.

Vivo, atualmente, cercada de pessoas que assim se reivindicam. Isso é excelente! Vivo em contato intenso com marxistas, anarquistas, enfim, pessoas comprometidas com o fim do capitalismo, cada uma a seu jeito, e que parecem entender perfeitamente o problema da opressão à mulher. São pessoas que, pelo menos em suas performances narrativas, se mostram não só simpáticas (hoje acredito que toda forma de simpatia é na verdade uma maneira disfarçada de apatia), mas solidárias, e sobretudo engajadas. Não se tratam de pessoas limitadas àquele tapinha nas costas, àquele go girl, ou à máxima “o mundo precisa de pessoas como você”. São pessoas que lêem, que estão do seu lado no dia-a-dia, que são o ombro no qual você chora ao final daquela discussão que você teve com a pessoa mais machista do mundo. Pessoas que citam trechos inteiros de uma Butler (uma? Será mulher?), Beauvoir ou Kollontai, que em assembléias e plenárias pegam do microfone para defender você com unhas e dentes.

E no entanto, se você pergunta para eles (sim, homens), onde está o problema, o problema está em todo lugar: é o capitalismo, é o machismo, é a exterioridade absoluta que nunca tem nada a ver com suas identidades. E aí você pega a galera na curva da contradição: são homens, isto é, corpos bio-politicamente assinalados a uma identidade de gênero relacionada com uma estrutura que os empodera, mas que em hipótese alguma consideram que a relação de poder passe por suas identidades, ainda que não parta delas individualmente. Pessoas que se comprometem a relações monogâmicas sem a menor pretensão de cumpri-las, enredando suas parceiras em relações instrumentais das quais visam a obter apenas uma confortável e perene fonte de sexo e afeto. Homens que gritam GOL e afirmam que estamos numa pátria de chuteiras, diante de uma indústria pseudo-esportiva que vive de alimentar (e ser alimentada) por um modelo violento de masculinidade (aliás, existe modelo não-violento de masculinidade?).

E o que acontece quando você coloca os machos na parede e cobra respostas coerentes sobre o disparate deste comportamento é o mais fenomenal homexplicanismo: eles vêm com o caminhãozinho das mais diversas citações feministas e jogam na sua cabeça fazendo tudo soar com um incrível ineditismo! Eles se apropriam daquelas que são as suas armas para lutar contra a opressão à qual desde a ultrassonografia você está assinalada, usando este arsenal teórico, que é seu, contra você. Para manter todos os privilégios relacionados à sorte cósmica de terem nascido geneticamente com um cromossomo Y.

A esses homens, peço que me dêem licença e saiam da minha teoria. Ou antes, talvez esteja mais do que na hora de repensarmos esta miscelânia de gente que é a esquerda: que ela deixe de ser o signo da luta do homem branco pela liberdade de sua etnia, sua orientação sexual e sua identidade de gênero, e passe a ser o signo da luta contra toda e qualquer opressão. Para mim, se você não é feminista, simplesmente não é de esquerda. Fim de papo.

domingo, 3 de junho de 2012

VERDADE VERDADEIRA


Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Somos ensinadxs desde bem pequenxs que existe uma verdade. Algumas coisas são verdadeiras e outras são falsas. “Você não deve contar mentiras, diga sempre a verdade” diz aquela vozinha repressora encarnada em tantas figuras adultas diferentes que é até difícil enumerá-las. Nós crescemos num afã de buscar a verdade a todo instante, quase como se ela fosse um objeto mágico e secreto, o pote de ouro no final do arco-íris.

Enquanto somos criança fica bem claro que a verdade não nos pertence, ela é do mudo dos adultos. Mamãe e papai possuem a verdade, se você não sabe alguma coisa, pergunte a eles, os adultos sabem. X professorx da escolinha também possui a verdade, e elx vai compartilhar pequenas porções de verdade com você no seu longo e árduo caminho de adestramento para se tornar um bom adulto possuidor de verdade.

O tempo todo, a verdade paira sobre nossas cabeças, inatingível e imaterial. Apesar de intocável ela parece estar sempre presente.

Quando eu entrei nessa graduação eu já não tinha ilusões. Sendo essa a minha segunda, eu já estava ciente dos egos inchados dxs professorxs doutorxs grandes possuidorxs da verdade. Mas aqui, num curso de humanas, era exatamente esse o conceito que seria tema de todo meu semestre. Logo na primeira semana de aula tive que ouvir a definição da verdade. “Anota no caderno porque cai na prova, tá.”

Definição de verdade... Eu não consigo nem pensar nisso sem esboçar um sorrisinho no canto da boca.

“Verdade é um conceito absoluto.” Opa... “absoluto?” Ousei perguntar... Mas eu já sabia a resposta que me seria dada, ela é sempre a mesma, seja na academia ou fora dela. E o que eu acho mais curioso é que o exemplo que eu ouço para ilustrar o suposto absolutismo da verdade também é sempre o mesmo.

“Claro que a verdade é absoluta. Não pode ser relativa. Se for relativa vira opinião. Você acha isso, eu acho aquilo e quem está certo? No relativismo qualquer coisa é justificada. Então podemos dizer que Hitler estava certo. Era a verdade dele. Não! A verdade é absoluta. Não tem como ser diferente.”

E aí o coleguinha na mesa ao lado ri pra mim e brinca baixinho “sua pós-moderna”...

E eu acho engraçado o exemplo citando Hitler. Sempre o mesmo! É moda por aí as pessoas apontarem o dedo e acharem o máximo as produções hollywoodianas sobre o holocausto. Mas na hora de exercer o fascismo nosso de cada dia, aí tudo muda. A gente vê os Bolsonaros da vida aparecendo aí na mídia todo dia, e muita gente concordando com ele. E a relativista sou eu... aff...

Veja bem, a verdade não pode ser absoluta, simplesmente porque ela é um conceito (apesar de ter ganhado status de entidade). Todo conceito é criado, inventado. Quem definiu o que é verdade? Porque essa definição foi a escolhida e não outra qualquer? Psiu... segredo... porque conceitos são criações que tem finalidade política... oops... contei...

Imagina só se a sociedade ensinasse às crianças que verdade não existe, se elas aprendessem que são livres... Oh! Isso seria anarquia! (rsrs) Como produziríamos adultos capazes de trabalhar resignados produzindo a tal da mais-valia pro patrão? Como produziríamos mulheres quietinhas que seguem enchendo suas barrigas de bebês novinhos em folha, prontos pra receberem seus códigos de barra? Imagina se as pessoas acreditassem que são livres para viverem suas vidas da forma que desejassem, que tudo isso é um grande teatro orquestrado pra encher o bolso de alguns poucos...

Certa vez, conversando com minha amiga e companheira de blog, ela discorria sobre a pós-modernidade. Lembro muito bem das suas palavras: “sabe por que a academia não gosta da pós-modernidade? Porque esse é o momento histórico onde as supostas minorias estão invadindo a academia. Negros, mulheres, gays... todo mundo sentando, escrevendo, publicando e dizendo que aquela verdade ali, que foi proferida por milênios pelo homem peniano, ocidental, heterossexual, não nos contempla não... Isso aí que vocês tão falando não tem nada a ver com a minha realidade, e agora é a nossa vez de falar... Então sentem aí e me ouçam... E é claro que a academia não vai sentar e ouvir porra nenhuma! Ninguém quer ouvir preto falar! Ninguém quer ouvir mulher falar! Ninguém quer ouvir viado falar! Ninguém quer ouvir sapatona falar! E se você for tudo isso ao mesmo tempo aí que ninguém quer te ouvir mesmo!”... É Minkah, você tem razão...

Essa verdade de vocês é absoluta única e exclusivamente porque ela é ditatorial. Erga sua voz contra ela e serás penalizado. Aliás, nem precisa tanto, basta questioná-la e já serás penalizado.

Por que meninas não podem gostar de meninas e meninos de meninos? Por que meninos não podem usar roupas de meninas e meninas as de meninos? Aliás, o que são meninas e meninos? Quem disse que ter um pinto ou uma buceta te define? Por que eu tenho que desejar casar e ter filhos? Só por que eu tenho um útero? Eu também tenho o apêndice, eu devia estar fazendo o que com ele? Por que eu preciso comer carne? Preciso mesmo? Eu vou morrer por acaso se deixar de comer animais? Por que temos que fazer testes em animais? É impossível produzir conhecimento médico sem torturar seres sencientes? E a gente precisa desse conhecimento? Aliás, o que é conhecimento? Ah... é outro conceito...

Veja, essas perguntas não são um brain storm aleatório. São perguntas que tem sido feitas justamente no intuito de mostrar a cagada que é apostar nesse sistema que tá aí. E o simples fato de pensar nessas perguntas já é subversivo.

E nessa hora sempre tem um engraçadinho que vai dizer assim “ah, mas a gente pode achar que tem a verdade, quando não temos. Então mudamos a forma de agir e pensar, a cultura é mutável, coisas que já foram consideradas normais hoje não existem mais, como escravidão. Mas isso não significa que verdade não exista, apenas que acreditávamos em algo falso”.

Sabe o que eu escuto? “Eu estou sentado aqui nessa cadeira dourada há milênios conduzindo a humanidade lindamente como fantoches bobalhões me servindo, e agora vem essa galera aí achando que podem me desbancar? Eu não abro mão do meu conceito, então vou usar aqui de todo o meu poder de retórica rebuscada pra convencê-los. Vou jogar aqui um exemplo pra agradá-los... mas claro que todo mundo sabe que escravidão não acabou coisa nenhuma. Ah, mas se alguém perguntar a gente lembra logo da Princesa Izabel que fica tudo certo. Mas meu conceito é MEU! E ninguém tira ele de mim!”

Aí quando eu digo que isso é religião a maluca sou eu... Será possível que ninguém nota a semelhança entre essa discussão de verdade e o pastor esbravejando com a bíblia na mão? Galera, verdade absoluta é o Deus acadêmico!!! Oiii!!! Aloooouuuu!!!! Ninguém nunca poderá ter certeza se atingiu a verdade ou não, mas isso não faz com que ela não exista, nem deixe de ser absoluta. Só falta dizer “mesmo que você não acredite na verdade, ela acredita em você”.

De novo... depois a maluca relativista sou eu... aff...

domingo, 15 de abril de 2012

O CORPO QUE HABITA MEU ESPELHO

Ela se olhou no espelho. Viu a silhueta por debaixo das roupas largas. Sentiu o tecido que lhe tocava a pele de forma suave. Acariciou os cabelos da cabeça. Sentiu com a ponta dos dedos que seus lábios eram, de fato, macios.

Sentiu calor.

Tirou a calça roxa que ficou jogada sobre a cadeira. Pode notar a calcinha cor de pele, já velha e desgastada, quase sem elástico, que deixava os pentelhos escaparem e se escondia por entre as nádegas volumosas. Notou aquela pinta que existe bem sobre a nádega esquerda. Se permitiu admirá-la.

Virou de frente.

Se demorou naqueles pentelhos que escapavam. Por que não haveriam de escapar? Quem os haviam condenado a prisão de algodão? Levantou uma perna lentamente, viu o volume que, juntos, eles tinham. Gostou do que viu.

Se demorou um pouco mais nos quadris. Com a ponta dos dedos, seguida de perto pelos olhos sedentos, acompanhou a linha entre a pele e os ossos, os ossos e a carne... Pulou por cada pinta, cada estria, cada marca...

Notou a barriguinha saliente que habitava mais acima. O conjunto dessa obra sempre fez muito sentido. O umbigo bem desenhado, o corpo carnudo com pequenos ossos saltados.

Se abraçou.

Acariciou os braços. Puxou levemente a alça da blusa e admirou por um instante a tatuagem sobre o ombro esquerdo. Cada pedaço de pele colorida gritava e ardia de desejo e saliva. Num puxão tirou a blusa e ficou a admirar o sutiã. Talvez a única peça de roupa disforme ali... Achou-o muito estranho e se perguntou o que ele fazia ali.

Com uma das mãos puxou o botão que ficava entre os seios. Ele saiu rápido e ligeiro num poup-up. Se inclinou para esquerda buscando ver a pinta que sabia se esconder no seio direito. Ali estava ela... Admirou novamente o conjunto da obra. Tudo parecia perfeito.

Ficou satisfeita.

Desejou por um segundo que alguém a tocasse, a beijasse, a percebesse... Desejou um pouco mais que alguém entendesse esse corpo perfeito em suas imperfeições. Desejou sentir o mais profundo desejo, o que estremece e faz esquecer. Desejou nunca ter que pedir por ele... Desejou nunca ter que desejá-lo. Desejou que ele apenas fosse...

Aumentou o som...

domingo, 8 de abril de 2012

CRISE, MINHA CRISE... MINHA TOTALMENTE CRISE...


Foram muitos dias de muitas emoções reprimidas vindo a tona de forma violenta. Foram dias de dor, alegria, choro, confusão e força. Saio daqui com uma percepção um pouco mais completa de mim mesma. Saio daqui com uma impressão um pouco mais precisa dos meus pontos mais escuros, tanto os objetivos quanto subjetivos...

Já fazem alguns anos (não muitos) que eu entrei em crise com a minha sexualidade. E essa crise, de alguma forma estranhamente familiar, parece só aumentar. Eu vinha num processo de achar que essa crise sem fim seria um problema exclusivamente meu, como se eu fosse a freak, a aberração, incapaz de lidar e entender meu corpo conectado a minha mente. Afinal, nos ensinam que crises tem de ser superadas, momentos de fraqueza e superação. Essa crise continuada, me parece agora, um estado pleno de construtividade da desconstrução.

Que eu não desejava “amar” da mesma forma que já “amei” (se é que aquilo que sentia era, de fato, amor) eu já sabia. Que eu desejava ampliar minha visão e entendimento sobre o que é, e como se faz sexo, eu também já sabia. Que eu desejava tocar e ser tocada, sentir pele, cheiros e fluidos de uma forma sexuadamente não-sexualizada eu também já sabia.

O que eu talvez não soubesse, talvez apenas desconfiasse de forma tímida e insegura, era que tudo isso brota de dentro de uma forma violenta, expontanea e doce ao mesmo tempo. Todas as minhas crises entraram em conjunção, num quase perfeito uníssono. E de repente, todo o barulho se tornou harmonioso... Não eram mais apenas gritos, eram gritos descontroladamente controlados, eram notas agressivamente carinhosas, era uma grande orquestra que tocava o hard core dentro de mim...

A crise não veio pra ser superada. A crise não tem finalidade externa, ela não serve pra ninguém mais além de mim mesma, ela não segue nenhum juízo moral alheio nem busca lógicas de honra e glória. A crise não me torna fraca, muito menos confusa. Ao contrário!

A crise me tornou uma mulher mais lúcida! Obrigada por estar ao meu lado, obrigada por dormir na minha cama, obrigada por me ensaboar quando tomo banho, obrigada por me cobrir quando saio na rua, obrigada por me desnudar mesmo quando ainda estou vestida, obrigada por me mostrar que o gozo escorre sem nunca ter feito sujeira nenhuma...

terça-feira, 27 de março de 2012

A quem interessar possa, a lista dos meus defeitos

Por favor não me sigam. Peçam-me conselhos, façam-me perguntas, tenham em mim um caminho, mas por favor, não tenham em mim qualquer destino.
Eu tenho cá, comigo, um mapa muito bom que – assim acredito – está me levando onde eu quero ir. E seria bom se você viesse comigo, pois caminho é coisa que se faz enquanto anda, do contrário, uma estrada é só uma linha no chão. O movimento é o que dá o tom da rota; o mundo gira, mas por si só, não constitui viagem. Então, venha comigo. Mas não me siga.
Meu feminismo não é uma caça às bruxas. Se transformarmos isso num clube de delações, estaremos todos cegos. Surpresa? Cai o pano: eu sou machista! E como não? Se fui criada e militarizada dentro de meu gênero tanto quanto você. E passo de perto tudo o que você sente.

Eu tenho ciúmes.

E tenho medo de morrer.

Não acredito em Deus, mas tenho medo de demônio.

De filme de terror.

Eu choro, às vezes, de noite.

E acendo uma vela: vai que... né?

                Já pedi por favor, não convém pedir desculpas. Não quero sentença, não quero perdão: não quero nenhuma saída cristã para os meus problemas. Talvez um pouco de dialética: se é pelos olhos da opressão que procuro esquadrinhar a saída, talvez não acabe levando algo dela, comigo? É possível. E a liberdade, onde fica? Isso eu não sei: virando uma esquina, depois de uma estrela, talvez...

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dever de casa

Não existe arqueologia da mente. O melhor que pdoemos é olhar para o passado e ser francos sobre o fato de que toda memória é uma narrativa. Toda memória é um pouco inventada. Há grande delete, para muita gente que conheço, em se pensar como algo que se fez ao sabor da vida: a psiquê como algo que flana nas marés da cultura e nas narrativas que tanto nos atravessam quanto nos formatam, e essas narrativas como a conversa despretensiosa que se conta enquanto se descascam as batatas do purê. Aquela conversa de cozinha que vai da meteorologia à existência do divino escalando apenas em um "por favor, pega aquela panela para mim".

Para mim não há muito deleite nisso. Já vieram com a camisa de força discursiva, dizendo que eu tenho um transtorno qualquer de desafio às ordens. Eu tenho mais pé atrás com quem obedece do que com quem desafia, mas devaneios à parte, coisa que mudou minha vida foi Manuel Castells dizer para mim que as identidades são invenções. Desde as identidades nacionais, étnicas e culturais, quanto as individuais. Tente entender que ouvir isso aos 18 anos muda tudo: então eu posso ser o que eu quiser? Então eu posso definitivamente me sentar comigo mesma, no fundo de minha mente, sendo autora - ou ao menos narradora - dos processos que me configuram? Não estou, então, nas benfazejas mãos de uma cultura mãe, mas estou prensada nos dentes de uma cultura máquina? E com meu próprio ser, minha mera existência, já engastalha essas engrenagens todas? Quanto poder e quanta liberdade nessa descoberta.

Também quer dizer que, narradorxs que somos, ativamente, dos processos que nos constituem, não há descanso. Vem-me à cabeça nossa Bouvoir (não sei escrever o nome dela) dizendo que "não se nasce mulher, torna-se", e o fato de que o tornar-se é sempre inacabado. É um devir que, como diria Lacan, não cessa de não se inscrever. É mais constituído da falta do que do próprio constituinte. E quando eu decidi ser feminista, embora isso não tenha uma data que eu possa comemorar (eu faria festas incríveis), percebi que livros feministas não caíam do céu. E que era preciso me engajar no mais longo dever de casa da minha vida: tornar-me feminista, todos os dias, em todos os momentos, sob a pena de ser moída, digerida e eliminada pela máquina que está aí - ou aqui mesmo.

Ninguém disse que ia ser fácil. E desde que saí do armário com as minhas ideologias a me pavonear - porque meu feminismo é bapho, é diva! - todos os dias alguém me pergunta o que pode fazer para deixar de ser machista. Como já escrevi, um ano atrás, sobre o nosso cristianismo, escrevo com igual tranquilidade sobre o machismo: você vai morrer com o seu. Não concordo com quem diz que machismo se restringe apenas à ideia de que "homem>mulher" porque, veja bem, se todas as práticas de nossa cultura são estruturadas por esse pensamento, não basta mudar a ideia e aceitar no seu coração a oração de Saint Simone: o mero ser-quem-você-é e tudo que isso implica já é falocêntrico. Não é algo que habita nossa cabeça, mas algo que nos constitui, e nesse caso, repetindo a metáfora, seu machismo é um fungo, e fungo não tem cabeça. Ele não tem uma parte vital que, eliminada, faça o resto desaparecer. Ser-se é reproduzir a opressão e ponto: e só vai mudar se você, além de mudar de ideia, trabalhar a fundo para mudar as suas práticas.

Viajando nos tumblrs da vida, encontrei um material que pode ser um bom dever de casa para quem está nessa vibe de abandonar suas práticas opressivas. Como disse minha amiga no post anterior, de fato nós, ativistas, no maior das vezes nos dirigimos ao oprimido, mas pouco ao opressor. No meu caso, é um misto de despreparo e comodismo. Estou aqui sentadinha na poltrona do que "eu já sei fazer, e faço bem". E esse materialzinho gringo veio a calhar - não me lembro do nome do coletivo que produziu, o que é uma pena, mas veio do http://bigfatfeminist.tumblr.com/, tumblr que eu sigo e me diverte, além de me ajudar.

Então, vocês que se acham meninos, esse dever de casa é para vocês. É para imprimir e levar no bolso, colar no espelho do banheiro, e tudo mais.

Algumas dicas interessantes para homens desafiarem os privilégios de seu gênero.

1)     Reaja quando ouvir piadinhas sexistas, como piadas de loura-burra ou piadinhas sobre estupro.
2)     Evite palavras que tornem o gênero feminino algo negativo, como vadia, piranha, galinha, mulherzinha.
3)     Reconheça quando você “dá uma viajada” enquanto mulheres estão falando. Reconheça quando você dá mais valor à opinião de um homem meramente por ele ser homem. Reconheça que você consulta outros homens em momento de dúvida, e que nesses momentos você poderia consultar uma mulher, e simplesmente não o faz.
4)     Reconheça os momentos em que você “dá uma viajada” enquanto ouve uma mulher por estar sexualizando seu corpo.
5)     Em atividades de grupo (seminários, plenárias), tome para si tarefas tais como xerocar, tomar anotações, fazer ligações telefônicas, providenciar creche; engaje-se em atividades tipicamente atribuídas à mulher. Encoraje mulheres a tomarem posições geralmente ocupadas por homens, tais como liderar encontros e atividades, atuar como figura pública.
6)     Procure usar palavras neutras em gênero (criança, pessoa, gente) ou incluir todos os gêneros em seu discurso – ou pelo menos dois, “trabalhadores e trabalhadoras”, por exemplo.
7)     Não diga a uma mulher como ela deve entender, expressar ou conceituar experiências de discriminação e sexismo.
8)     Se uma mulher se ofender com alguma de suas atitudes ou palavras, não argumente de imediato: ouça-a. Se ela não aceitar suas desculpas, reconheça que ela não te deve desculpas. Ela não te deve nada.
9)     Cheque regularmente com sua parceira se ela está confortável, realizada e empoderada em sua intimidade.
10)  Não faça piadinhas sexistas sobre como ela te arrasta para atividades de mulherzinha, te força a sair e fazer compras, ou está irritável por conta da menstruação e/ou TPM. Confronte quem faz essas piadas. Não faça o papel do “cavalheiro sacrificado que pacientemente agüenta as frivolidades de carregar as compras da companheira”.
11)  Seja educado, atencioso e dedicado para com mulheres, não porque sejam frágeis, débeis e incompletas, mas, pelo contrário, porque são seres humanos inteiros, plenos e capazes, que merecem tanto respeito quanto qualquer outro.
12)  Quando uma mulher estiver executando uma tarefa, evite abordá-la e “ensiná-la a fazer o seu trabalho”. Claro que, se ela solicitar sua ajuda, você pode (e deve) interferir. Do contrário, simplesmente observe e aprenda que mulheres são tão perfeitamente capazes quanto você.
13)  Desculpe-se assim que perceber que ofendeu alguém, quer a pessoa expresse isso, quer não. Diga com franqueza: “desculpas por ter dito isso, reconheço que eu estava errado e vou tentar não fazer isso daqui por diante”.
14)  Não use expressões tais como “aja como um homem”, “crie colhões”, “homem de verdade” ou “pare de ser uma mulherzinha”.
15)  Rejeite ou critique mídia e entretenimento que promovam sexismo. Não seja complacente com sexismo e discriminação só porque “ah, mas no final o filme foi bom”.
16)   Não se ofenda caso uma mulher recuse sua ajuda. Ainda que você tenha genuinamente tentado ser um cara legal, se oferecendo para carregar objetos pesados ou segurando uma porta para ela passar, aceite que talvez ela não esteja precisando da sua ajuda. Procure não achá-la metida, convencida, arrogante: pense nela como alguém independente e corajosa.
17)   Reconheça: pode até haver mulheres que odeiam homens (misândricas), o que é uma discriminação. Porém, são casos isolados, enquanto o sexismo contra mulheres é forjado por séculos de literatura, discurso científico, poder/conhecimento, filosofia, representações midiáticas, senso comum, etc.
18)  Reconheça que certas representações da mulher que você pode achar positivas ou justas podem não estar nos ajudando. Observe que a maior parte dessas representações positivas são altamente sexualizadas, para poder apelar ao público masculino. (Exemplo clássico: super-heroínas).
19)   Entenda que certas conquistas supostamente definitivas do nosso gênero (termos uma opinião, podermos falar de nossos pensamentos livremente, que podemos estar em qualquer espaço que desejarmos, de que podemos nos tornar aquilo que sonharmos) são conquistas duras e diárias para milhares de mulheres, e não concessões amplas ao nosso gênero.
20)  Não fique se explicando com frases tais como “eu não estava querendo dizer nada com isso”, “foi só uma piada, você está exagerando”, “eu não sou sexista, sou amigo de várias mulheres”. Se você ofendeu uma mulher, ouça com atenção e aprenda com essa experiência.
21)  Não policie o corpo de uma mulher, dizendo “você não deveria usar tal ou tal maquiagem”, “essa calça faz você parecer cagada”, “você está vestida como uma piranha,será tratada como uma”.