Por Beatriz Preciado. Este é um excerto da obra Testo Yonqui traduzido pelo Coletivo Caju, sem fins lucrativos. TODO PODER AO FEMINISMO!
A ERA
FARMACOPORNOGRÁFICA
Nasci
em 1970, momento no qual a economia do automóvel, que parecia então
estar em seu apogeu, começava a declinar. Meu pai tinha a primeira e
mais importante loja de automóveis de Burgos, uma vila gótica de
curas (?) e militares na qual
Franco havia instalado a nova capital simbólica da Espanha fascista.
Ganhasse a guerra Hitler, a nova Europa haver-se-ia assentado em
torno desses polos (certamente desiguais), Burgos e Berlin, ou amo
menos com isso sonhava o general galego. Na Garaje Central,
assim se chamava o florescente negócio de meu pai, situado na
General Mola (o militar que havia dirigido o levante contra o regime
republicano em 1936), eram guardados os carros mais caros da cidade,
os carros dos ricos e chiques. Em minha casa não havia livros, só
havia carros. Chryslers de motor Slant Six, vários renaults Gordini,
Dauphine e Ondine (“os carros das viúvas”, assim os chamavam na
época, porque tinham a fama de acabar, nas curvas, com a vida dos
maridos automobilistas), renaults D-S (que os espanhóis chamavam
“tubarões”), e alguns Standards trazidos da Inglaterra e
reservados (abjudicados?) aos médicos. A esses adicionavam-se a
coleção de carros antigos que meu pai vinha comprando: um Mercedes
“Lola Flores” negro, um citröen cinza Traction Avant dos anos
1930, um Ford 17 cavalos, um dodge Dart Swinger, um citroën
“culo-rana” de 1928 e um cadillac 8 cilindros. Meu pai investiu,
naqueles anos, na indústria de ladrilhos, que veio abaixo em 1975
(acidentalmente, como a ditadura) com a crise do petróleo. Ao final
teve de vender sua coleção de carros para pagar a quebra da
fábrica. Eu chorei por aqueles carros. Entretanto, eu estava
crescendo como uma pequena marimacho.
Meu pai choraria por isso.
Durante essa época, recente e todavia já irrecuperável, que hoje
conhecemos como “fordismo”, a indústria do automóvel sintetiza
e define um modo específico de produção e de consumo, uma
temporalização taylorizante da vida, uma estética polícroma e
lisa do objeto inanimado, uma forma de pensar o espaço interior e de
habitar a cidade, um agenciamento conflitante do corpo e da máquina,
um modo descontínuo de desejar e de resistir. Nos anos que se seguem
à crise energética e àqueda das cadeias de montagem,
procurar-se-iasm novos setores portadores das transformações da
economia global. Se falarão assim das indústrias bioquímicas,
eletrônicas, informáticas ou de comunicação como novos suportes
industriais do capitalismo... Mas esses discursos seguirão sendo
insuficientes para explicar a produção de valor e da vida na
sociedade atual.
Todavia, parece possível esquadrinhar a cronologia das
transformações da produção industrial do último século do ponto
de vista do que se converterá progressivamente no negócio do novo
milênio: a gestão política e técnica do corpo, do sexo e da
sexualidade. Dito de outra forma, resulta hoje filosoficamente
pertinente levar a cabo uma análise sexopolítica da economia
mundial.
Se do ponto de vista econômico, a transição a um terceiro tipo de
capitalismo, depois dos regimes escravista e industrial, se situa
habitualmente em torno dos anos setenta, a condução de um novo tipo
de “governabilidade do ser vivo” emerge das ruínas urbanas,
corporais, psíquicas e ecológicas da Segunda Guerra Mundial – e
no caso espanhol, da Guerra Civil.
Mas como o sexo e a sexualidade, vocês se perguntarão,
convertem-se no centro da atividade política e econômica? Sigam-me:
Durante
o período da Guerra Fria. Os Estados Unidos investem mais dólares
na investigação científica sobre o sexo e a sexualidade que nenhum
outro país ao longo da história. A mutação do capitalismo a que
assistiremos se caracterizará não somente pela transformação do
sexo em objeto de gestão política da vida (como já havia intuido
Foucault em sua descrição “biopolítica” dos novos sistemas de
controle social), como também esta gestão se levará a cabo através
de novas dinâmicas do tecnocapitalismo avançado. Pensemos
simplesmente que período que se estende do final da Primeira Guerra
Mundial à Guerra Fria constitui um momento sem precedente de
visibilidade das mulheres no espaço público, assim como de
emergência de formas visíveis e politizadas da homossexualidade em
lugares tão insuspeitados como, por exemplo, o exército
estadunidense. O macartismo ianque nos anos 1950 soma à perseguição
patriótica do comunismo a luta contra a homossexualidade como forma
de antinacionalismo, ao mesmo tempo em que exalta valores da família,
da masculinidade trabalhadora e da maternidade doméstica. Abrem-se
durante esse tempo dezenas de centros de investigação sobre a
sexualidade ocidental como parte de um programa de saúde pública.
Ao mesmo tempo, os doutores George Henry e Robert L Dickinson
executam a primeira demografia do “desvio sexual”, um estudo
epidemiológico conhecido pelo nome de “Variante Sexual”, ao qual
seguir-se-ão, mais tarde, os Relatórios Kinsey sobre a sexualidade
e os protocolos de Stoller sobre a feminilidade e a masculinidade.
Entretanto, colaboram com o exército estadunidense os arquitetos Ray
e Charles Eames para fabricar plaquilhas de identificação dos
membros mutilados na guerra a partir de placas de compensado
playwood. Poucos anos
depois utilizarão o mesmo material para construir os móveis que
caracterizarão o design ligeiro e a arquitetura americana modulada.
Harry Benjamin põe em marcha e sistematiza a utilização clínica
de moléculas hormonais, serão comercializadas as primeiras
moléculas naturais de progesterona e estrogêneo obtidos a partir do
soro sanguíneo de uma égua (Premarin) e pouco mais tarde sintéticas
(Norethindrone). Em 1946 é inventada a primeira pílula antibaby
a base de estrógenos sintéticos – o estrogêneo será
imediatamente a molécula farmacêutica mais utilizada de toda a
história da humanidade. Em 1947, os laboratórios Eli Lily (Indiana,
EUA) comercializam a molécula metadona (o mais simples dos opiáceos)
como analgésico, convertendo-se nos anos 1970 no tratamento básico
de substituição no vício em heroína; neste mesmo ano, o
pseudopsiquiatra ianque John Money inventa o termo gênero,
diferenciando-o do tradicional “sexo” para nomear o pertencimento
de um indivíduo a um grupo culturalmente reconhecido como
“masculino” ou “feminino” e afirma que é possível
“modificar o gênero de qualquer bebê até seus 18 meses”.
Multiplica-se exponencialmente a produção de elementos
transurânicos, entre eles os do plutônio, combustível nuclear
empregado mitilarmente durante a Segunda Guerra Mundial e que agora
se converte em material de uso no setor civil: o nível de toxicidade
dos elementos transurânicos sobrepuja o de qualquer outro elemento
terrestre, gerando uma nova forma de vulnerabilidade da vida. O
lifting facial e diversas intervenções de cirurgia estética se
convertem pela primeira vez em técnicas de consumo de massa nos EUA
e Europa. Andy Warhol se fotografa durante uma cirurgia de lifting
facial, fazendo de seu corpo um dos objetos pop da sociedade de
consumo. Frente à ameaça induzida pelo nazismo e pelas retóricas
racistas de uma detecção da diferença racial ou religiosa através
de signos corporais, a “des-circuncisão”, reconstrução
artificial do prepúcio do pênis, converte-se em uma das cirurgias
estéticas mais praticadas nos EUA nos anos posteriores à Segunda
Guerra Mundial. Simultaneamente, generaliza-se o uso do plástico
para a fabricação de objetos da vida cotidiana. Este material
viscoso e semirrígido, impermeável, isolante elétrico e térmico,
produzido a partir da multiplicação artificial de átomos de
carbono em largas cadeias moleculares de compostos orgânicos
derivados do petróleo e cuja queima é altamente contaminante,
definirá as condições materiais de uma transformação ecológica
em grande escala: destruição dos recursos energéticos primitivos
do planeta, consumo rápido e alta contaminação. Em 1953, o soldado
americano George W. Jorgensen se transforma em Christine, tornando-se
o primeiro transexual mediatizado; Hugh Hefner cria Playboy, a
primeira revista pornô ianque difundida em bancas de jornal, com a
fotografia de Marilyn Monroe nua na capa do primeiro número. Na
Espanha franquista, a Lei de Vadios e Meliantes de 1954 inclui pela
primeira vez homossexuais e sexualidades desviantes. O comandante
Antonio Vallejo-Nájera, chefe dos serviços médico-militares, e
Juan José López Ibor conduzem sucessivas investigações com o fim
de examinar as raízes psico-físicas do marxismo (para descobrir o
famoso “gen vermelho”), a homossexualidade e a interssexualidade,
preconizando, apesar da escassa tecnificação das instituições
médicas durante o franquismo, a lobotomia, as terapias de
modificação de conduta, o tratamento mediante eletrochoque e a
castração terapêuticos por razões de eugenia; Em 1958 faz-se, na
Rússia, a primeira faloplastia (construção de um pênis a partir
de um enxerto da pele e dos músculos do braço), como parte de um
processo de mudança de sexo de mulher a homem. Em 1960, os
laboratórios Eli Lilly comercializam Secobarbital, um barbitúrico
com propriedades anestésicas, sedativas e hipnóticas concebido para
o tratamento da epilepsia, insônia ou como anestésico para
cirurgias breves. Secobarbital, mas conhecido como a “pílula
vermelha” ou doll
(em inglês. “boneca”, nota da tradutora), torna-se uma das
drogas da cultura rock underground dos anos 1960; ao mesmo tempo,
Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline utilizam pela primeira vez o
termo cyborg para referir-se a um organismo tecnicamente suplementado
que poderia viver em um meio-ambiente extraterrestre e operar como um
“sistema homeostático integrado inconsciente”. Tratava-se de um
rato de laboratório à qual se havia implantado uma prótese
osmótica que arrastava em forma de cabo cibernético. Em 1966 são
inventados os primeiros anti-depressivos que intervêm diretamente na
síntese do neurotransmissor serotonina, e que levarão até 1977 à
concepção da molécula de Floxetina que será depois comercializada
sob diversos nomes, dependendo do laboratório, dos quais o mais
conhecido será o Prozac, fabricado por Eli Lilly. Em 1969 cria-se,
como parte de um programa de investicação militar estadunidense,
arpanet, a primeira
“rede de redes” de computadores interconectados capazes de
transmitir informação, que dará lugar mais tarde à Internet. A 18
de setembro de 1970 morre Jimi Hendriz, depois de haver ingerido
(acidentalmente, suicídio ou assassinato?) um coquetel farmacêutico
que continha pelo menos nove pílulas de Secobarbital. Em 1971 o
Reino Unido estabelece a Lei de Abuso de Drogas, que regula o consumo
e tráfico de substâncias psicotrópicas. A gravidade dos crimes por
uso e tráfico vai desde a categoria A (cocaína, metadona, morfina,
etc) até a categoria C (cannabis, ketamina, etc). O álcool e o
tabaco ficam fora desta classificação. Em 1972 Gerard Damiano
realiza, com dinheiro da máfia californiana, Garganta Profunda, uma
das primeiras películas pornô comercializadas publicamente nos EUA.
Garganta Profunda se converterá em um dos filmes mais vistos de
todos os tempos, gerando lucros de mais de seiscentos milhões de
dólares. Estoura a partir de então a produção cinematográfica
pornô, passando de trinta películas clandestinas em 1950 a dois mil
e quinhentas em 1970. Em 1973 retira-se a homossexualidade da lista
de enfermidades mentais do DSM (Manual de Diagnóstico e Estatístico
dos Transtornos Mentais). Em 1974, o soviético Victor
Konstantinovich Kalnberz registra a patente do primeiro implante
peniano a base de hastes plásticas de polietileno como tratamento
para falta de ereção, criando um pênis natural ereto
permanentemente. Esses implantes serão abandonados em função de
suas variantes químicas por serem “fisicamente incômodos e
emocionalmente desconcertantes”. Em 1977, o estado de Oklahoma
introduz a primeira injeção letal a base de um composto barbitúrico
semelhante à pílula vermelha para aplicar a pena de morte; um
método similar havia sido utilizado já no chamado programa Ação
T4 de higiene racial na Alemanha nazista, que matara entre setenta e
cinco mil e cem mil pessoas com deficiências físicas ou psíquicas,
método abandonado depois em função de seu alto custo farmacológico
e substituído pela câmara de gás ou simplesmente pela morte por
inanição. Em 1983, a transexualidade (“disforia de gênero”) é
incluída na lista do DSM como enfermidade mental. Em 1984 Tom F.
Lue, Emil ª Tanaghoy e Richard A Schidt colocam pela primeira vez um
“marcapasso sexual” no pênis de um paciente, um sistema de
eletrodos implantados junto à próstata que permitia desencadear uma
ereção por controle remoto. Durante os anos 1980, descobrem-se e
comercializam-se novos hormônios como o DHEA ou hormônio do
crescimento, assim como numerosas substâncias anabolizantes que
serão utilizadas legal e ilegalmente no esporte. Em 1988 aprova-se a
utilização farmacêutica de Sildenafil (comercializado como Viagra
pelos laboratórios Pfizer) para tratar a “disfunção erétil”
do pênis. Trata-se de um vaso-dilatador sem efeito afrodisíaco que
induz a produção de óxido nítrico no corpo cavernoso do pênis e
o relaxamento muscular. A partir de 1966 os laboratórios ianques se
lançam na produção sintética de oxyntomodulina, um hormônio
relacionado ao sentido de saciedade, que pdoeria afetar os mecanismos
psicofísiológicos reguladores da adicção e ser comercializado
para provocar perda de peso. No princípio do novo milênio, quatro
milhões de crianças são tratados com Ritalina por hiperatividade e
pelo chamado DDA, e mais de dois milhões consomem psicotrópicos
destinados a controlar a depressão infantil.
Estamos
diante de um novo tipo de capitalismo quente, psicotrópico e punk.
Essas transformações recentes apontam na direção da articulação
de um conjunto de novos dispositivos microprostéticos de controle da
subjetividade com novas plataformas técnicas biomoleculares e
mediáticas. A nova “economia mundo” não funciona sem o
desdobramento simultâneo e interconectado da produção de centos de
toneladas de esteróides sintéticos, sem a difusão global de
imagens pornográficas, sem a elaboração de novas variedades
psicotrópicas sintéticas legais e ilegais (Lexomil, Special K,
Viagra, speed, cristal, Prozac, extasi, popper, heroína, Omeoprazol,
etc), sem a extensão da totalidade do planeta numa forma de
arquitetura urbana difusa na qual mega-cidades miséria se articulam
com nós de alta concentração de capital, sem o tratamento
informático de signos e da transmissão numérica de comunicação.
Estes são someste alguns dos índices de aparição de um regime
pós-industrial, global e mediático que chamarei, a partir de agora,
tomando como referência os processos de governo biomolecular
(fármaco-) e técnico-semiótico (-pornô) da subjetividade sexual,
dos quais a pílula e a Playboy são paradigmáticos,
“farmacopornográfico”. Ainda que suas linhas de força fundam
suas raízes na sociedade científica e colonial do século XIX, seus
vetores econômicos não se farão cisíveis até o final da Segunda
Guerra Mundial, ocultos a princípio sob a aparência da economia
fordista expondo-se gradativamente ao longo do gradativo
desmoronamento desta nos anos 1970.
Durante o século XX, período no qual se leva a cabo a
materialização parmacopornográfica, a psicologia, a sexologia, a
endocrinologia estabeleceram sua autoridade material transformando os
conceitos de psiquismo, libido, consciência, feminilidade e
masculinidade, de heterossexualidade e homossexualidade em realidades
tangíveis, substâncias químicas, em moléculas comercializáveis,
em corpos, em biotipos humanos, em bens de intercâmbio gestionáveis
pelas multinacionais farmacêuticas. Se a ciência alcançou o lugar
hegemônico como discurso e como prática em nossa cultura, é
precisamente graças ao que Ian Hacking, Steve Woolgar e Bruno Latour
chamam “sua autoridade material”, isto é, sua capacidade para
inventar e produzir artefatos vivos. Por isso a ciência é a nova
religião da modernidade. Porque tem a capacidade de criar, e não
simplesmente descrever, a realidade. O êxito da tecnologia
contemporânea é transformar nossa depressão em Prozac, nossa
masculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa
fertilidade/esterilidade em pílula, nossa SIDA em coquetel. Sem que
seja possível saber quem vem antes, se a depressão ou o Prozac, se
o Viagra ou a ereção, se a testosterona ou a masculinidade, se a
pílula ou a maternidade, se o coquetel ou a SIDA. Essa produção em
auto-feedback é própria do poder farmacopornográfico.
A sociedade contemporânea está habitada por subjetividades
toxicopornográficas: subjetividades que se definem pela substância
(ou substâncias) que dominam seus metabolismos, pelas próteses
cibernéticas através das quais se tornam agentes, pelos tipos de
desejos farmacopornográficos que orientam suas ações. Assim,
falaremos de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos cocaína,
sujeitos álcool, sujeitos ritalina, sujeitos cortisona, sujeitos
silicone, sujeitos heterovaginais, sujeitos duplapenetração,
sujeitos Viagra, etc.
Não
há nada que desvelar na natureza, não há um segredo escondido.
Vivemos na hipermodernidade punk: já não se trata de revelar a
verdade oculta da natureza, mas é necessário explicitar os
processos culturais, políticos, técnicos através dos quais o corpo
como artefato adquire estatuto natural. O oncomouse,
rato de laboratório criado biotecnológicamente para ser portador de
gen cancerígeno, come Heiddeger. Buffy, a vampira mutante
televisiva, devora Simone de Beauvoir. O dildo, paradigma de toda
prótese de teleprodução de prazer, devora a rola de Rocco
Siffredi. Não há nada que desvendar nem na identidade sexual, não
há um segredo escondido. A verdade do sexo não é desvelamento, mas
sex design.