Todos os processos de aculturação que sofremos ao longo da vida são um emaranhado complexo de narrativas a que ficamos expostos – mais tarde me aprofundarei nisso, reserve a informação por agora. Isso inclui dar mais ênfase a algumas histórias do que outras escolhendo como justificativas para esta ênfase valores e padrões vigentes na nossa sociedade. Quando se é mulher – eu nunca cheguei a ser uma, mas tentei com todas as minhas forças por um longo tempo – todos os olhos da sociedade voltam-se para nossa vida afetivo-sexual. A Bela Adormecida é o arquétipo de como somos criadas em função do casamento: a menina adormece no início da adolescência, ou seja, ela VIVE até o início da adolescência, e sua vida recomeça, ou seja, ela VOLTA A VIVER no início da idade adulta, através do casamento. Nós, fêmeas – e façamos mais tarde a diferença entre fêmea e feminina – somos ensinadas que o amor sexual, materializado no casamento, é o propósito de nossa existência. Isso nos deixa míopes para uma longa série de outras relações e acontecimentos que perfazem a nossa vida.
Eu vivi ao lado de uma pessoa por 12 anos da minha vida. Agora esse relacionamento acabou, mas não me ressinto: dadas as circunstâncias em que nos encontrávamos, a separação foi a escolha mais saudável, e eu, nem sei como!, fico aqui boba e alegre por ter protagonizado uma história tão bela, contagiante, divertida e tão politicamente fértil. Foi ela quem comeu lixo na escola ao meu lado... foi naquelas mãos que eu perdi minha virgindade... ela foi meu refúgio, foi meu casulo, ela foi um sem número dessas metáforas de onde bebemos a nossa força quando precisamos enfrentar o mundo. E ela não era minha esposa, minha namorada, minha amante; eu era profundamente apaixonada por uma pessoa e raramente isto exigiu de mim que eu a tocasse, beijasse, e nunca me incitou a querer ter filhos com ela. A relação mais importante da minha vida foi, por assim dizer, uma amizade política.
Um dos maiores méritos dessa pessoa em minha vida foi seu envolvimento com lutas feministas e teoria queer. Embora muitas vezes tenha sido maçante viver ao lado de uma pessoa tão imersa em uma teoria só – que, apesar de configurar uma causa urgente, não é uma causa completa – foi impossível não aprender certas coisinhas com ela.
Nossa sociedade chocou-se com que algumas pessoas fossem propriedade de outras em função da cor de sua pele ou de sua origem continental. Chocou-se quando os porões do holocausto se abriram para revelar o massacre direcionado a judeus, gays e comunistas. O século XX foi uma época importante de ojeriza à discriminação de forma geral: estava claro para a maioria de nós que não deveríamos seccionar nossa sociedade, distribuir tarefas ou hierarquizá-la de acordo com atributos étnicos, religiosos ou físicos. Estava claro para a maioria de nós que as diferenças entre nossos corpos não assinalavam quaisquer aptidões naturais dos mesmos para este ou aquele tipo de trabalho, e mais importante, nossas diferenças não assinalavam inaptidões ou deficiências. Diferenças são só diferenças, e este pensamento está indo tão longe que, aos poucos, muitos de nós (por enquanto uma minoria), estamos expandindo esse pensamento para abraçar toda a esfera da vida animal, demonstrando que também os não-humanos são apenas seres distintos, mas não seres inferiores a ser livremente explorados por nós.
O que me espanta nisso tudo é que tão pouca gente tenha visto ainda a anti-naturalidade do Feminino, da Mulher.
Sim, alguns de nós temos úteros e ovários, outros de nós temos paus e testículos; mas alguns de nós são carecas e outros possuem cabelos, e alguns de nós são mais altos do que outros sem que tracemos uma linha imaginária dividindo toda uma civilização em função disso. Por que o útero?
Recentemente vi um documentário sobre o processo civilizatório, em que um paleontólogo afirmava que o cercamento da terra e a invenção da propriedade ocorreram simultaneamente ao aprisionamento da mulher à monogamia. Para mim, tudo ficou claro feito água: assim como a terra não é por si só território, isto é, assim como ser território não é um atributo natural da terra, ser mulher não é um atributo natural do corpo. O processo de transformação da Fêmea em Mulher é o mesmo que o da Terra em Território, e ambos são sustentáculos de civilizações centradas na propriedade. Terra e Fêmea se tornam meios de produção de riqueza; o útero, como a terra, é propriedade do homem para garantir a manutenção dos próprios bens, e ele os explora a fim de ascender na hierarquia social.
Assim como ser escravo não é um atributo natural do corpo de pele negra, assim como ser animal de carga não é atributo natural da vaca ou do cavalo, assim como ser comerciante não é um atributo do ser judeu: ser frágil, linda, BURRA, submissa, lisinha e macia, usar saia, querer ter filhos, gostar de cozinhar, ter uma tara irresistível por sapatos, ser sensível, ser impulsiva e apaixonada, querer estar sempre linda e contente, ser mãe devota e dedicada e achar que o amor é a centralidade e fonte de toda a vida não são características inerentes ao útero ou aos ovários: são chagas e condicionamentos de milênios daquela que é possivelmente a mais longa e próspera exploração praticada em todo o mundo civilizado.
Eu precisei ler e pensar um bocado para finalmente ver com clareza tudo isso, mas uma vez isolada a variável da artificialidade da mulher, fica fácil ver por que somos treinadas para ser assim e quem se beneficia dessa exploração. Fica fácil olhar para trás e isolar, um a um, cada momento em que cada um desses condicionamentos tão arraigados e naturalizados nos foi apresentado ou imposto.
Existe uma piada que começa assim:
“Por que existe um dia internacional da mulher?”
E a resposta,
“Porque todos os outros são dias do Homem”.
Hoje, no dia internacional da mulher, pense nesta piada. Pense bem. Porque ela está certa.
Mas eu jamais teria visto isso se não fosse pela minha melhor amiga.
Video da Semana
Ola, excelente texto. Eu ia apresentar aqui um discurso superacademicista, mas xaprala.
ResponderExcluirEu tb quero minha Barbie Predadora com mira telescópica a laser e mech rosa-choque!
PS, mas não menos importante: estou megasolidária. Melhoras e ombro amigo virtual, caso necessite. Nos vemos por ai.
Bjookkkkssssss
Excelente vídeo!
ResponderExcluirLembremo-nos que todo esse machismo também causa problemas aos homens. Falta flexibilidade, dificuldade em lidar com as próprias emoções, dificuldade de trabalhar de forma não competitiva. Não são só as meninas que sofrem por terem que se encaixar nos padrões, os meninos também tem de responder a expectativas que tantas vezes não tem nada a ver com o que eles sentem ou são...
Mas não discordo que no final as meninas levam a pior e tem que lidar com todo o preconceito...
Afinal, de quem é esse texto?