quarta-feira, 2 de março de 2011

Carta de amor a Tokien

Conheci você quando tinha 14 anos. Rata de biblioteca convicta, já tinha roído uma porção de livros da minha escola, e embora todos eles aplacassem momentaneamente minha sede por me envolver literariamente com outras pessoas, eram todos livros One Night Stand. Eu os lia, passando meus olhos por eles, enquanto no fundo de mim, minha alma se ocupava de outras coisas, o que incluía meus próprios livros – ainda não escrevi nenhum, mas já produzi uma porção de crônicas, contos e resenhas.

Um dia, um tio meu chegou com a sua maior obra nas mãos, O Senhor dos Anéis. Era o livro mais velho que eu já tinha visto e tocado; suas páginas eram sedosas e amarelecidas, mas as letras conservavam a história bem nítida. Seu cheiro era de mofo adocicado. Amei você desde a capa, e meu amor foi tomando forma ao longo do prólogo, do índice, dos capítulos. Eu gostava de como você impregnava todo o mundo que criara com beleza, mesmo nas coisas horripilantes e malvadas. Com sua paciência, com os detalhes, fui entendendo que havia uma maneira certa de ler a sua obra. Tolkien não é coisa que se lê, Tolkien é coisa que se sente. Há que se sentir a grama, orvalhada pela manhã, tingida de leve prateado, há que se sentir o vento, há que se sentir as estrelas. Havia tamanha riqueza de sentires que, por muito tempo, eu voltava ao Senhor dos Anéis, e até decorei algumas das passagens de que mais gostava.

Desde aquele momento em que primeiro toquei o livro, aquele momento sobrenatural em que o livro entrou pelas ranhuras dos meus dedos e caiu na minha corrente sanguínea, desde aquele primeiro momento em que, a bem da verdade, foi o livro que me tocou, eu sabia que havia alguém por detrás das páginas que eu amaria também. Nunca perdi você de vista, aquele velhinho risonho na contracapa dos três volumes.

Mas perdi você de vista no tempo. Eu cresci, e como você sabe, crescer é um processo muito doloroso em que matam a criança que você é e substituem por um adulto quase sempre insatisfeito. Essa criança morta nunca deixa de ser uma parte de nós que, estando morta, nos torna seres incompletos. Eu entrei numa faculdade onde aprendi coisas belas e coisas horríveis. Eu entrei numa faculdade que ensina pessoas a ser operárias, fortificando o Sistema no qual estamos todos inseridos. Essas pessoas aprendem a fazer coisas assustadoras, monstruosas, e embora eu não queira nem vá praticá-las, não há nenhuma dúvida de que também as aprendi. Eu as vi acontecendo.

Antes, eu era Frodo e Sam; sua obra, O Senhor dos Anéis, era o meu Condado, um lugar onde Bem e Mal são muito bem definidos, e embora a ameaça seja a maior de todas, é possível escolher! Os heróis do livro, como quaisquer heróis do mundo, podem ter suas dúvidas, e podem até morrer sem qualquer tipo de recompensa, mas todo o menor e mais imperceptível esforço não passa em vão, e no final se prova de suma importância para que o Bem prevaleça. Daí eu cresci, e plantaram em mim um adulto confuso que já não via sentido nessa dicotomia, que me foi mostrada por Mestres e Doutores como ingênua. Plantaram Mordor em mim, e uma porção do continente que eu sou virou uma terra desolada onde corre veneno no lugar da água, e que nada frutifica além de azedume na língua e um nó na garganta que não se dissipa jamais.

Eu perdi você de vista no tempo. Deixei de abrir o SdA, mesmo que para ler aqueles pequenos pedaços de grama, tão conhecidos e queridos, e apagaram-se de mim os aforismos que antes haviam sido hinos de quem eu era. Todavia, fizeram algo pior comigo: apagaram meus caminhos internos, os caminhos que levavam até você. Deixei, sem querer, que toda aquela pesada academia enterrasse as fadas e os elfos, deixei que a academia tornasse os dragões em criaturas senis e doentes, que hibernam no fundo da terra. Meus dragões de fogo se tornaram morto-vivos fumacentos e impotentes, soterrados por cidades de moinhos e engrenagens – como aquele moinho que o Saruman ergueu no Condado, pouco antes de morrer.

Uma coisa aconteceu e mudou o rumo dessa prosa. Foi uma reviravolta impressionante provocada por um pequeno ursinho de pelúcia, numa papelaria do centro da cidade.

Minha Vovó, uma velhinha mais branca que uma parede, mais lenta que uma tartaruga e mais misteriosa do que um gato (mesmo a Maria, que é um gato absolutamente estúpido, tem seus mistérios), sempre com os cabelos tingidos imitando a cor natural que haviam tido muitas décadas atrás, me deu esse chaveiro em algum dia entre meus nove e meus onze anos. Ela era pobre de verdade, por isso tinha um cuidado extremo com todos os seus pertences. Quando ela me entregou aquele ursinho que parecia ter viajado grandes distâncias - talvez pela pequena mala de plástico presa a uma de suas patas, ou pelo cartão pendurado no pescoço por um elástico apodrecido - eu sabia que ele tinha suas histórias, e que era para cuidar muito bem dele. Como sempre, minha avó não disse nada, pois ela era uma típica caipira brasileira, dessas que falam estritamente o necessário e preferem as entrelinhas às mensagens explícitas. Ela me entregou o ursinho, eu guardei.

Andando pelo centro da cidade, entrei na papelaria simplesmente para ver cores e passar as mãos nos bichinhos de pelúcia. Como você bem sabe, Tolkien, a Cidade é austera, e as experiências sensoriais que ela nos oferece são limitadas e pobres. Eu entro nas papelarias do mundo porque não há grama nem céu em todas as praças, não há tanta grama nem tanto céu quanto é necessário para a saúde das nossas almas, então eu improviso nessas lojas. Não levo mais nada delas para não alimentar os Dragões da Modernidade, que cerram árvores com os dentes e cospem fogo sobre as florestas, mas sinto uma felicidade débil e frágil por conseguir momentaneamente fugir dos arranhacéus nesses mares de papel colorido. Então encontrei lá uma cartela de adesivos que, inesperadamente, tinham o ursinho da minha infância, a relíquia mais preciosa da criança que eu fui, o Ursinho da minha Avó. E, assim como seu livro entrou pelas pontas dos meus dedos tão logo o toquei, a visão animadora daquele ursinho devolveu a vida à criança que eu julgava assassinada pelo Mundo. Meus dragões acordaram, e você – que adorava e temia dragões – adoraria ver as línguas de fogo com que tingiram meu céu – o céu dentro de mim – naquela tarde. Foi algo de belo.

Cheguei em casa envolvida por aquele fogo redentor e descobri que, na verdade, minha criança estava apenas dormindo, intocada, sob as feridas, sob as chagas e sob a burocracia que tinham jogado sobre ela, dentro de mim. Mas que nada daquele lixo era verdade, e que na verdade os fumos tóxicos de Mordor nunca integraram meu ser, e bastava um sopro de coragem e rebeldia para que eles retrocedessem... eu peguei o Anel, que por tanto tempo me dominara, e vi que não passava de um Anel de mentiras, um anel forjado. Peguei e joguei para o alto, onde um dragão em pleno vôo derreteu-o com um acidental espirro de fogo.

Ninguém sabe quantas coisas joguei fora naquela tarde inspiradora, e nas tardes subseqüentes. Quanto mais aliviava o peso da carga, mais meus dragões voavam, decorando os céus com suas magníficas escamas. Enfim, chegou a hora de um importante confronto: eu me reencontrei com você. Tolkien. Você estava vivo dentro de mim, sob uma árvore, com seu cachimbo, esculpindo a fumaça na forma de portentosos navios. A cada baforada, percebi, você erguia um novo mundo, de prados e elfos, e ventos e estrelas. Porém eu precisava saber se você era mesmo uma parte de mim, ou se era só como os fumos de Mordor, que soprei com um gesto displicente.

(fim da primeira parte)

2 comentários:

  1. Muito bom!, consegui ver, perfeitamente, os dragões voando e a magia retornando. Também passo por esse processo de reencontro com um eu que se perdeu dentro de mim e não acho que exista experiência mais valiosa.

    Beijo, chatolina!

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