Então, aos 13 anos, eu decidi algo que deixou minha família feliz com minha seriedade e maturidade. Pensando no meu futuro, na faculdade, no vestibular, decidi deixar para trás a escola experimental onde eu passara minha infância e início da adolescência para ingressar no Instituto de Ensino José Clemente, importante e respeitada escola, responsável por notórios índices de aprovação nos vestibulares do estado. A família aplaudiu, e lá fui eu.
Eu era grunge. Assaltava o armário do meu pai para encontrar as calças largas necessárias para minha indumentária, e peregrinava pelas feiras hippies do mundo comprando fitinhas, pulseiras e brincos. Dos shows de rock – ainda poucos – comprava camisetas, broches e pulseiras de tachinha. Eu não era exatamente grunge, hippie ou punk, mas acreditava que, se carregasse uma cruz de cada igreja, seria aceita em todos os cultos ideológicos que circulavam no mundo do rock àquela época. Embora minha mensagem não fosse exata, nem mesmo para mim, uma coisa estava clara para mim e para meus coleguinhas de turma: eu estava puta. Estava profundamente irritada com muitas coisas, o que incluía playboys e patricinhas, todo o seu mundo de carros e maquiagens, toda a sua euforia consumista. Eu nunca lhes dirigi minhas ideias verbalmente, mas a mensagem estava clara. Clara demais.
Eles começaram com os nomes, depois jogaram giz em mim. Certa vez pisaram na minha mochila e quebraram meus óculos. Perguntaram coisas indecentes e, uma vez, bateram no meu rosto. Eu achava impossível que A Escola não estivesse vendo: com tantos professores, inspetores, coordenadores, nos corredores, nas salas e até nos banheiros, COMO eles podiam deixar aquilo acontecer comigo? Estavam cegos?
Um dia resolvi dar um basta. Eu acreditava em justiça, em compensação. Acreditava que uma pessoa agredida por exercer seus próprios direitos era uma agressão a todas as outras; acreditava que a pessoa especificamente e a sociedade, em geral, deveriam ser reparados. Eu juntei em uma sacola todos os gizes jogados em mim ao longo de uma semana e me dirigi diretamente ao coordenador. Eu não me importava com a fome que corroía meu estômago, com o fato de que poderia perder meu ônibus: esperaria na antessala daquele homem quanto tempo fosse necessário e ia fazer as perguntas que me afligiam todos os dias desde o primeiro dia naquela escola que se gabava de ser tão íntegra, tão civilizada em todo o seu cimento. Quando minha vez, por fim, chegou, eu coloquei a sacola na mesa, contei o que me acontecia, disse todos os nomes, joguei na cara daquele homem que eram as minhas notas e o meu desempenho que davam àquela escola a reputação grandiosa da qual ela gozava, e que por isso eu tinha que ser ouvida, preservada e protegida. O coordenador afirmou que faria tudo quanto possível para que aquela perseguição acabasse. Por último, quando me levantei e ia embora, demoliu todas as suas promessas com uma pergunta: “Mas por que você tem que se vestir assim?”.
A dor é subjetiva. Por mais que todos nós sintamos dor quando extraímos um dente, fazemos uma tatuagem ou damos uma topada, não há números para quanta dor estamos sentindo. Não há como saber se eu sinto mais ou menos dor que você, e a dor física é indiscernível de sua experiência psicológica. Temos uma ideia acerca da dor alheia, uma ideia vaga e aproximada – e para um bom leitor, “aproximação” também é uma palavra que contém “erro”. Não existem, infelizmente, índices para a dor. Mas existem as palavras.
Tenho quase certeza de que a primeira palavra da humanidade foi uma interjeição de dor, um “ai”, uma partícula universal na qual todos os demais se reconheceram, porque todos os demais já haviam experimentado a dor. E, tal como somos capazes de nos reconhecer na dor alheia através das palavras, tal como somos capazes de nos aninhar nelas e atingir com elas alguma reparação, elas são cortantes, contundentes, e a dor causada por elas é real, embora não seja física. A violência através das palavras é SIMBÓLICA, mas numa sociedade cuja inclusão acontece através da cultura, ou seja, através do compartilhamento de signos e símbolos, ela é tão devastadora quanto um tapa, tão eficiente quanto um revólver, tão destrutiva e tão ampla em seu alcance quanto uma bomba.
As escolas do século XX perderam uma arma poderosa de sua doutrinação, a violência física. Acreditem-me, elas ainda não se recuperaram completamente dessa perda e adorariam ser restituídas daquele direito. Porém, perceberam que não era mais necessário exercer certos papéis de enquadramento: em outros lugares, crianças e adolescentes são domesticados dentro de nosso sistema de valores e práticas com mais eficiência que nas mais eficientes escolas da História. As próprias crianças e adolescentes, magistralmente adestradas no Certo e Errado, incumbem-se do dever moral de devolver as ovelhas perdidas ao rebanho do capitalismo: inspetores, coordenadores e professores não precisam mais sujar suas mãos removendo o lixo dos corredores: a violência foi terceirizada.
Com o Capitalismo a mesma coisa acontece. Seria muito arriscado para a VolksWagen, para a Nike, para a PepsiCo sujar suas mãos com a morte de seus próprios empregados – pelo menos abertamente, nas ruas, sob a lua, estrelas e sol. O Estado tem sido, desde o século XVIII, a empresa preferencial da Oligarquia Corporativa para garantir a sua integridade e a de seus bens. É uma questão de discrição: o Regime ficaria muito óbvio se, de repente, a Nike pudesse contratar a Blackwater para garantir a produtividade de seus operários; ainda é moralmente inaceitável que uma empresa use da força para enriquecimento e benefício exclusivos de seus donos – mas acredite, esses dias estão para acabar, e muito em breve.
Esse programa, porém, tem uma falha: a Força é um método de correção, mas falha enquanto didática de adestramento. A violência é para quando o operário e o consumidor falham em suas respectivas funções: é, por conseguinte, necessário um outro braço, mais meigo e macio, que exerça o papel de instrutor, que desde cedo coloque todas as ovelhinhas no mesmo pasto de resignação e consumo alienado. Essa mão, nem sempre tão bondosa quanto se esperava que fosse, era a escola. Mas a escola – que pena – se tornou por vezes demais a trincheira de novos pensamentos e dúvidas quanto à Máquina. A função didática do Capitalismo, ou melhor, da Oligarquia Corporativa, foi sendo transferida gradativamente, e com sucesso incomparável, à propaganda.
A propaganda mata sem encostar um dedo no gatilho, quando um menino atira em um outro por um par de sapatos; a competição fomentada pelos jingles suaves e alegres é mais feroz que o mais feroz chauvinismo do discurso mais virulento. A propaganda é monstruosa ao representar a mulher, e especialmente a menina, que cada vez mais se torna um pequeno protótipo de esposa; a propaganda é pedófila; a propaganda é cruel com quem ela representa e ainda mais cruel com quem ela deixa de fora. Ela cria um mundo em que a felicidade é um de território simbólico, cujo ingresso é adquirido um pouco por dia, mas cujo centro, a Verdadeira Felicidade, é uma área VIP vazia. No discurso da propaganda, a inclusão na sociedade se dá através da posse, mas a realidade dessa cultura é que a aceitação em seu seio se dá no ato da própria aquisição, gerando uma cultura insaciável. Todas as culturas possuem rituais que inscrevem e atualizam os indivíduos em seu seio, mas o Capitalismo produziu uma cultura em que o ato de inscrição nunca termina, e está, por isso mesmo, sempre inacabado. Em suma, somos todos excluídos!
Mas como fazer-nos consumir? Como fazer-nos entender que a nossa necessidade excede a mera sobrevivência e que outras formas de prazer são indispensáveis? Como agregar valor a objetos que obviamente são completamente desnecessários? Eis o que a propaganda faz conosco: ela opera a própria linguagem dentro da qual nós fluímos, sentimos e nos expressamos. Embora o ato de falar e escrever, o ato de ler uma placa de trânsito pareçam tarefas simples, o que acontece conosco é que a linguagem está INTEIRAMENTE imbuída de um conteúdo simbólico que é subjetivo e, em alguma instância, emocional. A propaganda, portanto, se apropria de elementos da nossa vida cotidiana transformando-os em problemas que podem ser resolvidos. Ela cria rituais que nos inscrevem e nos atualizam dentro da cultura de consumo, num ato interminável de inscrição – como já foi dito.
Essa inscrição, por sua vez, não pode ser voluntária; o consumidor não está autorizado a NÃO desejar consumir. A propaganda, portanto, em sua superfície ou nas suas entrelinhas, tem na verdade de constranger a pessoa a tal ponto que a exclusão pelo não-consumo se torne insuportável, o que muitas vezes se traduz em ódio ao próprio corpo e à própria vida. Só é possível comprar aquilo que as propagandas em geral nos vendem se aceitarmos a premissa de que SIM, há um problema conosco.
“A ritualização é claramente uma estratégia primária para incorporar as relações de poder”, e a ritualização do consumo, ou seja, a transformação do consumo em uma atividade imbuída de significado capaz de inscrever ou de banir um indivíduo de uma dada sociedade é uma das inúmeras expressões do poder e da Oligarquia Corporativa que regula e regulamenta nossas vidas, para quem o Estado apenas tem feito, ao longo da História, o trabalho sujo. Negar-se a consumir não só é uma atitude ecologicamente necessária e urgente como também significa deixar de endossar os valores de uma sociedade que se ergue sobre a exploração material e também emocional e subjetiva de vidas inocentes.
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