quarta-feira, 27 de abril de 2011

MANIFESTO SEXUAL


Um desabafo deste ser uterino quem vem tentando a cada dia, deixar de ser mulher. Mas entende que isso não significa reprimir ou fazer com que os desejos deixem de existir. Trata-se de resignificá-los por completo. Mudar a forma como pensamos e como fazemos sexo.


Eu ando um tanto cansada de ser bombardeada por essa mesmisse sexual que temos por aí. O sexo nos é apresentado desde a mais tenra idade de formas antagônicas. Instituições como a família e a Igreja nos apresenta a ele com algo sujo, indevido, pecaminoso e feio. Mas a mídia e a sociedade de forma geral nos entopem de luxúria e desejos, mostrando como sexo é bom e prazeroso.

É claro que se você nasceu com um pênis a forma como essas coisas são apresentadas a você é bem diferente das que seriam se você tivesse nascido com uma vagina. Eu nasci com uma vagina. Então fui ensinada que deveria ser recatada e resguardada. Me disseram que não deveria usar determinado linguajar, e que deveria manter as perninhas fechadas.

Mas aí a gente cresce, estuda um pouco... Nem é preciso ler muito nem se aprofundar nos estudos sobre feminismo pra descobrir que todas essas convenções são pura merda marrom e fedida!!!

Nessa hora fica fácil jogar a calcinha cor-de-rosa pela janela e abrir as pernas num grande gemido que só queria dizer “eu posso, eu faço!”.

Eu entendo tudo isso, sabe. De verdade! Mas acontece que depois do primeiro gozo, a gente começa a enxergar certos padrões sexuais, e a cada dia vamos abrindo a cortina e nos vendo dentro destes mesmos padrões. A gente começa a aprofundar os estudos, ler um pouquinho mais, meter fundo a cabeça nas pessoas que realmente valem a pena... E aí começa a ficar um pouco mais difícil conviver socialmente...

A grande maioria das pessoas está condicionada sexualmente. E sexualmente aqui quer dizer no ato do coito em si. Eu explico. É que se criou uma espécie de roteirinho para o sexo. Não sei precisar muito bem quando ou como isso foi criado, mas acredito que uma dedução bastante lógica mistura valores machistas com indústria do sexo, se tornando bastante acessível com a produção em massa de filmes pornôs.

Mas vamos por partes para não confundir.

Primeiramente os valores machistas. Ah! Claro! Ele está em tudo, como o ar que respiramos! Onipresente e onipotente o machismo nunca brocha!

Todo menino, nascido com um pinto, é ensinado a idolatrar a própria pica. Desde sua vida intrauterina, ele já ouve que tem que crescer pra traçar as bucetinhas da região. “Segurem suas cabras porque meu bode está solto”. Que menino nunca levou um tapinha nas costas da família ao apresentar ou ser pego com a primeira namoradinha? “É isso aí garotão!”. Pois é. Eles são ensinados, melhor dizendo, ADESTRADOS, a pensar e a acreditar que somente o seu próprio prazer é o que importa, o restante é secundário. E isso é regra.

Aí entra a indústria do sexo com seus filmes cheio de cores, sons e falsas impressões. Acho que não é novidade para ninguém, ou pelo menos não deveria ser, que os filmes pornôs são feitos para os homens. Sim, especificamente desenhados e projetados para o prazer masculino. No entanto, para olhares bem adestrados e não muito atentos, infelizmente, isso pode ficar levemente escondido.

Justamente porque os homens estão adestrados (faço questão de frisar bem este termo, para ver se fica claro o processo do qual estou tentando tratar) a pensar em si mesmos como máquinas de sexo, eles são quase incapazes de perceber que podem não estar agradando. Sim, querido ser peniano, você muito provavelmente não é assim tão bom de cama quanto pensa.

E os filmes pornôs estão aí cumprindo seu papel social da difusão deste mito da pica dourada. Mulheres gemendo loucamente, sendo penetrada quase que ininterruptamente, só param de gemer quando a boca está ocupada chupando o pau, claro... E é exatamente aí que mora o roteirinho do sexo. Tudo começa com uns beijinhos, roupas sendo arrancadas, aí o cara já vai logo mostrando que é bem treinado, mete a mão na sua bunda, aperta seus peitos, mete os dedos frenéticos dentro da sua calcinha e pronto, ele já está pronto pra meter. E acredite, desde antes do diretor gritar “ação” é só nesse momento que ele pensava.

Só que sexo na vida real é levemente diferente daqueles dos filmes que você assiste no PornoTube. Principalmente se você resolveu por um fortuito divino trepar com uma dessas que já meteram fundo a cabeça nas pessoas certas e andaram lendo e estudando mais do que é socialmente aceito para uma mocinha.

Sabe, se você procura por uma boneca inflável eu tenho uma novidade para você: SÓ PORQUE EU POSSUO UMA BUCETA NÃO QUER DIZER QUE EU SEJA UMA BONECA INFLÁVEL!!! E acredite, a sua pica não é de ouro e, mesmo que fosse, não significaria que ser penetrada por ela me traga o êxtase absoluto. E eu também não vou ficar gemendo e fingindo somente para satisfazer seu ego machista. Não, eu não estou aqui para o SEU máximo deleite.

E tem mais uma coisa que é igualmente importante: só porque eu falo sobre sexo abertamente, sem pudor ou o recato que a sociedade diz que uma moça deve ter, não significa que eu esteja me jogando em cima da sua pica, e nem te dá o direito de achar que você pode fazer com meu corpo o que bem entender.

Você gosta de sexo? Ok. Eu também gosto. E eu não tenho nada contra sexo casual. Não estou buscando casamento, romantismo e juras de amor eterno. Eu também tenho desejos e as vezes surge aquela vontade de simplesmente foder. Mas entenda bem o que isso significa!

O ato sexual tem que ser entendido como uma troca de energias. Sim, energias! Não é uma mera troca de fluidos corporais e gemidos banais. É urgentemente preciso quebrar o paradigma do roteiro pornô, cortar fora o dogma central que envolve o ato.

Liberte-se! Entenda que suas e minhas zonas erógenas vão muito além dos nossos órgãos sexuais. Explore! Mude o ritmo! E você vai descobrir que é capaz de sentir e de proporcionar prazer de várias formas. Nós estamos todos adestrados a sentir prazer somente de uma forma, como se orgasmo fosse uma receita de bolo, você segue sempre as mesmas medidas, sempre à mesma temperatura e voilá.

Que bosta de mundo machista! E o pior disso tudo, é a grande maioria das mulheres também foram muito bem ADESTRADAS. E lá vão elas para o banco de traz do carro de seus namorados, para as camas de motéis, escondidos de seus pais, achando e acreditando que estão libertas, que os tempos são outros, não precisam mais casar virgem e provar que sangram na primeira vez. Lá vão elas, como galinhas enfileiradas prontas para o abate, abrir as pernas, soltar uns gemidos, receber a pica, passar anos de suas vidas sem ter ideia do que seja um orgasmo de verdade, e julgar que isso tudo é absolutamente normal... Ouço com relativa frequência que muitas fingem orgasmos apenas para fazê-lo parar! Afinal, não se pode ferir o orgulho do ser peniano, não é mesmo... Sem o grande falo estaríamos todas perdidas...

As mulheres seguem sonhando em conquistar o pênis próprio, os homens seguem acreditando que todas as bucetas lhes pertencem e são todas seus brinquedinhos, e a sociedade segue assim, com gozos que vem necessariamente acompanhado de porra e falsos gemidos femininos...

E quanto a nós, aquelas que falam sobre sexo sem pudor, que trepam sem medo dos rótulos, mas que já estenderam que PODER trepar com quem bem entender não é sinônimo de TER que trepar com quem bem entender, nós que lemos mais dos que nos é permitido, e que desafiamos o intelecto dos seres penianos, também desafiamos suas picas. Sim, porque nós já não nos sujeitamos a sermos bonecas infláveis receptáculo de porra.

Se não sabe brincar, então não desse pro play, querido. Porque eu sei brincar, e prefiro brincar sozinha do que fingir que seu jogo é divertido.

domingo, 24 de abril de 2011

Quem tem medo do lobo mau

 
Pelo fato de o veganismo não ser uma filosofia centrada em um único pensador ou modelo, e mais ainda ser caracterizado por práticas que se confrontam, que dialogam, que se misturam, ele acaba por encontrar-se com outras ideologias, dando por proles manifestações a meu ver muito bizarras. Claro que essa bizarrice está em meu próprio olhar, e não naquilo que estou olhando, e procede dessa maneira porque certas experiências muito comuns aos membros da nossa sociedade estiveram ausentes de minha vida.

Como eu já disse, não tenho religião; meus pais foram ateus durante minha infância e quase toda adolescência. Na idade em que meus amiguinhos foram catequizados, eu não sabia o que era a Igreja, senão que era uma casa com uma cruz no alto, onde pessoas iam rezar. Mas eu não sabia o que era rezar, para quê se rezaria, o que fazia um padre para além do confessionário, e por aí vai. Essa visão distanciada, aliada a um interesse precoce pelas mitologias de forma geral, me permitiu muito cedo ver que o cristianismo era uma mitologia como qualquer outra, e que se eu podia escolher livremente entre esta e aquelas, não tinha muito sentido em escolher a Igreja antes de uma pesquisa maior.

Acontece que um amigo meu, vegano, é profundamente religioso. Não é católico, vale dizer, mas sua religião tangencia o catolicismo em diversos pontos que na minha opinião são justamente os piores. Eu estava conversando com ele, certa vez, sobre como tenho receio do avanço das igrejas protestantes no Brasil. Receio não só da religião que elas apregoam, mas da maneira como apregoam, e mais ainda da rápida infiltração que têm feito na política, o que acaba por deixar que uma visão dogmática e engessada do mundo decida os destinos de inúmeras vidas. Ele me fez uma pergunta que me desconcertou, sobre a qual eu tive que ponderar durante meses: você tem medo dos evangélicos?

Não só deles, posso agora responder com segurança; tenho medo de qualquer coisa que se apóie na bíblia para validar-se enquanto atitude, pensamento e religião.

A bíblia é a cartilha da propriedade privada por excelência. Deus, esse grande doador, tudo dá ao Homem: cria a natureza, o planeta, e entrega a seu filho, que por sinal é sua imagem e seu ÚNICO semelhante. Cria a mulher e dá a ele. Somente o Homem, por ser a imagem de Deus, goza do direito da posse; os demais, cá estão para ser possuídos. Isso gera inúmeras distorções perigosas, e a principal delas, a meu ver, é o ponto exato em que somente o Homem goza de direitos, e que esses direitos são, na verdade, o direito AO resto e SOBRE o resto da criação. Sendo assim, a bíblia sedimenta o Homem, a Propriedade e o Patriarcado.

Não só na bíblia, mas em todo o imaginário cristão – que é composto de uma rede extensa e complexa que se amalgama à cultura popular e se infiltra em outros credos – todos os heróis, pessoas virtuosas, Santos, são tocados pela graça. E o que é a Graça senão a doação divina de ALGUMA COISA? Ave Maria é cheia de Graça, e essa Graça não é a candura, ela é ALGUMA COISA.

O cristianismo COISIFICA. Isso faz com que muitas de suas comemorações sejam festas de carnificina e terror: esse caráter do Deus-donatário é o que permite que tenhamos Natais e Páscoas sangrentos como estes que temos. A vida do animal, muito diferente da vida humana, pode ser livremente sacrificada e doada a Deus, posto que o sacrifício devolve a criação ao seio divino.

O cristianismo COISIFICA. É isso que permite ao Homem, fálico, ver a mulher como instrumento de realização dos seus prazeres mais sórdidos, e, nos casos extremos, chega a dar ao Homem o direito de sacrificar a mulher no momento em que ela não honra a lei divina – a lei divina de entregar-se e empregar-se como propriedade de seu marido. Sim, é o cristianismo uma das principais, se não a principal, referência do machismo, mesmo do machismo contemporâneo pós-moderno.

O cristianismo COISIFICA. Na sua expansão pelo planeta, conquistando, devorando e destruindo outros cultos, é patente o interesse cristão em quebrar os laços das religiões “primitivas” do ser humano com a natureza, e no Brasil isso deveria ser claro, evidente, sabido por todos. Não é possível ser cristão e ecologicamente correto, pois mesmo quando o cristianismo, atravessado pela ecologia, nos diz que devemos respeitar a natureza, não tira a natureza dessa posição passiva de coisa-criada. Não individualiza, não dá voz à fauna, à flora ou aos recursos naturais, e muito menos, obviamente, ao planeta. O respeito à natureza pregado pelo cristão é o respeito a Deus.

“Tudo quanto no reino animal metia medo ou dava nojo ao europeu, vira signo dúbio de entidades funestas em ambos os planos, o natural e o sobrenatural”[1]. Quando da colonização da América, o Padre Anchieta celebrado na História pela catequese pacífica dos índios utilizou-se do recurso do bestiário, demonizando o mundo natural, para que o índio temesse e matasse a natureza que antes celebrara. E se a colonização parece distante, citemos o caso dos missionários protestantes no Equador que, na década de 1980, procuravam catequizar os índios, convencê-los do caráter amaldiçoado da terra em que haviam vivido por gerações, expulsando-os dali para instalar pontos de extração e refino de petróleo[2].

Os exemplos interessam para trazer à tona um padrão, um modus operandi que se apóia nos pilares da colonização/coisificação, que deixa no rastro do cristianismo a disjunção do ser humano da natureza ao seu redor e de sua própria natureza. Não só isso: o cristianismo é oportunista, aliando-se aos grupos da situação para avançar com sua ideologia, desvinculando-se desses grupos e aliando-se a outros sempre que conveniente, tendo em vista a perpetuação de sua moral.

Cristianismo pressupõe poder, opressão e exploração. Eu tenho, sim, medo de tudo isso e, caso não tivesse, não seria vegana, nem teria um blog. Para mim, o estranho, bizarro e bestial dessa história toda é: quem é que NÃO tem medo do cristianismo? E por quê?


 





[1] BOSI, Alfredo In DIALÉTICA DA COLONIZAÇÃO. Companhia das Letras; Rio de Janeiro. p.74.
[2] PERKINS, John. In CONFISSÕES DE UM ASSASSINO ECONÔMICO. Não lembro o capítulo, malz aew!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O capitalismo é uma enorme piada sem graça.

Vejo o Obama como o sintoma mais agudo de que estamos aceitando ser enganados por cada vez menos, com cada vez menos argumentos. O teatrinho do capital fica mais e mais cínico, como um filme porno mais e mais vagabundo, e nós estamos engolindo a porra dele com cada vez mais resignação: será que ter um presidente negro é de fato uma conquista? O que é que significa termos um presidente negro?

Eu penso muitas e muitas vezes antes de dizer puramente que foi uma conquista. PODE ter sido, sob diversos ângulos, mas pra mim é mais marketing: a nação mais opulenta e belicosa do mundo acabou de sair de 8 anos de ditadura Bush que deixou o país com uma imagem ainda pior no cenário mundial. O cara era abertamente autoritário, incompetente e tinha lançado as sementes de uma crise que eclodiria irremediavelmente no governo seguinte. E IMAGENS RUINS SE TORNAM COMÉRCIOS RUINS. Você não vai querer andar por aí ostentando um produto estadunidense se isso significa patrocinar guerras contra países qe não têm a menor chance.

O que é melhor do que isso como lançar um presidente negro? Devemos lembrar de como a imagem de Obama foi construída desde sua candidatura, dos discursos à la LutherKing, dos cartazes que adotavam uma estética setentista associando o presidente a uma époda que foi deveras frutífica em termos de pensamento e avanço cultural. Mas agora temos que pensar para além desse Obama dos cartazes, para além desse Obama dos discursos. Quem é esse cara e a que ele veio?

Não vou entrar nos méritos de Guantánamo, do Paquistão, nem outras coisas porque não tenho material para tanto. Mas assim que acordei e abri o site de notícias sobre direitos dos animais, vi essa notícia, que me despertou profundo desgosto.

Voltemos ao Obama no Brasil. No meio do furdunço de notícias, uma delas ganhou destaque redobrado e correu o facebook dos meus amigos. OBAMA É VEGAN! Foi claro e direto ao pedir que seu hotel lhe servisse apenas produtos livres de resíduos animais.

GENTE... É CLARO QUE ELE NÃO É VEGAN!

Da mesma maneira como a pele negra foi um artifício para que as minorias se vissem representadas no poder, ser vegano é apenas uma estratégia de marketing para arrebanhar uma fatia política da população que está descontente. Até por que, PESSOAS SÃO ANIMAIS: você não pode se opor à tortura de milhares de vacas e achar que está maneiro torturar prisioneiros em Guantánamo ou bombardear um outro país que belicamente não tem a menor condição de se defender. ISSO NÃO É VEGANISMO.

Porém, muitos argumentam que o veganismo nao pode se preocupar eticamente com humanos da mesma forma que se preocupa com animais (acho essa argumentação patética, mas conheço muitos vegans assim). Tudo bem, tudo bem, vamos deixar os humanos de fora: que veganismo é esse que condena uma espécie já ameaçada a uma extinção real e um tanto quanto cruel? O que é a caça senão a celebração cruel e desnecessária do poderio do homem, uma celebração de uma virilidade forçada, a festa do homem branco sobre a natureza? Estou, é claro, falando da caça esportiva praticada nos EUA.

Obama é vegan? Obama representa interesses das minorias? Quem é esse presidente e a que veio?

domingo, 17 de abril de 2011

Clarice

, não é mesmo? Afinal era domingo. Um domingo morno. Tão morno quanto o livro que, a essa altura, já se encontrava caído sobre seu peito enquanto ela dormia no sofá.

Mas não era um sono morno, desses de domingo. Era um sono alterado, um sono consciente. Ela sabia-se estirada no sofá, sentia as almofadas percorrendo a forma do seu corpo, e o livro pesando levemente. Achou aquilo estranho, o tato das almofadas e do livro, assim como o tato de suas próprias roupas. Sem precisar se esforçar muito foi capaz de se concentrar ainda mais naquela sensação do tato e levá-la a um nível desconhecido.

E nesse instante foi invadida por uma sensação já familiar, a de estar rodando. Sentiu-se girar na vertical, como se tivesse sido transportada para um brinquedo de parque de diversões. Será que estou saindo do corpo? Se eu abrir os olhos agora, será que estarei flutuando sob meu corpo adormecido no sofá? Mas ela não abriu os olhos, não foi preciso. Podia sentir o mundo a sua volta, não precisava vê-lo.

Sentiu que flutuava. Sentiu que se aproximava da maçã que descansava na fruteira em cima da mesa de jantar. E a medida que sua consciência tocou a maçã, foi transportada para seu corpo. Agora eu sou a maçã. Uma maçã não muito vermelha, que repousa na fruteira a espera da primeira mordida. Mas como descrever o ser maçã? A maçã não tem visão, tampouco audição. Sentia uma vibração interna, um caroço que pulsava, uma nova vida que jamais brotaria. Sentiu a tristeza que vinha de dentro, sentia o veneno que vinha de fora. O veneno que já fazia parte de sua composição e, de repente, se deu conta que seu caroço era deformado, defeituoso, aleijado... Ele trazia o veneno incrustado em sua composição.

Uma brisa entrou pela fresta aberta da janela. E a medida que sua casca era banhada por essa brisa foi-se deslizando para fora da maçã. Agora fazia parte da composição do vento. Bailava serena pelo ar, cabia em todos os lugares, todos os cantinhos. Podia passar através das menores aberturas. Esvoaçante seguiu pela fresta da janela, sentia que ia se expandindo, ocupando todas as esquinas e avenidas. Mas foi tomada pelo mesmo veneno que parecia assolar a maçã. De onde isso vem? Por que me toma dessa forma? Sinto-me doente, fraca, suja...

Um pássaro a cortou com suas asas aerodinâmicas. Imediatamente sua consciência foi transferida para aquele corpo plumoso. Agora podia sentir o ar sob suas penas, dava impulso e voava mais alto.   Planava e a brisa era uma caricia gostosa e fresca. A medida que se sentia mais confiante começou a dar mais uns rasantes pelas ruas. E nessa brincadeira se deparou com uma superfície lisa onde haviam seus semelhantes. Voou direto e bateu o bico com força. Caiu levemente desorientada. Suas perninhas frágeis logo a sustentaram. Olhou para cima e viu seus irmãos presos em gaiolas. Meus irmãos encarcerados, penas e plumas perfeitas que já não podem voar, já não podem sentir o vento bater e planar lá no alto. Eu queria ser uma ave de rapina, quebraria essas grades com meu bico afiado.

Ela voltou a se sentir girar. Girou na vertical, girou e girou... Se ouviu. Era um pio forte e potente, abriu os olhos e pode ver mais longe do que jamais pensou ser possíveis. Abriu as asas e tentou voar. Sentiu algo apertar suas patas. Mas até assim? Pegaram meus irmãos menores, a mim também? Como poderei lutar? E uma tristeza invadiu seu corpo.  Viu uma arvore lá no alto da colina. Talvez se eu fosse uma árvore. Fechou os olhos e foi.

Sentiu tudo se transformar. Mais uma vez seus sentidos se modificaram. Agora era a consciência da árvore. Sentia a energia do sol em cada folha, sentia o ar em cada poro, sentia a terra abraçando suas raízes. E o veneno voltou a invadir seu corpo. A terra era úmida e pesada. O ar era quente e denso. Mas será possível? Está tudo envenenado?

Escorregou pelo corpo, até a base do caule, onde havia um pequeno cogumelo. Se infiltrou para aquela consciência. Entrou por aquele corpo de frutificação e logo sentiu-se expandir. Como corria por debaixo da terra... Para onde será que vai? Mas o veneno não lhe abandonou. Já não suportava sentir a doença, estava ficando fraca.

Escorregou mais uma vez. Dessa vez para a terra. Nesse momento a consciência se expandiu com uma rapidez incontrolável. Correu por toda terra, sentia o lençol freático, as raízes que lhe penetravam, as minhocas, os pequenos insetos, as folhas que caiam, os químicos que lhe invadiam. É daí que vem? Mas a consciência corria, corria na velocidade de um jato. Foi além, além dos oceanos, que pesavam sobre ela. E já não podia parar, puxara um gatilho sem volta. Correu, correu tanto que as pequenas coisas começaram a se perder. Já não era somente a terra, era toda a Terra. Mas por que ainda me sinto doente? Os químicos não ficaram pequenos? Sentia-se presa, compactada, queria sair dali, abandonar esse corpo doente.

Fez força para romper a casca e poder sair. Nesse instante apareceu um flash de seu corpo estendido no sofá, a TV ligada e as imagens de um noticiário, uma imensa onda invadindo um litoral. Será que eu ainda estou dormindo? Eu quero acordar. Não quero ficar presa. Outro flash, agora a TV mostrava uma cena de guerra. Será que eu dormi com a TV ligada? Mas eu estava lendo um livro... Outro flash, agora eram imagens de pessoas famintas, desnutridas. Preciso sair, já não posso respirar. Já não conseguia escorregar sua consciência para fora. Por quê?

Quanto mais força fazia mais forte ficavam as imagens de destruição na sua televisão. Ela começou a se questionar se estaria mesmo dormindo, ou se sonhara que fora um corpo estirado num sofá. Aos poucos o frenesi foi passando, e a dor também. Talvez o sonho tenha sido que fora uma mulher que adormecera lendo um livro, ou quem sabe apenas uma lembrança de uma consciência que já ficara há muito no passado. Agora só sentia o universo lhe envolvendo, que...

Vídeo da Semana:

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A cerca e Eu

Este é um texto muito especial... a desarticulação de todo o sentimento exposto foi o que me fez concluir que eu tinha urgência em organizar meu pensamento de forma pública, articulada com amigxs, em um espaço de interação virtual, ou seja... este blog aqui ^^


                Sei Lá.
                Quero começar esse texto com um grande e sonoro Sei Lá porque é a coisa mais sincera em que consigo pensar no momento, inclusive porque, no estado em que me encontro, está muito difícil pensar. Eu sei que, muitas vezes, imprimo nos meus textos um tom de certeza que é falacioso, e eu faço desse jeito apenas porque é como tenho feito desde que tenho 9 anos e um diário embaixo do braço. Sim, acho que muito antes de ser roqueira eu era uma selvagem libertina que se soltava nas folhas de papel, e foi assim que toda a bagunça que vou contar aqui nessa carta começou. Mas isso são vinte e quatro anos de história do melhor livro que (ainda) vou escrever e não posso contar muito agora, porque não tenho tempo e porque esse não é meu propósito.
                A nossa sociedade já tentou sintetizar o Ser Humano num único órgão várias vezes. Já foi o coração: o centro de nossa Humanidade era esse órgão que governava os sentimentos. Aí veio a ciência, e com ela a razão, e, por fim, o cérebro. Estamos numa sociedade do Homem Cerebral, e estou falando do Homem, sim, do ser fálico e de pele branca, porque à mulher nunca foi dado o direito de ser cerebral. Assim como o negro nunca foi um ser cerebral, no juízo da nossa cultura: o negro é o ser da pele, da voz, dos quadris. E a mulher é o ser uterino, da histeria, da maternidade, da TPM, e por aí vai.
                Daí, a gente muito ingenuamente diz que não é uterina e começa a fazer de tudo pra provar que é racional, quando essa tática só endossa o poder central. A gente nega que tem TPM e coisas assim, o que é um erro tão ingênuo que eu abro um sorriso e sinto muita compaixão pela nossa civilizaçãozinha de merda, uma criança engatinhando a 1000 por hora na direção do abismo, achando lindo a destruição, a queda e a morte. Eu sinto uma pena, danada mesmo, das pessoas que procuram negar o poder reivindicando um lugar dentro dele. Eu só sinto pena porque vejo que a intenção não é ruim. Mas sinto pena desse engano e coço atrás da orelha pensando até quando esse engano vai durar, de achar que a gente é um ser cerebral e que no seio de nossos neurônios tem alguma mágica que os neurônios do cão e do gato não sabem fazer. Ai, ai.
                Então eu falo mesmo, que estou no CIO. Que no meio do mês eu fico mesmo com essa vontade louca. É uma Vontade Louca, PONTO FINAL. Ela não tem forma em si; meus estrógenos não têm a forma dos meus desejos, mas rapidamente se transformam e potencializam esses desejos que eu tenho. E o desejo que eu tenho tido é esse desejo de ir embora.
                Só que eu sou cagona. Não vou mais dizer que sou uma pussy porque minha vagina não tem nada a ver com a minha covardia. Se eu tivesse que chutar, por sinal, diria que meus ovários têm mais coragem que o meu cérebro.
                Há três dias que fico ouvindo as mesmas músicas do Pearl Jam, over and over, e uma velha pessoa que estava adormecida em mim há sabe lá quantos anos acordou. A pessoa que pulou a cerca de arame farpado da escola em dezembro de 1998 está aqui, porque se deparou com uma outra cerca. Depois de andar muito pelo mundo e dentro de mim mesma, encontrei uma cerca muito mais poderosa que a cerca da escola, embora guarde com ela incríveis semelhanças. Ou será que a semelhança sou eu? Porque naquele verão eu estava ouvindo pearl jam também, ainda que fossem outras músicas. E as músicas, outras, estão dizendo a mesma coisa. Estão dizendo que essa porra de cerca, tão sólida e espinhosa, tão imponente e grande, é tão falaciosa quanto aquela calada cerca da escola que eu pulei e deixei pra trás. Nunca mais voltei àquela escola como aluna, embora tenha voltado muitas vezes porque assim o quis. E essa cerca que estou olhando agora, o que eu me torno quando pulo? E o que me torno se resolvo pular de volta, pro lado de cá.
                Essa é uma carta de sinceridades. Se eu sair da minha casa, digamos agora, digamos com aquela pequena mala que uma vez eu arrumei pensando em nunca mais voltar, aquela mala que eu nunca desfiz e que está ali fielmente esperando, qual vai ser a diferença entre mim e o mendigo? Meus ideais. E só. Daí a gente vê como os ideais são pequenos, eles ficam dentro de você e quem passa por você torce o nariz, ou até te bate ou toca fogo em você enquanto você dorme. Se o índio gaudino fosse só um mendigo alguém teria ligado? E aquela moça que foi espancada, cujos agressores tomaram por prostituta mas era empregada: se ela fosse puta de fato, alguém ia ligar? Puta tem que apanhar e mendigo tem que morrer. É nesse mundo que eu vou entrar se pular a cerca, e aí entra meu cérebro, entra meu medo. Eu sou uma cagona.
                Mas eu tb já concluí que não existe meio termo dentro do capitalismo. Se você é professor ou dono da Nike, se você é padeiro. Você não pode achar que é menos ou mais capitalista quem tem mais ou menos dinheiro. A gente nessas horas tem que chamar um Marxista, embora sejam em sua maioria machistas e cerebrais (gostei muito dessa palavra). Eu lembro do Althusser e as máquinas ideológicas do Estado. Ele chamava de Aparelhos. Se você é professor você ta ali, produzindo um novo dono da Nike. Aqui, no perímetro dessa cerca, é todo mundo a mesma bosta. O padeiro alimenta essa corja toda, domestica o trigo e extrai da vaca a sua vida e a também a do bezerro. Cada pecinha, inclusive, e talvez principalmente, as que a gente acha mais insignificantes, são essenciais pra que essa bem azeitada série de Aparelhos continue próspera. Aliás, creio que a Máquina se alimenta da crença de que somos todos dispensáveis. Isso é a maior mentira que o capitalismo conta pra gente.
                Então eu fico aqui encarando a cerca. Acredite, eu estou bem perto dela. Penso que, se eu ficar aqui dentro, nada do que eu sou faz sentido. Aqui dentro não faz sentido ouvir Pearl Jam: embora suas guitarras, suas vozes, me seduzam e me façam bem por si só, pelo som, eu não quero que o Eddie Vedder todos os dias cante no meu ouvido que existe algo ali depois da cerca, que ele mesmo não viu pessoalmente, mas que ele sabe que tem. E aí eu não quero mais ser roqueira, porque se a roqueira é tão patricinha quanto aquela menina que ouve Lady Gaga e que usa bolsa de couro super chique, então ser roqueira é se alimentar da MENTIRA. Roqueiro gosta desta merda aqui tanto quanto os playboys. Se eu ficar aqui, mesmo, vou virar patricinha, vou malhar, vou casar com um dono de iate muito rico, ter cinco filhos que vão estudar na França, vou trair meu marido enquanto puder, vou ser trocada aos 50, vou viver de poupança e transar com o jardineiro que não sabe escrever, vou gostar de humilhar o jardineiro, a empregada vai engravidar dele e eu vou mandar que aborte, vou todos os dias de noite contar meu dinheiro e morrer sorrindo. Porque se não é pra isso, o capitalismo não serve pra mais nada. Todo o resto está infeliz.
                Se eu ficar aqui dentro e não pular a cerca, não quero mais escrever contra o racismo: por que tanta revolta com certo tipo de discriminação e tanta complacência com outra? Não posso te explorar porque a cor da tua pele é TAL, mas já que vc tem menos dinheiro do que eu, tranqüilo, vou te dar um subemprego e um 13° Cala Boca e ficamos assim. Tanta revolta contra a discriminação do útero e da TPM, de um lado, e de outro o completo louvor ao neurônio. Vou ganhar a vida escrevendo artigos contra o sexismo e fazer da minha luta uma estética vazia: realmente, era tudo o que eu queria.
                Daí vou e pulo a cerca, e ali do outro lado, viro mendigo, vivo de recicla, ando pelo mundo vendo as paisagens, viro bicho, quem sabe, e por quê? Será que isso contribui de fato para o fim do capitalismo? O que eu quero é que a cerca acabe. Não estou esperando disco voador de resgate: o resgate é agora. O resgate é ontem.
                Eu ouço a música do Pearl Jam e acho que serei essa velhinha atrás do balcão que reconhece no velho viajante o amor de sua juventude. Ou sou o viajante que reconhece a velhinha atrás do balcão? Tenho 25 anos e não sei. Sob esse aspecto, acho que minha mãe foi muito mais esperta do que eu: aos 17 anos, quando eu fiz as malas, ela não me deixou sair pra ver o show do Siri Local, no Convés. Ela sabia que naquela época era mais fácil ir embora, porque eu tinha mais útero que cérebro e não sabia nada da vida. É mais fácil ir embora quando você não sabe dos riscos que corre, como daquela vez que eu fugi da escola e voltei pra casa pela beira da estrada.
                Enquanto a música não acaba eu fico aqui, olhando a cerca.

domingo, 10 de abril de 2011

Doce bizarrice banal


O dia ontem começou com uma notícia, lá pelas tantas veio um filme, e terminou com uma conversa. Estranho como a sequencia de fatos foi me fazendo pensar e analisar certas coisas que, na verdade, eu venho já há algum tempo analisando e refletindo sobre.

Tudo poderia ser totalmente banal se não fosse considerado bizarro. O filme pareceria banal, vidas banais, sonhos banais, pessoas banais, personalidades banais...  A noticia pareceria banal, vidas banais, sonhos banais, pessoas banais, personalidades banais... A conversa pareceria banal... O que se esconde por detrás dessa bizarra banalidade?

Nós escolhemos enxergar o mundo através da íris da bizarrice e não da banalidade. Transformamos tudo em notícia, vendemos banalidade a preço de bizarrice.

Era a história de um casal. Era a história de algumas crianças. Era a história de ex amantes. Nada disso importa. É sempre o mesmo enredo mascarado. Mudamos os personagens, colorimos o cenário... Como diria Cazuza, “a versão nova de uma velha história”.

Eu fiquei ali observando a banda passar com uma sobrancelha em pé, tentando entender os fatos. Foi uma sequencia realmente interessante, era quase como se alguém quisesse me passar algum tipo de mensagem. Se eu fosse mais esotérica ou supersticiosa talvez tivesse ficado levemente paranoica. Mas não foi o caso.

A sequencia dos fatos me levou apenas a mais um looping nessa montanha russa de banalidades. Porque a verdade é que eu já estou ficando de saco muito cheio de chegar as mesmas conclusões over and over again.

Conclusão 1: O mundo é machista!
Conclusão 2: O mundo é consumista... O que inclui muito de perto ser machista... Então o mundo é machista de novo!
Conclusão 3: A mídia é o principal meio de coerção social, mantendo as pessoas roboticamente acomodadas naquele velho status quo. E como o paradigma vigente é machista... O mundo é machista mais uma vez!
Conclusão 4: A propaganda é a principal ferramenta de conservação de consumo. E é aí que a gente caí no vórtice sem fim de machismo...

Eu começo a me sentir repetitiva. Às vezes acho que estou ficando louca, vendo coisas onde não existem. Aí a gente pára, analisa, reflete e volta sempre pro vórtice de conclusões. E quando a gente começa a fazer esse tipo de análise, questionar a sociedade em que vivemos, o estilo de vida que levamos, os modelos, paradigmas e sistemas vigentes, a gente começa a ficar extremamente indignado com tudo. Indignado e impotente.

E eu uso as palavras assim mesmo, no masculino, porque é assim que me sinto. Como um machão brocha. Possuo todo o equipamento necessário mas ele simplesmente não funciona. E eu fico me perguntando porque ele não funciona? Será que adiantaria tomar uma pílula? Hum... Ou será que a pílula me traria a falsa sensação de ereção? Durável por quanto tempo eu for capaz de pagar por ela... Talvez eu devesse buscar tratamento psicológico. Enfiar fundo o dedo na ferida, rever traumas e inseguranças e torcer para que algumas delas tenha algo a ver com a minha impotência.

Nessa hora, lutar pelos seus sonhos pode parecer uma ideia meio infantil. Como você quer conciliar filhos, carreira e sonhos? Depois de muitas brigas e caras no chão, o machão decide que foi tudo apenas um sonho. Agora é hora de voltar pra vida real, ser racional.

É... Pois é... Só que eu também não sou racional. Eu também não queria desistir dos sonhos. Lá pelas tantas, já durante o filme, me dei conta que o personagem mais sensato era o maluco. E essa é uma máxima para vida. A estranha no ninho sou EU! Eu sou a maluca no meio de pessoas que se dizem sãs...

E por fim veio a conversa, que remetia a noticia que tinha iniciado tudo. Ele falava do maluco... É, muitos o tem taxado assim. E eu fiquei com aquela frase (que possivelmente é de algum pensador famoso que eu não recordo, mas poderia perguntar ao google apenas para arrotar um conhecimento que eu não tenho) que diz que não é saudável ser ajustado a uma sociedade profundamente doente.

Era um presságio?

Talvez eu também seja maluca. Me questiono diariamente onde pretendo chegar com tudo isso. Esse é o melhor caminho? Ou você está desistindo do sonho se escondendo atrás de desculpas? Foi uma das frases do filme “nós desistimos de tudo quando eu engravidei... Então tivemos outro filho somente para provar que o primeiro não tinha sido um erro”. Foi apenas um sonho? “Você amarelou? Não quer mais ser feliz? Tem medo de seguir em frente porque a única forma que você conhece de demonstrar sua masculinidade é fazendo bebês?”. Vamos fazer bebês, assim o mundo pode ver que o meu pinto funciona, mesmo que ele já não funcione mais.

Se você for um sociopata eles irão rezar para que Deus te perdoe, alguns vão querer te matar, o que nos remete novamente a temática “Deus”. Se você for simplesmente louco e socialmente inadequado, eles vão te trancafiar em algum lugar e te drogar. Se você levar uma vidinha aparentemente normal, mas sem conseguir desassociar esses fatos, você será solitário... Muito solitário. O que, eventualmente, pode desencadear possíveis “problemas mentais”. Mas se você escolher a fácil e bonita opção de permanecer infeliz sem compreender por que, aí você será abraçado e recolhido de braços abertos: compre, compre, compre, Botini!

Então é isso... Vamos todos ouvir o que o casal mais chato do Brasil tem a nos dizer as 20h! Vamos engolir suas porras e engordar com elas! Vamos encher nossas barrigas com mais bebês que já nascerão chorando e aprendendo a se frustar! Vamos fingir que dinheiro resolve todos os nossos problemas! Vamos negligenciar nossos filhos para produzir dinheiro porque é disso que criança gosta: money! Vamos ficar chocados quando uma dessas crianças crescer e se revoltar! Vamos achar que ela é uma pobre coitada, que tinha algum tipo de problema mental, que sofreu muito bullying ou gostava de Marilyn Manson! Vamos bater palma pro casal que nos ensinou a fazer tudo isso! Depois a gente pode dormir tranquilo porque amanha tem mais porra pra comprar!!!

Que bom que eu ainda tenho um dinheirinho na poupança... Assim posso comprar bastante porra pra mim e pra minha família, que eu amo tanto!!!

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quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ensaio sobre espiritualidade e ativismo

Neste carnaval, minha mãe passou por uma intervenção cirúrgica e eu tive conjuntivite bacteriana. O resultado de ter passado sete dias em casa no mais completo confinamento foi muito deleitoso: coloquei leituras em dia, escrevi quase diariamente para O Caju e vi muitos filmes que deram o que pensar. Foi um carnaval muito produtivo, talvez o mais produtivo de minha história.

Entre os muitos filmes que vi, uns na TV, outros alugados e terceiros pirateados, minha mãe trouxe (antes de ser operada, já se precavendo contra o tédio) um filme chamado “Homens em Fúria”. Ela, que adora filmes de ação, viu o nome do filme e os protagonistas (Robert de Niro e Edward Norton) e o colocou no bolo, desavisada do conteúdo. Sem nem ler a sinopse, colocamos o disco no aparelho de DVD e nos sentamos para ver, esperando o momento em que as grandes explosões e toda a suposta fúria dos homens começariam a tomar a tela.

Não aconteceu.

Stone (Edward Norton, e também título original do filme) é um presidiário qualquer, prestes a ser solto de volta ao mundo. Para tal, contudo, deve passar pela avaliação psicológica de Jack (de Niro), cujo trabalho é o de analisar os detentos a fim de determinar se estão ou não aptos a voltar à sociedade. Descrente da própria aprovação, Stone convence sua mulher Lucetta (Milla Jovovitch) a seduzir Jack, prestando a este alguns favores sexuais, para obter uma avaliação positiva do marido detento.

A alguns meses de sair da prisão, Stone se depara na biblioteca com um livro de uma doutrina religiosa (fictícia), e começa a observar o mundo sob o prisma da espiritualidade. Sob essa nova perspectiva, sair da prisão deixa de ser relevante. Sua própria vida pessoal deixa de lhe ser interessante. O personagem passa por momentos de reflexão e angústia sobre o mundo da prisão, sobre o mundo “lá fora”, sobre Jack, seu avaliador, e sobre sua própria mulher. Daí em diante, o filme adota a perspectiva espiritualizada de Stone, ainda que de uma forma bastante sutil, demonstrando o desespero e a sensação de desolamento de personagens possíveis e absolutamente cotidianos, que vivem sua vida ao acaso, a esmo, seguindo única e exclusivamente a inércia de, um dia, terem nascido.

O filme transcende as questões de “final feliz” ou “final triste”. No final, todos saem vivos; mas em qual condição essas vidas estão sendo construídas? Aqui, a questão levantada não é a qualidade material da vida, como dinheiro e sobrevivência de forma geral, mas o fato de que uma vida levada despropositadamente, ou seja, uma vida à qual não se atribui nenhum sentido maior do que simplesmente estar vivo, acaba se tornando uma inevitável fonte de angústia.

Era meia noite quando fui dormir, realmente assombrada pela profundidade e impacto do filme. Recomendo a todos.

Eu cuido muito bem da minha mente. Eu a alimento, eu a estimulo, eu a exercito. Eu proponho desafios a mim mesma, como o texto sobre psicanálise que estava lendo antes de vir escrever. Eu proponho diversão a ela, com crônicas, contos, seriados televisivos, e outras sortes de entretenimento banal. Eu proponho exercícios quando me dedico a escrever minhas reflexões e pontos de vista acerca do universo. Apesar de muitas vezes levá-la ao limite da exaustão e achar que vou acabar louca por sobrecarregá-la, eu sempre sou capaz de parar um pouco antes do curto-circuito e cuidar dela. Não é inteiramente mérito meu, embora eu cuide dela com interesse e dedicação verdadeiros: quem tiver passado por uma boa escola e tiver ingressado em uma faculdade de qualidade, estará em contato com resquícios iluministas, com traços de uma cultura voltada para a saúde da mente.

Infelizmente isso não é tudo. Infelizmente, na contramão dessa saúde mental (não no sentido psiquiátrico, mas num sentido intelectual de “mente”) nossa sociedade é voltada para a depredação do nosso espírito. Nós somos sucessivamente enfileirados em funis e esteiras. Aliás, nossa própria organização espacial é voltada para a massificação do sujeito: nós vivemos enfileirados, arranjados em formas geométricas onde o que importa é nossa ordem de chegada (no caso das filas-retângulos) ou nosso poder aquisitivo (na forma das pirâmides hierárquicas), somos encaixotados em estruturas de concreto cujas formas e materiais são totalmente inorgânicos. A austeridade de nossa cultura nos leva ao ponto em que o olhar é uma afronta e o sorriso só pode ser dado em circunstâncias envolvendo interesse sexual.

Nossa arquitetura (Niemeier que o diga) dedica-se a inventar nossa pequenez. Sim, inventar: porque de modo algum somos pequenos. De modo algum somos insignificantes. Somos tão magníficos quanto leões, girafas, lacraias e estrelas. Sim, lacraias: ontem mesmo, conversando numa roda de amigos, uma lacraia surgiu entre nós, aos nossos pés, e eu nunca vi pessoas subirem tão rápido em cadeiras e mesas que antes sequer pareciam estar ali. Quem inventou que o nosso tamanho em centímetros diz alguma coisa sobre o tamanho de nossas almas é essa mesma sociedade que ergue monumentos para nos tornar pequenos diante de nós mesmos. Sim, essas igrejas e estátuas tão “lindas” nada mais são que grandes mãos enluvadas, esmagando nossos espíritos.

Embora intelectualmente consigamos transpor o determinismo naturalizado desses valores, embora saibamos que não somos de fato pequenos ou insignificantes, essas mensagens que gozam de nosso descrédito ainda nos deprimem, ainda nos chocam. Nessas horas eu realmente penso que existe uma dimensão do existir humano que está além da nossa intelectualidade. Por ter sido educada por pais ateus (depois eles fizeram as pazes com o divino, mas eu já tinha 18 anos e o estrago estava feito), eu não sei se essa dimensão à qual me refiro, eu não sei se esse espírito é apenas mais uma faceta de nossa mente ou se ele é de fato algo além de nós, sem existência material. Mas quanto mais penso sobre o assunto, mais concluo que isso não importa realmente: seja ela material ou imaterial, seja ela cerebral ou não, existe uma dimensão da vida humana que não é nutrida ou satisfeita apenas pelo nosso saber.

Está longe de mim sugerir um livro, uma música, sugerir que nos abriguemos na igrejinha mais próxima, que façamos um culto ecumênico na praia ou na pracinha. Se a espiritualidade consiste, como acredito, num encontro profundo e autêntico com nosso próprio ser, nesta empresa não pode haver dois caminhos iguais – de onde deriva toda a minha desconfiança para com as religiões “disponíveis do mercado”. Mas existem santuários em nossas vidas que excedem qualquer prédio que se pretenda sagrado: existem livros, músicas, sabores e todas as sortes de experiências sensoriais que nos deixam com a nítida sensação de que algo além de nosso corpo está satisfeita. Abrigue-se nisso sempre que necessário.

Dedico este ensaio a todos os ativistas que estão intelectualmente nutridos, mas espiritualmente exaustos. Quando um vegano cai, como diria minha amiga, pode ser por uma questão de “ceder aos prazeres efêmeros do capital”. Mas ser ativista é espiritualmente extenuante, e muita gente cai por isso também. Cuide do seu espírito com a mesma tenacidade que cuida do seu ativismo.