No que tange à autonomia da mulher heterossexual em relação a seu corpo, uma conquista que permanece é a relação entre o útero e o pai. Porém, na medida em que o corpo com útero deixa de ser uma negociata entre pais, vinculada à manutenção ou à expansão da propriedade privada, o capital apropria-se de tal conquista, ressignificando-a, impondo à mulher a reprodução da lógica de mercado em relação a seu próprio corpo. Agora, “ela vai à caça”: uma vez que a sociedade reconhece a opção pela independência, ou melhor, pela solteirice, como uma derrota imperdoável, envolvendo a “mulher sozinha” num manto de complacência e tristeza, torna-se responsabilidade da mulher heterossexual “conquistar um homem” à custa de um investimento que incide majoritariamente sobre a estética – embora cada vez mais tenda a abranger também sua performance.
Quanto mais exitosa for a mulher nas artes da conquista; quanto melhor souber maquiar-se e vestir-se, mais valorizada estará em relação às demais, numa complexa escala de valores que agora não apenas comporta classe e raça como critérios como: a textura do cabelo, a silhueta (gorda ou magra), a pele sem manchas e sem pêlos, cabelos brilhantes ou opacos, e por aí vai. Essa estrutura complexa provoca entre as mulheres a constante sensação de competição, sensação esta que nos divide. E não pensemos ingenuamente que se trata apenas de um acidente, de uma coincidência promovida por uma cultura: trata-se de uma estratégia ativa do machismo para evitar sentimentos de cumplicidade e união entre as mulheres, união essa que, ao longo da história, tem sido sempre vista com maus olhos. Frequentemente, os diversos veículos de comunicação através de suas narrativas (novelas, livros, filmes, séries de TV, etc) treinam a nós, mulheres, para conceber umas às outras como ferrenhas competidoras; somos descritas como maliciosas e falsas; nossas amizades, quando representadas por tais narrativas, são laços frágeis e provisórios, sempre ameaçados pela aparição de um homem, e a sociedade civil absorver tais arquétipos, acabando por reproduzi-los. Não raro, melhor amiga e namorado se odeiam: o namorado vê na melhor amiga uma rival, não no sentido do sexo, mas no sentido de que a melhor amiga em geral preocupa-se com o bem-estar da mulher, e não com a estabilidade da relação, o que leva muitas vezes a melhor amiga a depor contra o cônjuge.
Nessa lógica de mercado, a mulher procura tornar-se o produto mais bem posicionado na prateleira, mais valorizado no grupo a que pertence, e isso passa por dentro das relações com o capital. Uma vez que a beleza em nossa sociedade exige uma grande monta de investimentos tecnológicos – cosméticos, roupas – a mulher heterossexual acaba por definir sua identidade através da relação de exclusividade que mantém com os bens que consome. A partir disso é fácil entender por que a situação paradigmática do “vestido repetido na festa” é tão trágica: uma vez com o mesmo vestido, as mulheres tendem a comparar-se e a serem comparadas, afixando automaticamente uma vencedora e uma perdedora.
É importante ressaltar que estar no topo dessa hierarquia trás inúmeros benefícios aparentes para quem dela goza: ser bem atendida em lojas, possuir um séquito de homens que, na esperança de um dia possuí-la, mantêm-se amigos fiéis e solícitos, ser mais bem orientada por professores, receber presentes, entre outros privilégios. Isso nos divide ainda mais enquanto classe de seres oprimidos em função de nossos úteros: aquelas que estão de fora do clube de vantagens revoltam-se, e com toda a razão; muitas feministas passam a enxergar melhor a opressão que vivem na medida em que estão privadas das poucas vantagens que “ser mulher” nos oferece. Nesse sentido, aquelas que continuam a ser aduladas melo machismo passam a ser publicamente promovidas como exemplares do gênero, promovendo uma pedagogia que, através de revistas, jornais, programas de TV, disciplina meninas e jovens mulheres a seguir o arquétipo das “vencedoras”. O mesmo discurso, pois, através da lógica formal, tipifica a feminista enquanto uma mera mulher descontente, “despeitada e invejosa” com uma ordem que é construída como natural, ou pior, como correta. O feminismo, pois, é esvaziado de sua política.
Não à toa, retomando nosso tópico, a feminista é qualificada como “mal-amada”. A mulher, enquanto gênero, constrói-se na sua submissão ao homem. Toda a construção da identidade feminina é voltada a tornar o corpo uterino uma ferramenta do corpo com pênis; de nossa estética à nossa subjetividade, toda a construção de nossas personalidades e caráteres é um longo e lento investimento simbólico de domesticação. E o amor é a consumação, a convergência de todos os condicionamentos, e o ponto em que suas finalidades vêm à tona. É no “ser amada” e no “amar” que o corpo com útero consuma a metamorfose em mulher, e eleva exponencialmente seu servilismo aumentando seu investimento cosmético, indumentário e performático. E a feminista rejeita esse tripé. Na busca por desqualifica-la e despolitizar essa luta, a feminista é tipificada como mal-amada e, mais recentemente, mal-comida – e mal sabem nossos inimigos que, no que tange à construção do gênero feminino como mero complemento à sexualidade e à subjetividade do falo, nesse sentido da palavra, não nos interessa ser mulher.
Isso nos leva a dois questionamentos. Ambos são de interesse tático, estratégico, para a luta contra o falocentrismo. Uma vez que a primazia do Homem muito se exerce nos atos de fala, a linguagem, a escolha lexical que fazemos em nossos enunciados, são de suma importância para a nossa luta. Uma vez que o falocentrismo nos organiza simbolicamente, muito de nossa luta acontece no âmbito dos significados e das ressignificações. Desta forma, até que ponto devemos reivindicar palavras tais como amor e mulher?
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