domingo, 24 de julho de 2011

Amor

Como já disse alguém que deixou a frase no ar e depois a perdeu, tudo pode ser. Pode ser acaso, um mau dia, céu cinza, a topada que eu dei hoje de manhã, ao saltar do ônibus, e já nem lembro, mas que deixou impressa em mim irritação que, esquecida a causa, tornou-se como se intrínseca a mim. Acho que ao deixar o útero da minha mãe dei no mundo uma topada qualquer que agora já me é natural. E é possível que seja, porque tudo pode ser; mas como não se pode viver sobre o solo fértil das possibilidades, vou dizer que não sei.

Eu lembro do crepúsculo da minha adolescência: eu era muito como eram os dias das minhas férias de verão, as férias de uma infância primitiva e já quase esquecida, a não ser por um punhado limitado de sensações; as férias não acabavam nunca, as férias eram só certeza. Havia aquele desvario de brincar e a ilusão de que não havia hoje, posto que o sol por pouco não se punha; o dia se estendendo através das horas mal deixava perceber que já eram sete da noite, e bastava um piscar de olhos já se estaria brincando sob um céu violáceo cheio de estrelas, e seria a hora do banho – de tirar o barro das mãos, vestir pijama e sonhos. No crepúsculo dos meus dezoito anos, achava que estava no começo de tudo; a terra prometida do Feudo Acadêmico exalava seu cheiro de livros velhos pelas fendas das pesadas cortinas de veludo (minhas ilusões), e uma vez atravessado o Estige do vestibular, eu ganharia o mundo. Era tudo tão certo!

Achava-me tanta coisa que hoje já não concordo, ou não lembro, ou acho até que não existe – acho que é assim com todo mundo. Entre essas coisas estava a ideia de que era anarquista, e lembro de estar certa vez em um simpósio sobre o tema, ali no Campus do Gragoatá, da UFF – para aqueles que não conhecem, sintam já na palavra Gragoatá o cheiro do mar e das amendoeiras, o chão de pedrinhas, os quero-queros, e até uma certa magia, mesmo que neste texto essa última soe vulgar. Inebriada pela Academia que eu adentrava pela primeira vez, perdida entre professores e punks unidos sob a mesma redentora bandeira, eu olhava os títulos dos livros à venda com alegria, com esperança, e sem dinheiro algum, como era de praxe naquela época, até me deparar com um que me levou à revolta – a revolta levou meus pezinhos, sempre naqueles velhos tênis, a ir embora com pressa, pensando puta num cem número de argumentos contra uma certa dona que dizia, em seu livro, que essa coisa de amor não existe.

Aquilo era um terrível engano, pensava. No ímpeto de despir-se das amarras que a aprisionavam, a moça, cujo nome se perdeu (e as arqueólogas façam o favor de achar), acabara caindo na mesma ingenuidade daqueles que acham possível destruir um sistema apenas negando a sua existência, ou a mesma arrogância de quem pensa que, uma vez não sendo documentada, a solitária folha jamais caiu no meio da floresta. Dizia não apenas que o amor não existia, como tinha sido inventado, com a arquitetada intenção de aprisionar a mulher no lar, nas quimeras; libertando-a num mundo medievo, saciar-lhe-ia a vontade de por si só viver o que lia, enquanto suas mãos poderiam ficar eternamente atadas nas bolhas de sabão de um detergente doméstico.

O livro e sua orelha ousada nunca me abandonaram inteiramente, compondo um pesadelo que algumas vezes me pegava sonolenta, cabeceando nos ônibus da vida. Porque se não houvesse amor, eu não sabia exatamente o que seria de mim, posto que desde o amanhecer da minha vida tinham-me dito que a existência de tudo aquilo que eu chamava de “eu” era apenas o amontoado errático de moléculas que tomariam sentido uma vez que eu encontrasse meu grande amor. Minha história, pois, era pura pré-história; eu, por minha vez, era apenas o apêndice de uma outra vida, eu era peça num quebra-cabeças composto apenas de duas partes: eu e Ele. “eu” em minúsculas.

Caro homem que me lê; cara pessoa dotada de espermatozóides cujo corpo desde cedo é assinalado como masculino, e conduzido pelo mundo por uma sucessão de portas abertas – claro que nem todas as portas estão abertas; para além da diferença dos gêneros, há a de cor e de classes; mas imagine que se a sociedade tem sido para vocês uma sucessão de portas abertas pontuadas por obstáculos, a vida da mulher é um amontoado de obstáculos pontilhados de portas abertas. Caro macho – com o perdão da palavra – imagino que a partir deste parágrafo o texto represente uma real dificuldade de leitura para vocês, treinados veementemente para rebater toda a literatura feminina com suas metáforas mélicas e floridas. Pois bem, se é verdadeiro o repúdio, mais verdadeiro ainda é o fato de que tal reação não lhe é natural, mas parte da constituição social, cultural e política daquilo que grosseiramente chamamos de “caráter” ou “personalidade”. A nós, mulheres, foi legado como que um gueto literário, isto é, uma gama de assuntos “tipicamente femininos” que nos são apropriados, quando não obrigatórios. No epicentro desta miríade de assuntos está o amor, e não por acaso, como veremos adiante. E os homens, evidentemente, são devidamente orientados a não gostar de boa parte de nossa produção cultural literária, não por motivos de qualidade, mas porque essa é uma literatura que francamente nos inicia no mundo da submissão.

Desta forma, o homem que quiser colaborar para o fim da opressão de gêneros terá de lutar contra o que é possivelmente a maior marca do falocentrismo: o monopólio do lugar de fala. A paixão pelo discurso e o desprezo pela escuta. Na convivência diária, a supremacia do falo não se manifesta só (nem majoritariamente) na divisão assimétrica de tarefas (que em geral leva ao acúmulo das tarefas braçais para a mulher), mas nos atos de fala. O bom observador verá que qualquer mulher que se pronuncie em situação imprópria, isto é, situação na qual é pressuposto o domínio intelectual masculino sobre o assunto, será automaticamente rotulada por alguma alcunha pejorativa, entre as quais a mais delicada será algum sinônimo qualquer de “verborrágica”. Isto porque os atos de fala, por mais prosaicos e cotidianos que sejam, são todos políticos; é sobre os discursos que se organizam as ações, as disciplinas; sendo assim, as falas que exigem conhecimento técnico, científico, isto é, as falas que são determinantes para as práticas devem ser proferidas exclusivamente por homens. Toda a impaciência com o discurso feminino – não suportar a voz, não querer ouví-la, ter a sensação permanente de que a mulher não discorda, mas apenas não entendeu o que você queria dizer – fazem parte de uma prática despótica tipicamente falocêntrica: a expulsão da mulher do lugar de fala. Retomando, pois, a proposta inicial, o homem que quiser engajar-se objetivamente na luta pelo fim da opressão da mulher terá de escutar. A escuta é revolucionária.

O mito de Adão e Eva é o que infla o pulmão dos ultrarromânticos, grandes responsáveis (embora não únicos) pelo modelo de amor que se dirige à mulher. A constituição do mito permite-nos enxergar por que o mesmo tema, “amor”, muitas vezes através das mesmas narrativas (cânones da literatura, filmes, novelas televisivas) surte sobre a mulher e sobre o homem efeitos diferentes, orientando comportamentos opostos.

É fato que o mito propõe que ambos, homem e mulher, sejam incompletos, e profundamente infelizes em sua incompletude. Não se trata apenas de uma incompletude subjetiva, mas objetiva, quase visceral: a história insinua que é objetivamente impossível atingir um grau satisfatório de felicidade na solidão, quando não afirma que a felicidade encontrada na solidão é apenas ilusória. Para além disso, o mito de Adão e Eva, em seus desdobramentos, ressignifica a palavra “solidão” para um sentimento de desolamento, depressão e angústia, identificando a raiz dessa inquietude na falta do cônjuge. Dessa maneira, para homens e mulheres, a fonte da felicidade é o amor conjugal, de onde derivarão todas as outras alegrias; todas as alegrias são completas no amor conjugal apenas.

A pequena diferença está na questão da costela. O Homem é orientado a procurar a parte que lhe falta no todo; a mulher, por sua vez, é orientada a encontrar o todo d'onde se perdeu já no início dos tempos, para onde suas vísceras apontam sem falhar. Se para o homem a procura do amor faz parte de uma saga espiritual, subjetiva, para a mulher trata-se de uma busca muito maior. O Amor para a mulher não é apresentado apenas como um sentir intenso, como a alegria de encontrar um sorriso de quem se gosta; o amor, para a mulher, é construído e imposto como um conjunto de valores e práticas que excede o mundo das flores e dos suspiros. O mito do Amor é um mito de retorno ao verdadeiro lar. O mito do amor é o que desvela impiedosamente que o laicismo do mundo ocidental é uma máscara trágica, posto que põe milhões de mulheres na esteira fabril da busca pela paz de espírito, busca na qual a mulher se anula em função do sujeito de desejo, numa relação fatalmente assimétrica na qual torna-se o objeto.

No mito do amor ocidental e bíblico, a mulher não pertence a si mesma, é a consequência lógica do homem. Seu corpo deve, pois, aguardá-lo, e caso caia em tentação, sofrerá internamente as mazelas da culpa. Ainda que a virgindade esteja vivendo dias inglórios, o mito é apenas lapidado, deformado: transforma-se na dicotomia “sexo casual” versus “sexo com amor”. Não raro revistas femininas escrevem artigos sobre o tema, orientando sempre as meninas no sentido de enaltecer o segundo em detrimento do primeiro, sem contudo bombardear o “sexo casual” às claras. E uma coisa continua constante: mesmo que o seu “primeiro homem” não seja o seu “verdadeiro amor”, é fortemente aconselhável à mulher estar perdidamente apaixonada pelo homem que lhe tirará o hímen.

A questão da virgindade quando analisada pelo prisma do amor fagocita a biologia na mais curiosa peripécia: virgindade e promiscuidade são medidas da vagina, e não do comportamento social. Por essa razão torna-se fácil explicar por que o homem não está sujeito ao valor de uma ou de outra coisa, a não ser pela obrigatoriedade de NÃO ser virgem – o que gera um problema aparente: se o homem deve perder a virgindade e a mulher deve guardá-la, alguém tem que ceder. Porém, a sociedade aponta dois diferentes caminhos, sejam eles: sendo a virgindade concernente apenas à vagina, mais precisamente ao hímen, todas as práticas “periféricas” são apenas “preliminares”, de forma que o corpo da mulher pode continuar livremente servindo ao prazer peniano. A segunda solução surge do corte de classes e raça: para que as meninas brancas e ricas possam ser virgens, o homem pode dispor dos corpos negros e pobres, bem como das prostitutas – o arquétipo de Maria Madalena, aliás, demonstra com perfeição que o mundo cristão vê na prostituta uma função duplamente moralizante de garantia da virgindade das “moças de bem”, um exemplo do comportamento proscrito e a contenção do adultério feminino, uma vez que, para burlar o casamento, o homem procurará preferencialmente a prostituta, e não uma mulher casada, ou pior ainda, virgem.

A estrutura conservadora e cristã na qual o corpo da mulher pertence ao pai antes de pertencer ao marido afrouxa-se – sem desaparecer – no que tange ao pai, mas permanece no que tange ao marido, ou ao “grande amor”. É ilusório pensar que de alguma forma a indumentária feminina atende a alguém além do homem, de suas necessidades subjetivas e simbólicas. O espartilho não foi abolido, mas engolido na medida em que o corpo feminino deve, agora, corresponder biologicamente à silhueta denominada feminina. Esta, por sua vez, está mui longe se representar vagamente um estereótipo que seja do corpo que contém o útero (contrariamente ao discurso da biologia), representando, isto sim, o imaginário de um corpo simbólico que corresponde aos papéis atribuídos à fêmea humana: o corpo torneado responde ao vigor e ao apetite sexual; os seios fortes e os quadris largos apropriados à proliferação; ausência de pêlos denotando delicadeza, suavidade, fragilidade e, em última instância, dependência.

Por essa razão, amor e conjugalidade estão entrelaçados na percepção deste sentimento destinada à mulher; amor não se trata, portanto, apenas de um estado emocional, mas de uma crença na qual um estado emocional é também físico e espiritual, que a levam de maneira automatizada, naturalizada, ao cumprimento de um papel. O apelo mélico do qual falei ainda há pouco é apenas uma entre as mais variadas estéticas na qual o amor é insinuado à mulher, emaranhado nas narrativas que compõem a cultura. Erro é pensar no falocentrismo como um obelisco defendido a ferro e fogo por uma corja acéfala testosterona: o segredo de uma sobrevivência próspera reside, inclusive, em sua maleabilidade.

A ideia de que o monopólio do útero rege a vida sexual da fêmea foi firmemente bombardeado pelo advento da pílula anticoncepcional que, como vimos, foi rapidamente convertida em um benefício para o prazer do homem, que consegue através dela livrar-se da camisinha, exercendo sua dominação simbólica através da ejaculação. A dissociação entre sexo e proliferação certamente abala o amor cristão na medida em que a prole era apresentada à mulher como fruto máximo do amor; porém, isso apenas desloca mais ainda a centralidade do amor para o sexo, condensando dois arquétipos em um só corpo: a santa e a puta. Ela é santa na medida em que sua fidelidade ao falo é real, inquestionável; contudo, movida pelo amor, construído como força primitiva e visceral, a mulher acessa seus “instintos mais animalescos”, assumindo no coito posturas ativas, dominantes, extremamente gráficas. Quanto mais sua performance corresponde à coreografia da prostituta, mais próxima ela está de seu núcleo animal, e supostamente despida da cultura e das exigências sociais, está também mais próxima do amor.

“Self made woman e o mito da conquista: agora que a mulher não é mais peça de negociata política entre pais e maridos, a função da beleza e do empenho na feminilidade são responsáveis por arrebanhar o abraço de um homem...”

2 comentários:

  1. Amores, vou comentar.

    "Existem 1000 maneiras diferentes de amar. Invente uma".

    Penso que o grande 'barato' da vida, assim como das relações humanas é a ausencia de regras. Que bom que ninguem vem a este mundinho com Manual de Instruções.

    Quanto a proclamada "independencia da nova mulher" só serve a um unico e ótimo fim: provar que as relaçoes de genero não biológica, mas atão somente social e culturalmente construídas.

    Parabéns pelo texto

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  2. Alias, o que vem mesmo a ser "homem" e "mulher"? Eu sempre me esqueço rs.

    è certo que não podemos vencer um sistema simplemente negando-o, mas se o tal sistema é artificialmente construído, podemos descontrui-lo através da contestação e subversão. Aliás, acho que é para isso que aqui estamos, certo?

    (comentario de uma suposta "mulher sem utero e com 'aquilo', que não se considera "heterossexual", mas não tem este tipo de preconceito)

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