quarta-feira, 13 de julho de 2011

Colheita Feliz

Banheiro velho, pia cor-de-rosa. A cafonália dos anos 1980 impressa em cores aberrantes nos azulejos da parede, e ainda mais vívidas pelo encardido dos anos. Banheiro masculino, o descuido de uma barba feita na pia, a preguiça de empurrar os pêlos para o ralo, gibis da Mônica acumulados ao lado do sanitário. Em um minuto de solene silêncio, pergunto de quem são essas personalíssimas pegadas impressas no banheiro de uma república masculina.

Eu sou uma intrusa, um parasita. Sou o ovo da verminose que espera em silêncio um descuido do organismo para crescer, instalar-se e corromper a estrutura tão hospitaleira e agradável que se me faz Casa. Uma parasita sem voz, uma parasita que não pode ser sabida, dentro do banheiro eu calo até a minha respiração e peço encarecidamente ao meu coração que bata um pouco mais baixo, por favor. Porque são horas da manhã, e pode um homem querer acordar, fazer a barba, escovar os dentes, e a regra é muito clara ao dizer que as mulheres não podem entrar.

E vem de dentro de mim esse prazer imenso de saber que ali é meu lugar. Um protesto, um tímido protesto; meu lugar, meu lugar de fala, meu lugar no palanque é, e para sempre será, o lugar errado. Toda vez que a fronteira da Norma se alarga para aconchegar (ou calar?) alguma coisa em seu seio, eu trato de pular a barreira e ficar de fora. Sempre de fora. Porque não há norma que me abrace, o abraço da norma é sempre o sufoco, o silêncio, e eu cheguei ao mundo da mesma maneira como pretendo sair dele: com gritos de protesto, banhada em sangue.

Ainda que seja um sangue metafórico, veja bem. Eu tenho a sorte que muitos dos meus amigos não têm, pois ninguém ainda me encostou as mãos para tirar sangue do meu corpo em função dos meus ideais. Cada dia a mais acho que é só uma questão de tempo; cada dia mais é um a menos até que surja das sombras alguém, um coturno nas minhas costas, me chamando de sapatão, de comunista, de maluca, de qualquer coisa. E ainda que o coturno nunca chegue (oxalá não chegue!) a sua sombra me persegue. São palavras hostis emaranhadas no meu nome, que ouço nas esquinas, nos corredores, nos bares da vida. A batalha deste lado de cá, a batalha dos enjeitados, dos invisíveis, é simbolicamente manchada de sangue; a dor que a gente sente, a dor que eu sinto consumida por dentro, é imensurável.

Mesmo que eu quisesse, mesmo que eu tentasse, meu corpo desobedece as ordens da moral estética. Isso, ele faz sozinho. Porque a vida inteira eu só ouvi “você está ficando mocinha”, a metamorfose nunca se deu. No corpo, a mulher nunca emergiu, nunca entalhou suas curvas, e no rosto, tampouco a boneca foi embora. Daí resulta que nunca cheguei a ser mulher: nunca fui vista como algo maior que garota. E como me frustrava, meu deus! Porque enquanto ao meu redor esbanjavam-se pernas, peitos e bundas, eu era eternamente o meio do caminho.

O meio do caminho em tudo. Nunca me decidi entre meninos e meninas. E as pessoas sempre me cobrando as contas. Porque afinal, você vai ter que casar, vai ter que escolher entre um e outro. Do que você gosta mais, gato ou cachorro? E não tem nada, além disso, no cardápio da sociedade? O prato do dia há de ser sempre uma dicotomia?

Passa-se talvez um minuto antes do seu regresso. Não combinamos nenhum código para bater na porta, pode ser qualquer um do outro lado. E eu, pelada, esperando você voltar, dou uma chance ao azar: que nada. Era só você, que entra sorrindo com essa sua cara de menino bonzinho. Coisa que eu admiro em você é esse sorriso. Eu gosto de mergulhar nessa sinceridade e aí tirar férias do universo. Porque, como você sabe, eu não sou marxista, não boto tanta fé nos seres humanos. Faço as apostas mais baixas, mais rasas, nunca jogo minhas fichas todas, muito menos nos Homens.

Eu, até a quinta-feira passada, tinha feito uma escolha muito clara. Não porque precisasse dar à sociedade a tão esperada resposta, mas porque estava cansada de apanhar simbolicamente. Estava cansada das promessas libertárias de certos homens que na cama, ou ébrios, tornam-se tiranos. Cansada de ser diariamente expulsa do lugar de fala: você já reparou que quem fala demais são os homens? Você já reparou quantos assuntos, quantas frases no meio pode encontrar na sua memória? Você, Homem, já reparou com que olhos encantados sua amante se debruça em suas palavras? Não se trata tanto de amor quanto de respeito, e esse respeito, cansei de procurar debalde nos homens. Quando você me pegou eu estava de malas prontas.

Nus no banheiro, no frio, no silêncio. Tudo em você é suave: você ficaria espantado em saber que já passaram pelas minhas pernas muitas mulheres mais homens que você. E é disso que eu gosto: gosto de você onde você falha, onde você desvia, onde você ignora a norma, onde você se encontra comigo no meio do caminho. Nossas mãos indecisas passeiam, com certa dúvida, dos pêlos, nas costas, nas pernas. O chão escorregadio faz com que nossos atos sejam menos pornográficos do que risíveis, e por isso, sem deixar de zelar pelo silêncio, nós rimos um pouco, rimos baixinho.

Na minha cabeça, crio um orgasmo. Espero pelo gozo enquanto conduzo suas mãos pelos caminhos que ficam ocultos entre as minhas pernas. Sei que são muitos pêlos, sei que você talvez não entenda ainda que eles fazem parte de todo esse protesto que eu tenho sido nos últimos anos. Ainda assim, não deixo de desejar a sua mão, os seus movimentos, e por fim não deixo de desejar o seu afeto e seu desejo. Mas as mãos vacilam e se retiram de leve, como se no resto do corpo houvesse mais o que fazer do que desvendar o já desvendado mistério que mora entre as pernas.

Porém, quanto mais você afasta as mãos, quanto mais cola os lábios nas minhas costas, quanto maior é seu calor contra meu corpo, quanto mais longo é seu abraço, mais o desejo esquenta e escorre por entre minhas pernas. Eu trago de novo suas mãos com delicadeza, e com a mesma delicadeza elas se afastam. Começo então a tremer e a temer por dentro que você não me deseje. Que não deseje este corpo que, despido dos artifícios da alfaiataria, é andrógino, é impreciso, decidiu-se inexato. E o tempo passa, e as carícias continuam no mesmo ritmo lento da grama que cresce, das nuvens que pastam no céu nos dias do outono. “Eu preciso ir embora”. Recolho do chão as minhas roupas, guardo no bolso a camisinha ainda na embalagem, e vou embora aterrorizada, pensando no que aconteceu. Pensando no que NÃO aconteceu; pensando em que significa esse sinal do céu, essa peste na minha Tebas, indagando-me se, tal qual Édipo, não serei eu a minha própria peste.


(CONTINUA...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário