domingo, 17 de julho de 2011

Colheita Feliz (parte 2)

Saímos do banheiro, da sala, do apartamento; numa rua do Centro que não tem nome, a realidade dos abraça, com lembranças da prova de hoje à noite e da sua reunião – porque você é um menino muito sério, e afinal nós temos uma revolução a fazer. Você ainda sorri, todo suave, mas na bondade que esgarça seu rosto tem agora uma ponta de sarcasmo. Você toma minha mão e brinca com meus dedos como numa medalha de honra ao mérito, aquelas medalhas de latão que são distribuídas às crianças que nunca estiveram realmente no páreo. Eu penso que nunca fiz parte do seu desejo, e agora me inundam os fantasmas da infância, os fantasmas disformes do medo e da angústia escondidos sob um branco lençol, arrastando as correntes no fundo lamacento da minha alma, repleto de desgosto e lágrimas que nunca chorei. Nessas horas eu lembro que não sou mulher – nem homem, nem coisa alguma – e chego a pensar que não é assim tão absurdo que você não me queira. Esse meio de caminho, essa incógnita.

O que, é claro, fica muito longe de atenuar meu desejo, e meu corpo inteiro, imantado por essa sua mão a brincar com meus dedos, ainda te deseja, ainda grita eriçando meus pêlos, como gato que acaba de ver assombração. Talvez eu não seja tão revolucionária quanto penso. Não. Eu sou apenas uma lunática que orbita pequenos desejos, pequenos cometas que vivem a bagunçar a ordem já muito frágil da minha alma. Eu sou uma cafajeste sempre atrás de um novo rabo de saia, sempre abanando o rabo para a mais nova paixão que desfila ante meus olhos, nas ruas da Vida. Se minhas paixões são idéias, se me apaixono pelo feminismo com a mesma facilidade com que me envolvo nos cachos profundamente negros que habitam essa sua cabecinha marxista, é pura coincidência. Não é razão nem empírica a chama fátua que me guia através da vida, mas o brilho efusivo entusiástico das minhas paixões. E assim, seguindo de ouvido as batidas do meu coração e mantendo acesa no horizonte uma pequena cisma, eu sigo.

E não é o feminismo nem a teoria queer que desata o nó na minha garganta, mas o fato de que as minhas entranhas ficam perturbadas quando você não está dentro de mim. E, desatado o nó, libertas as águas, a pergunta saiu tão rápida que não pude lapidá-la, refiná-la, a pergunta saiu com a mesma violência com que antes dominava meu interior:

O – Por que você não quis me comer?

Inabalável, você:

O – Porque não teve clima.

Inabalável, eu:

O – Mas o que deu errado?

Sorrindo sem qualquer sombra de sarcasmo, sorrindo a paz das nuvens do céu, você responde:

O – Porque não precisa ter sexo para dar certo. Estava bom como estava, não fique preocupada.

E eu entendo que sou machista; que sou eu quem vive transformando o sexo na cereja do meu bolo. Que, preservando o valor patriarcal do coito, continuo achando que o sexo é a consumação do afeto e a fusão das almas, quando o sexo é apenas uma entre as muitas formas de acariciarmos e sermos acariciados. Continuo esquecendo que talvez esteja muito mais junto de você caminhando na rua de mãos dadas, conversando sobre trotskysmo, do que com você entre as minhas pernas sem dizer nada. Então, colho das suas palavras um ensinamento novo. Com a certeza de que, ao escrever esse texto, você está mais comigo do que nunca; isso que agora eu sei é uma colheita feliz.

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