O que é a linguagem? Muitos já a definiram das mais diversas formas, mas deifinindo-a grosseiramente por aquilo a que a linguagem se presta, trata-se de uma ferramenta. Uma ferramenta para nos movimentarmos dentro do mundo sensível; a linguagem é a representação intelectual e conceitural do mundo à nossa forma e de um mundo dentro de nós, a cultura, que nasce, acredito, de dentro dela. É a linguagem que nos permite os conceitos dentro dos quais trafegamos e nos entendemos: sacando da manga o velho exemplo, não posso carregar no bolso todas as coisas de que falo, e para isso existem os signos e símbolos: para substituir, com fins de comunicação, coisas do mundo ou coisas do nosso mui particular intelecto.
Eu via a linguagem como vejo o universo: infinito, e por isso mesmo informe. No centro, os significados mais fáceis e acessíveis, aqueles livros velhos de be-a-bá da infância, em que cada letra é representada por um objeto da nossa vida cotidiana. Asa, bebê, casa, dado, elefante. Daí segue-se uma periferia de sutilezas, as quais não se pode desenhar no livro: amor, ódio, alegria. Abraço não É amor, por mais amor que haja nos seus abraços. O universo das palavras, em minha mente, era um universo de muitas esferas concêntricas, em cujo interior mais profundo estariam os significados mais simples, e cada vez mais afastados desse centro pueril, agregavam-se os significados mais complexos.
Como é difícil a topografia estelar da minha mente! Porque não se trata só de palavras. Tolo é conceber a linguagem como instrumento de captura. A criação de conceitos também delimita significados e determina nossa própria maneira de ver e trafegar no mundo. Porque, veja, a realidade não é inscritível na ordem simbólica. Nossa linguagem, ao tentar representar essa Coisa aí fora, a materialidade, não só falha redondamente como acaba ser a única realidade que nós, humanos, vivemos. Não que não tenhamos corpos que vivem, que respiram, que suam e que comem, mas ao nos relacionarmos com essa materialidade inegável, somos inegavelmente interpelados pelos significados que criamos. É como ser cego e relacionar-se com o mundo envolvido de uma grossa luva de lã.
A linguagem é essa grossa luva de lã.
Você se movimenta dentro da linguagem achando, de certa forma, que todos os significados são possíveis. Não importando quantas esferas concêntricas, cada vez mais complexa, existam nesse universo em expansão, como uma enorme e misteriosa matroska, você acha que nunca chegará ao seu limite. Você acha que, se for capaz de inventar um novo significado, há de achar uma palavra que, esticando-se, pode abrigá-lo com sua sombra. Ao contrário, também, pode criar uma nova palavra para um significado antigo. Mas hoje vejo com muita clareza que esse paradigma, essa crença, é uma grande dança das cadeiras: a ressignificação não existe senão uma reinterpretação.
Os discursos criam. Talvez não criem árvores e cadeiras, creio mesmo que não. Mas os discursos mesmos criam nossas práticas. Na maior parte do tempo, não é o surgimento de novas práticas que exige que a linguagem se estique para defini-las, mas pelo contrário, é o surgimento de novos discursos que possibilita novas práticas. Talvez eu queira dizer que... Linguagem e cultura não se dissociam. Talvez não se expandam com o mesmo ritmo, talvez uma ou outra se ultrapassem algumas vezes e tenham que correr para alcançar-se, para abarcar-se, para dar-se conta uma da outra. A linguagem nasce da cultura e vice-versa.
Sei que não estou me fazendo crer nem entender. Acho que estou maluca: fora da ordem simbólica, fora da linguagem, fora da cultura, vendo o universo de um jeito absolutamente estranho, fora das minhas queridas esferas concêntricas.
A linguagem que está aqui está fugindo de mim. Tento recombinar suas peças num tétris infinito, mas assim como no jogo, meu monólito está muito próximo de um queijo suíço. Só que antes, onde eu via vazio, antes, os pontos que a linguagem e a cultura não têm nada a dizer, eu vejo que há, sim, coisas. E há muitas coisas. Há coisas caladas. Há significados sem significantes, há idéias tão distantes dessas que temos em mãos que talvez somente todo um novo idioma, e toda uma nova cultura, pudessem dar conta de explicar, e somente através de traduções altamente mutilatórias eu seria capaz de me fazer entender. Logo, não me faria entender, e morreria na mesma solidão em que vivo este presente.
O fato de não haver uma palavra ou um conceito para uma coisa não quer dizer que essa coisa não exista. Quando se trata de algo material, como uma rosa, como uma cadeira, é fácil imaginar e explicar. Mas e quando essa coisa é um novo conceito? Você poderia arriscar que esse novo conceito poderia ser explicado pela associação combinatória de conceitos já existentes – é isso que os verbetes de dicionário fazem: juntando um conceito a outro, produzem um enunciado que procura limitar o significado de uma dada palavra. E eis a chave da questão! Eis a chave que pode abrir a cerca: limite.
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