Acordar cedo é um desses meus hábitos incorrigíveis. Pior, é um hábito que meu corpo criou à minha revelia; não adianta lhe explicar que são sete e meia da manhã de sábado, e que para a agonia, o sono pode ser boa rota de fuga. Que nada. Para ele o que importa é que já amanheceu o cinza, fresco e agradável, e como um cão que deseja ser levado a passeio, ele não quer perder isso por nada.
Foi quinta-feira quando eu contei para Pedro, melhor amigo de Rômulo, o que havia se passado. Não porque eu seja imensamente boa e esteja genuinamente preocupada com seus sentimentos, já que seus sentimentos são apenas de orgulho, de posse, de macho que perdeu seu troféu – pois eu o era. Nos poucos momentos em que estivemos juntos, ele me levou à presença de seus amigos, que deixaram em mim olhares de desejo, que deixaram nele olhares de inveja – alguns deles ainda demonstraram abertamente que me pegariam com ou sem ele. E ele gostava desse jogo, tanto quanto não gostou de perdê-lo.
Chamamos de política quando agimos francamente contra nossas vontades e crenças em virtude de um objetivo maior que repousa em mãos alheias. Política foi o que eu fiz tentando parecer francamente preocupada com aquele homem, no intuito de ficar com um outro, com seu melhor amigo, pois eu conheço – não nasci ontem – a ética masculina. Sei que ontem, sexta-feira, meus dois homens, o ex e o desejado, se reuniram para um debate, para uma inquisição moderna, em que meu destino será negociado como se negocia a posse de um escravo, que em condição de mercadoria, não tem direito a seus desejos. Que tudo é uma questão de direitos autorais: “desfilei com ela primeiro”. Sei que os homens são essa sociedade secreta gigantesca que fica mexendo seus títeres por trás das mulheres, como se fossem deuses.
Ser homem é uma religião e uma igreja, onde bruxas são queimadas, diariamente. Herege é a palavra grega que designa liberdade, e a heresia não seria um crime se o desejo das mulheres tantas vezes não fosse oposto ao desejo dos homens – não haveria crime, se as mulheres fossem livres, e elas são tanto mais bruxas na medida em que mais selvagens são. É tudo uma questão de acordos, onde a beleza das bruxas, as danças nuas ao luar, as borboletas, as cores, são voluntariamente apagados por uma redoma de esquecimento: “mulher de amigo meu é homem”.
No raso dos meus sentimentos, que vivem todos palpitando nas veias periféricas, eu gosto dessa adrenalina, eu durmo na cama da angústia, eu penso na fogueira, até me divirto. Encarno a discórdia, espreito a ética masculina como um diabo entre os padres; visto-me de tentação para colher seus olhares, que guardo todos na memória, olhos boiando em frascos com líquidos estranhos – afinal, eu sou, sim, uma bruxa, uma herege, uma livre. Gosto de pisar na fragilidade da honra. Por mais que a partir de agora, neste exato momento, decidam de dentro da igreja que eu não fui senão uma tentação fortuita, um vacilo da fé viril, o estrago, a mácula, a sujeira no manto sagrado, já foi feita.
Ah, a boa e velha bíblia não cansa de ser vivida: para se chamar um lugarejo de Cidade, há que se eleger, de quando em vez, uma Maria Madalena. Antes, andava às ruas maltrapilha, talvez de vermelho. Talvez o rubor de uma fruta silvestre manchasse suas faces e seus lábios então; a luxúria repousaria em suas ancas fartas, que se movimentariam com um balanço marítimo sob o volume dos panos. Porém, estamos em épocas quando o tempo é mercadoria preciosa, escassa, e tudo que os homens têm a deixar numa puta (além, é claro, de seu esperma e suas doenças veneras) é o olhar. Então, os mantos e todo o jogo insinuante e misterioso são reduzidos a frangalhos, meias arrastão, coturnos e pequenas tiras de pano que insistimos – por metonímia, ou por herança etimológica – em chamar de saias.
Não sou assim tão descarada, e a julgar pelas minhas roupas, um historiador ou um arqueólogo jamais arriscariam que a puta da cidade, a puta da vez, sou eu. Mas a puta não está nas roupas. Não está no meu rosto, lavado de maquiagem. Não está nas minhas ancas estreitas, nem na minha boceta – e já que estamos falando dela, convém dizer que não foi tão amplamente usada quanto a de quantas carolas que as escondem sob seus mantos! A questão toda é: a puta está na Cidade. Está na imaginação coletiva, está nas línguas, está na fantasia masturbatória daqueles (e daquelas!) que mais a reprovam. Está na alma primeva e esquecida da humanidade. Eu sou só o rosto que Madalena ganhou nesta geração.
Fossem dois homens em cantos opostos da cidade. Fossem dois homens que jamais se viram ou trocaram palavra, eu não seria puta: no máximo seria sirigaita, fogosa, galinha, e até mesmo pegadora. Mas não. Não quando você fere os contratos masculinos de honra e fidelidade. Não quando você mostra que os contratos de hombridade são frágeis, e nada têm de honrosos: que por trás de palavras leoninas e compromissos de irmandade, o que há entre os homens é orgulho, insegurança, posse e uma grande dose da mais cruel competição. Quando entre dois homens irrompe uma mulher, fica claro que o único laço que os une é um sentimento medíocre, pequeno, um sentimento que não tem sequer convicção em si mesmo: o que há entre dois homens, e que eclode na presença da mulher, é o machismo.
Assim, sigo tapeando minha angústia com os mais pretensiosos delírios feministas, quando na verdade meu útero foi simples e irremediavelmente fisgado por aquela barba loura, mal-feita e displiscente. Pela lascívia que se desprende da pele morena com a mesma naturalidade do suor num dia de verão carioca, quando o suor não se distingue da umidade do ar, e não sabemos se efetivamente é suor ou apenas o beijo atmosférico. Então, prenhe das fantasias que mantenho com esse homem castanho, volto para a paz das cobertas onde, vigilante, contorço-me, como se eu mesma fosse o feto angustiado de uma gravidez incerta. O que Rômulo escolherá afinal, largar a puta preservando a honra, ou manchar de sangue menstrual, para todo o sempre, sua imagem de amigo fiel? Escolherá a Puta ou a Cidade?
Esse telefone, que não toca...
Amem. Amém. Ah, men...
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