quarta-feira, 30 de março de 2011

Se tudo der CERTO, largo tudo e viro hippie!

Recentemente eu fiz um amigo que me repetia uma coisa várias vezes. Ele dizia que planeja abandonar seu atual estilo de vida em alguns anos. Ele espera se formar na faculdade, se desfazer da maioria dos seus pertences, colocar uma mochila nas costas e cair na estrada. Eu o questionei, se ele tem realmente essa intenção por que não o fazer agora? Por que esperar se formar na faculdade? O que aquele pedaço de papel idiota prova? E ele me respondeu que realmente não prova nada, mas disse que mesmo para cair na estrada ele precisaria ter um knowhow em alguma coisa.

Eu levei algum tempo para entender o que ele estava dizendo. Não muito, algum.

Quem já viveu essa experiencia, por mais breve e desajeitada que tenha sido, a experiencia de simplesmente colocar uma mochila nas costas e cair na estrada, entende o real significado transformador que ela tem na vida. Estar na estrada assim, dessa forma livre, pedindo carona, fazendo recicla, pedindo um prato de arroz com feijão nos postos por aí, proporciona uma reflexão profunda e sincera sobre a forma que nós, seres humanos, escolhemos viver.

E quando eu digo que escolhemos essa forma de viver, não estou falando das reuniões promovidas pelos “donos do mundo”. Estou falando das nossas escolhas, minhas e suas. É uma escolha diária permanecer vivendo nessa sociedade doente e caótica, é uma escolha diária continuar ingerindo produtos cultivados a base de venenos (para o corpo e para Terra), é uma escolha diária continuarmos banhando e cozinhando com água contaminada com cloro, e lavando nossa pele e pelos com produtos químicos cheirosos, é uma escolha diária respirar o ar que sai dos escapamentos, e caminhar pelo asfalto. Nós escolhemos levar essa vida todos os dias!

Não é de hoje que eu percebo o quão podre, doente e aprisionante é a vida numa cidade. Já algum tempo busco formas novas de viver e interagir. Não é fácil, o sistema as vezes parece nos sufocar. Mas aos pouquinhos a gente vai se arrastando para fora dessa nuvem de fumaça cinza que nos anuvia os sentidos. Vamos descobrindo novas formas de se alimentar, formas éticas, formas que questionam o sistema do desperdício. Descobrimos que já não precisamos mais de determinada roupa ou sapato, aquilo de fato não acrescenta nem traz felicidade, aprendemos a questionar nosso consumismo.

Aos poucos as máscaras vão caindo, a visão vai clareando, e você começa a entender porque nossa sociedade chegou ao atual estado de putrefação em que se encontra. Mas a busca parece não ter fim. Afinal, como podemos construir uma nova sociedade se o único modelo que conhecemos é esse? É difícil criar algo que não sabemos bem o que é. Mas uma coisa é certa: é preciso romper!

Uma ruptura radical de paradigmas, deixar tudo pra traz. Não se trata de um resgate a antigas civilizações, porque esse mito da natureza intocada pelos primeiros povos que habitaram a Terra caiu cedo nos meus estudos de ecologia. Trata-se de uma reconstrução, começar quase que do nada. Algumas iniciativas tem surgido aqui e ali, acho que muitas pessoas tem começado sua busca para fora da fumaça.

Sim, nós temos que abandonar as cidades. É chegada a hora do êxodo urbano. Precisamos aprender a plantar nosso próprio alimento, livre de venenos. Precisamos aprender a tratar nossas doenças e, mais importante, a preveni-las. A grande maioria das doenças modernas são causadas pelo nosso estilo de vida. Um estilo de vida doente, ajustado a uma sociedade doente só pode resultar em indivíduos doentes.

Mas como fazer isso?

Atualmente eu vejo que essa é uma luta muito maior do que parece. Essa estrada, que nos conduz para fora da cidade e para dentro de uma vida nova, auto gerida e autossustentável, é a mesma estrada que nos conduz num caminho de espiritualidade. E eu não estou falando de religiões e pregações de medo e culpa. Estou falando de um encontro interno, algo que somente quando se está na estrada, fora da zona de conforto, conseguimos alcançar. Um encontro com nosso verdadeiro EU. Uma jornada como essa nos conduz pelas estradas que existem em nós mesmos. Um amigo me enviou uma frase que recebi quando estava na estrada, que dizia assim:

"A viagem não começa quando se percorrem distancias, mas quando se atravessam nossas fronteiras interiores".

Hoje compreendo plenamente esse significado.

Quando se está fora da zona de conforto, vivendo experiencias novas, conhecendo pessoas novas, ouvindo o que elas tem a te dizer, começamos a nos analisar de forma diferente, sob outra perspectiva. Entendemos que muitas coisas que julgamos necessárias em nossas vidas são falsas necessidades, implantadas pelo sistema, e conseguimos levar essa reflexão bem mais a fundo, a ponto de constatarmos que vivemos muito bem com apenas alguns pares de roupa e suplementos. Na verdade, tudo o que é essencial cabe em uma mochila! O resto é absolutamente supérfluo!

Então por que não largar tudo agora? Foi a mesma pergunta que fiz ao meu amigo. Será medo? Temos medo do julgamento que farão de nós? Temos medo de fracassar e acabar voltando para a zona de conforto com o rabinho entre as pernas? E se eu largasse tudo mesmo? O que me prende aqui?

Essas foram perguntas que também fiz a mim mesma enquanto dividia os dias e a estrada com meu amigo. Mas como eu também já disse, as fronteiras são interiores. E foi aí que percebi que meu medo não era externo, não era o medo de morrer na estrada ou de ser rotulada disso ou daquilo. Não. O medo era em saber se estaria fazendo a coisa certa pelos motivos errados. Será que eu estaria largando tudo realmente para construir algo novo ou para fugir de algo que na verdade está dentro de mim e eu não consigo encarar?

Eu ainda não consegui responder a essa pergunta. E acho que enquanto não conseguir respondê-la o melhor caminho continua sendo esse que tenho seguido, caminhando pelas descobertas e quebras de paradigmas com calma e num ritmo mais lento. Porque se de fato o intuito for a fuga, você não chegará a lugar nenhum, embarcará apenas numa estrada circular que o trará sempre de volta ao mesmo lugar. Esse caminho é interno, e não podemos fugir de nós mesmos, não podemos fingir algo que não somos.

Sim amiguinho, talvez seja melhor mesmo esperar se formar. Vamos graduar nessa escola, adquirir o knowhow de nossos sentimentos, angustias e frustrações para que possamos estar prontos para fazer a coisa certa pelos motivos certos. Porque eu já não tenho duvidas que abandonar esse estilo de vida é a coisa certa a se fazer, mas é preciso estarmos certo do por que o fazemos, e aí deixamos que a Mãe Terra nos aponte o norte. Esse dia chegará em breve. O recomeço já não tardará. Se tudo der CERTO, largo tudo e viro hippie.

domingo, 27 de março de 2011

MANIFESTO ANTI-COPROFÁGICO


Contra a ditadura dos acadêmicos que sentam em seus troninhos de saber, cagando conceitos tirânicos a ser introduzidos na sociedade sem abertura para o diálogo.

Tomo 1, em nome dos palavrões execrados.

Para onde quer que olhemos, as bandejas artísticas oferecem-nos MERDA para comer. É tanta a variedade de texturas e fedores que se torna quase possível esquecer-mo-nos de que fezes não são comestíveis. Ou estamos tão absortos nela, ou estão nossos narizes tão emplumados nas nuvens do saber, que o cheiro ou não nos toca, ou já nos é comum. Mas basta agitar debilmente as mãos para sair desse naufrágio e perceber que, na superfície do esgoto, paira um cheiro dantesco.

Disse um camarada: nossa sociedade que se desloca em movimento retilíneo uniformemente acelerado para a desgraça necessita de um entretenimento tão fabril quanto o trabalho, para que o operário possa esquecer-se do que é, sem deixar de sê-lo. O mundo do hiper-estímulo de cartazes, propagandas e centenas de rostos desconhecidos por dia cria o entretenimento da montanha russa, do filme de ação, de ficções baratas e repetitivas vazias de significado.

A indústria cultural, essa célula mãe com enormes pseudópodes, fagocita a cultura popular e depois a defeca sobre nós sob a forma de embalagens que já mal mudam o rótulo – a repetitividade do rótulo pode ser conferida já nos anos 90, quando do fenômeno das boy bands padronizadas. Pelo menos é sincera: oferece-nos o lixo na bandeja, advertindo de antemão “olha, Lady Gaga é lixo, compra quem quer”. Há muito tempo a tal indústria já mandou para o caralho qualquer compromisso com verdade ou autenticidade. Eu tenho muita pena do caralho, nessas horas.

O entretenimento está para o trabalho assim como a arte parece estar para o consumo. Se este é um ato vazio, cuja existência apenas se presta a delinear as margens das castas sociais, também o fazer artístico está vazio e apenas se presta a definir quem é artista e quem não é. Sua metalinguagem teórica pode confundir os desavisados em suas circunvoluções, mas para quem é do babado, que meteu o nariz em Deleuze e Foucault, não passam de fragmentos de conceitos que, retirados de seus antigos hábitats, esvaziam-se de seu cunho político e intelectual e servem apenas para masturbação elitista, para o gozo de gente cuja diversão maior parece estar em esfregar seus diplomas na buceta ou enfiá-los no cu.

Na corrida para ver quem chegava primeiro no museu e se apropriava da “arte”, venceram eles, turbinados pelo poder dos diplomas em uma sociedade tecnocrata. Pobrezinho de Duchamp, morreu bem: jamais soube que a piada do mictório só fez tornar o museu um feudo menos justo. Agora, cada “artista” quer chegar no pódio e colocar no alto, bem acima da sociedade, um piniquinho cagado. Um piniquinho sagrado que não deixa qualquer outra coisa tornar-se arte, se não fizer parte da patota dos pós-doutores.

De quem é o museu?

O museu é do povo como a praça é do carrinho de picolé da Kibom! À moda de tudo quanto foi público, o museu virou o play dos fedelhos da Zona Sul que pagam de comunistas do alto de suas havaianas. Comemoremos mais esta privatização, mas com ar bem blasé – afinal, estamos cagando.

Quanto ao povo, é problema do ativista resolver. Nós, no Zeppelin das artes, sobrevoamos o mundo intocados, inflados por nossos flatos!

Tomo 2, onde a briga se torna pessoal. Dedicado a quem execra palavrões.

Notas de um diário.

... a Arte tornou-se um problema. Já há algum tempo, desde o início da faculdade, tenho visto quão injusta é a coroação que celebra uma obra como Arte. Aliás, tendo em vista que toda coroação é, por definição, furtar poder a muitos e concentrá-lo nas mãos de poucos, definir qualquer coisa como arte é simultaneamente definir algo mais como não-arte. Não só isso, os critérios para essa definição (arte ou não-arte) continuam concentrados nas mãos e mentes de homens, sobretudo homens, empoderados. Não raro, conhecer esses critérios, ser capaz de discernir e apreciar a “Arte”, torna-se um distintivo de classe: não necessariamente social, mas uma casta pseudo-intelectual que se auto-eleva perante as demais.

O discurso, em geral, é de que tais nobilíssimas pessoas possuem um instinto artístico capaz de farejar nas obras sua Aura Mística, sua artisticidade, quando na verdade ocupam-se de tecer e tecer as regras de um jogo que, desde o princípio, é projetado para garantir sua própria vitória.

(...)

Pensei: agora tenho que avisar os outros. Minha cabeça virou um tumulto de idéias, frases, figuras, estratégias. Era preciso ampliar o conceito de roubo, apropriar-se de TUDO: dos muros, das ruas, das terras confinadas em terrenos baldios, da comida desprezada no fim da feira, da música, da informação e da ARTE. Duchamp levou o urinol para o museu: agora é hora de quebrá-lo, de demolir essa Central de Opinião que continua a expedir História, Arte, Cultura.

LUGAR DE ARTE É NA RUA: andar sorrindo, pegar uma maçã, assoviar bem alto, desenhar, escrever, promover um vandalismo lúdico, lúcido, sem perder de vista nossas causas e objetivos.

(...)

O artista, devido a seu saber técnico e seu envolvimento subjetivo com a arte, tem de fato uma perspectiva sobre o mundo. O médico, devido a seu saber técnico e seu envolvimento subjetivo com a arte, tem de fato uma perspectiva sobre o mundo.
O biólogo, devido a seu saber técnico e seu envolvimento subjetivo com a arte, tem de fato uma perspectiva sobre o mundo. O pedreiro, devido a seu saber técnico e seu envolvimento subjetivo com a arte, tem de fato uma perspectiva sobre o mundo.

Então, o que tem dado ao artista permissão de ser imoral, afastando-se dos compromissos éticos implicados na vida social, é essa crença religiosa, essa crença arcaica, essa CRENÇA de que a inspiração é entidade mística incorpórea e aconjuntural descendente de outro universo que não este. Querendo-se intocada pelo cotidiano, pelo sexismo, pelo especismo e pelas ideologias do autor, quer-se uma expressão legítima, ou pior, quer-se ela própria a legitimidade.

Mas a arte é histórica e conjuntural. Urge que apresse seus passos lúdicos para entender o novo mundo ao qual insiste em não se dirigir!

Video da Semana:

quarta-feira, 23 de março de 2011

Pequenas Crianças Grandes Negócios

(Milena Paiva)

Prato do Mickey, escova-de-dentes da Barbie, mochila dos Power Rangers, caderno do Pooh, botas da Xuxa, bolo do sítio do pica-pau amarelo, suco do dragonbol Z. Tudo muito colorido cheio de emoção e aventura. A indústria dos produtos infantis capricha dando a qualquer objeto um novo sentido ao inovar suas cores, formas, ou simplesmente estampando a imagem de um personagem de desenho em sua embalagem.  Mas cabe perguntar, o que realmente caracteriza um produto infantil? Função? Cor? Forma? As necessidades de um corpo infantil? A infância constitui um novo e crescente mercado para o capitalismo que, incansável em expandir seu público consumidor, não perde tempo, nem dinheiro, ao investir em publicidade que dê conta de, mais do que vender seu produto, formar um gosto, um consumidor fiel.

A produção industrial, de ritmo cada vez mais acelerado, imprime às relações no contemporâneo a marca da fugacidade. A lógica da superação que torna um produto obsoleto no momento em que é adquirido pelo consumidor e concebe termos como “tempo de vida útil”, baseia-se na descartabilidade, na busca frenética pelo novo e abundância do supérfluo. Para garantir a sobrevivência do sistema, no entanto, é necessário que tudo o que é produzido seja consumido, e é para sincronizar a velocidade da produção a do consumo, que o sistema põe em cena a mídia. Apoiado na revolução dos meios de comunicação o capital funda uma cultura do consumo, na qual o trabalhador, em função das mecanizações e da informática, já não é fundamental, mas o consumidor sim. O consumo não constitui um derivado da produção, de fato fundamenta-a.

A sociedade de consumo visa atender os desejos dos consumidores e não somente suas necessidades. Isto implica, nas palavras de Solange Jobim e Souza (2005), a educação de novos públicos consumidores que se habituassem à velocidade com que as relações se criam e se desfazem, pois uma vez reduzido o tempo das experiências e a qualidade das relações materiais e interpessoais, mudam os modos com que as subjetividades se constroem.
 
Ao nascer, uma criança já está situada em uma região, língua, cultura, época e na reorganização provocada por sua chegada na família que a espera, estes fatores constituem o lugar social a partir do qual o pequeno construirá sua identidade, suas formas de ver e sentir o mundo, construindo sua subjetividade em relação ao mundo que o cerca. No entanto, além da família, espera por ela a sociedade de consumo que lhe reserva lugar de destaque.  Se referindo às crianças Souza ressalta que:
 
elas já nascem usando a fralda X, bebendo o leite Y e brincando com a boneca Z. Deste modo, assimilam, desde muito cedo e com rapidez, os valores que atuam como manipuladores dos significantes sociais. Isto significa dizer que já não se consome o objeto em si, mas o que ele representa para as pessoas que o possuem. Desta forma a boneca Z não é apenas um brinquedo, mas assume um lugar de signo, é desejada por todas as crianças; tê-la significa ter status, ser admirada, respeitada e invejada por outros. (Souza)

 Na era do marketing a função de um objeto já não importa mais, um prato deve não apenas cumprir a função de recipiente para o alimento e deleitar os olhos com sua beleza, por exemplo, mas oferecer algo que satisfaça a um recém criado e fugaz anseio afetivo. O nome, a expressão, o sentimento, o personagem associados aos objetos é que ditam seus valores. Sua função é secundária. Os objetos não têm mais a função que, a princípio, cumpririam, mas a de um afeto, um status, um ideal de ser. A cultura pela qual a criança se insere no mundo se faz muitas vezes objeto de consumo, cinema, música, e teatro são capturados pela lógica do consumo e tornam-se produtos acompanhados por uma série de outros, como jogos, bonecos, roupas e mochilas. Ou seja, a arte, capturada, passa ser o mero veiculador de uma linha de produtos pré-planejados.
 
Elevadas jornadas de trabalho dos pais, horários desencontrados e crianças sozinhas fazem parte do contexto no qual a TV ocupou um lugar decisivo na cultura do consumo. Crianças passam horas sozinhas em casa em frente ao aparelho, sendo a criança brasileira a que assiste mais horas de TV por dia, uma média de 4h e 20 diárias. A publicidade deixa então de se dirigir aos pais e conceber a criança como filha do cliente, e passa a dialogar diretamente com a criança sendo, ela mesma, a cliente. Apropria-se então, de sua imagem e sua linguagem, atraindo seu olhar para vender produtos e formas de ser que não são necessariamente para crianças.

Se entendermos de maneira mais ampla a TV, levando em conta aspectos técnicos, estéticos e sociais pode-se dizer que esta opera como um meio de controle social. A mídia promove o consumo de imagens através da promessa de felicidade, criando uma anulação das diferenças reais em prol de uma personalização dos produtos. A diferença configura-se então como uma das opções propostas pelo sistema em detrimento da singularidade, apenas diferenças marginais são permitidas. A ampliação de um mercado, tornando maior o potencial de uma população de consumidores pressupõe a massificação. Dá-se assim uma homogeneização dos desejos principalmente através da mídia, e a promessa de satisfação, pelo consumo, dos desejos produzidos pelo e para o próprio consumo. Ao mesmo tempo em que a mídia, de certa maneira, democratiza o saber e novas possibilidades de experiências, pelo som e pela imagem, cria uma homogeneização de costumes, valores e subjetividade. O desejar distancia-se da singularidade, daquilo que pode ser único e novo e aproxima-se dos modelos, dos modos de ser tão sedutores criados para a massificação. O consumo torna-se referência para o desejar e o sonhar, e as pessoas passam a ser identificadas socialmente pelos objetos que possuem ou representam. E como em classes menos favorecidas e em países inteiros menos desenvolvidos o consumo de bens é menor, o que a mídia promove é o consumo de padrões subjetivos, idéias, comportamentos.
 
Tecer uma análise crítica das concepções de infância criadas no bojo da sociedade de consumo e disseminadas principalmente pela mídia e pela publicidade, não se constitui em tarefa simples. Principalmente quando se pretende atentar para os efeitos destas na construção da infância no contemporâneo. Que comportamentos disparam? Que desejos? Que formas de ser produz? Atentar para a captura da infância pelo capital nos convoca ( pais, educadores, psicólogos, etc) a assumir uma postura política em nosso cotidiano: ou vamos seguir o eterno repetir de padrões caindo na armadilha da homogeneização subjetiva e alimentar o sistema ou vamos buscar maneiras de resistência e frustrar essas modelizações, abrindo espaço às diferenças e ao novo e construir na nossa relação com as crianças um espaço de relações consistentes e de criação.

domingo, 20 de março de 2011

Violência Simbólica: agressões terceirizadas

Então, aos 13 anos, eu decidi algo que deixou minha família feliz com minha seriedade e maturidade. Pensando no meu futuro, na faculdade, no vestibular, decidi deixar para trás a escola experimental onde eu passara minha infância e início da adolescência para ingressar no Instituto de Ensino José Clemente, importante e respeitada escola, responsável por notórios índices de aprovação nos vestibulares do estado. A família aplaudiu, e lá fui eu.

Eu era grunge. Assaltava o armário do meu pai para encontrar as calças largas necessárias para minha indumentária, e peregrinava pelas feiras hippies do mundo comprando fitinhas, pulseiras e brincos. Dos shows de rock – ainda poucos – comprava camisetas, broches e pulseiras de tachinha. Eu não era exatamente grunge, hippie ou punk, mas acreditava que, se carregasse uma cruz de cada igreja, seria aceita em todos os cultos ideológicos que circulavam no mundo do rock àquela época. Embora minha mensagem não fosse exata, nem mesmo para mim, uma coisa estava clara para mim e para meus coleguinhas de turma: eu estava puta. Estava profundamente irritada com muitas coisas, o que incluía playboys e patricinhas, todo o seu mundo de carros e maquiagens, toda a sua euforia consumista. Eu  nunca lhes dirigi minhas ideias verbalmente, mas a mensagem estava clara. Clara demais.

Eles começaram com os nomes, depois jogaram giz em mim. Certa vez pisaram na minha mochila e quebraram meus óculos. Perguntaram coisas indecentes e, uma vez, bateram no meu rosto. Eu achava impossível que A Escola não estivesse vendo: com tantos professores, inspetores, coordenadores, nos corredores, nas salas e até nos banheiros, COMO eles podiam deixar aquilo acontecer comigo? Estavam cegos?

Um dia resolvi dar um basta. Eu acreditava em justiça, em compensação. Acreditava que uma pessoa agredida por exercer seus próprios direitos era uma agressão a todas as outras; acreditava que a pessoa especificamente e a sociedade, em geral, deveriam ser reparados. Eu juntei em uma sacola todos os gizes jogados em mim ao longo de uma semana e me dirigi diretamente ao coordenador. Eu não me importava com a fome que corroía meu estômago, com o fato de que poderia perder meu ônibus: esperaria na antessala daquele homem quanto tempo fosse necessário e ia fazer as perguntas que me afligiam todos os dias desde o primeiro dia naquela escola que se gabava de ser tão íntegra, tão civilizada em todo o seu cimento. Quando minha vez, por fim, chegou, eu coloquei a sacola na mesa, contei o que me acontecia, disse todos os nomes, joguei na cara daquele homem que eram as minhas notas e o meu desempenho que davam àquela escola a reputação grandiosa da qual ela gozava, e que por isso eu tinha que ser ouvida, preservada e protegida. O coordenador afirmou que faria tudo quanto possível para que aquela perseguição acabasse. Por último, quando me levantei e ia embora, demoliu todas as suas promessas com uma pergunta: “Mas por que você tem que se vestir assim?”.

A dor é subjetiva. Por mais que todos nós sintamos dor quando extraímos um dente, fazemos uma tatuagem ou damos uma topada, não há números para quanta dor estamos sentindo. Não há como saber se eu sinto mais ou menos dor que você, e a dor física é indiscernível de sua experiência psicológica. Temos uma ideia acerca da dor alheia, uma ideia vaga e aproximada – e para um bom leitor, “aproximação” também é uma palavra que contém “erro”. Não existem, infelizmente, índices para a dor. Mas existem as palavras.

Tenho quase certeza de que a primeira palavra da humanidade foi uma interjeição de dor, um “ai”, uma partícula universal na qual todos os demais se reconheceram, porque todos os demais já haviam experimentado a dor. E, tal como somos capazes de nos reconhecer na dor alheia através das palavras, tal como somos capazes de nos aninhar nelas e atingir com elas alguma reparação, elas são cortantes, contundentes, e a dor causada por elas é real, embora não seja física. A violência através das palavras é SIMBÓLICA, mas numa sociedade cuja inclusão acontece através da cultura, ou seja, através do compartilhamento de signos e símbolos, ela é tão devastadora quanto um tapa, tão eficiente quanto um revólver, tão destrutiva e tão ampla em seu alcance quanto uma bomba.

As escolas do século XX perderam uma arma poderosa de sua doutrinação, a violência física. Acreditem-me, elas ainda não se recuperaram completamente dessa perda e adorariam ser restituídas daquele direito. Porém, perceberam que não era mais necessário exercer certos papéis de enquadramento: em outros lugares, crianças e adolescentes são domesticados dentro de nosso sistema de valores e práticas com mais eficiência que nas mais eficientes escolas da História. As próprias crianças e adolescentes, magistralmente adestradas no Certo e Errado, incumbem-se do dever moral de devolver as ovelhas perdidas ao rebanho do capitalismo: inspetores, coordenadores e professores não precisam mais sujar suas mãos removendo o lixo dos corredores: a violência foi terceirizada.

Com o Capitalismo a mesma coisa acontece. Seria muito arriscado para a VolksWagen, para a Nike, para a PepsiCo sujar suas mãos com a morte de seus próprios empregados – pelo menos abertamente, nas ruas, sob a lua, estrelas e sol. O Estado tem sido, desde o século XVIII, a empresa preferencial da Oligarquia Corporativa para garantir a sua integridade e a de seus bens. É uma questão de discrição: o Regime ficaria muito óbvio se, de repente, a Nike pudesse contratar a Blackwater para garantir a produtividade de seus operários; ainda é moralmente inaceitável que uma empresa use da força para enriquecimento e benefício exclusivos de seus donos – mas acredite, esses dias estão para acabar, e muito em breve.

Esse programa, porém, tem uma falha: a Força é um método de correção, mas falha enquanto didática de adestramento. A violência é para quando o operário e o consumidor falham em suas respectivas funções: é, por conseguinte, necessário um outro braço, mais meigo e macio, que exerça o papel de instrutor, que desde cedo coloque todas as ovelhinhas no mesmo pasto de resignação e consumo alienado. Essa mão, nem sempre tão bondosa quanto se esperava que fosse, era a escola. Mas a escola – que pena – se tornou por vezes demais a trincheira de novos pensamentos e dúvidas quanto à Máquina. A função didática do Capitalismo, ou melhor, da Oligarquia Corporativa, foi sendo transferida gradativamente, e com sucesso incomparável, à propaganda.

A propaganda mata sem encostar um dedo no gatilho, quando um menino atira em um outro por um par de sapatos; a competição fomentada pelos jingles suaves e alegres é mais feroz que o mais feroz chauvinismo do discurso mais virulento. A propaganda é monstruosa ao representar a mulher, e especialmente a menina, que cada vez mais se torna um pequeno protótipo de esposa; a propaganda é pedófila; a propaganda é cruel com quem ela representa e ainda mais cruel com quem ela deixa de fora. Ela cria um mundo em que a felicidade é um de território simbólico, cujo ingresso é adquirido um pouco por dia, mas cujo centro, a Verdadeira Felicidade, é uma área VIP vazia. No discurso da propaganda, a inclusão na sociedade se dá através da posse, mas a realidade dessa cultura é que a aceitação em seu seio se dá no ato da própria aquisição, gerando uma cultura insaciável. Todas as culturas possuem rituais que inscrevem e atualizam os indivíduos em seu seio, mas o Capitalismo produziu uma cultura em que o ato de inscrição nunca termina, e está, por isso mesmo, sempre inacabado. Em suma, somos todos excluídos!

Mas como fazer-nos consumir? Como fazer-nos entender que a nossa necessidade excede a mera sobrevivência e que outras formas de prazer são indispensáveis? Como agregar valor a objetos que obviamente são completamente desnecessários? Eis o que a propaganda faz conosco: ela opera a própria linguagem dentro da qual nós fluímos, sentimos e nos expressamos. Embora o ato de falar e escrever, o ato de ler uma placa de trânsito pareçam tarefas simples, o que acontece conosco é que a linguagem está INTEIRAMENTE imbuída de um conteúdo simbólico que é subjetivo e, em alguma instância, emocional. A propaganda, portanto, se apropria de elementos da nossa vida cotidiana transformando-os em problemas que podem ser resolvidos. Ela cria rituais que nos inscrevem e nos atualizam dentro da cultura de consumo, num ato interminável de inscrição – como já foi dito.

Essa inscrição, por sua vez, não pode ser voluntária; o consumidor não está autorizado a NÃO desejar consumir. A propaganda, portanto, em sua superfície ou nas suas entrelinhas, tem na verdade de constranger a pessoa a tal ponto que a exclusão pelo não-consumo se torne insuportável, o que muitas vezes se traduz em ódio ao próprio corpo e à própria vida. Só é possível comprar aquilo que as propagandas em geral nos vendem se aceitarmos a premissa de que SIM, há um problema conosco.

“A ritualização é claramente uma estratégia primária para incorporar as relações de poder”, e a ritualização do consumo, ou seja, a transformação do consumo em uma atividade imbuída de significado capaz de inscrever ou de banir um indivíduo de uma dada sociedade é uma das inúmeras expressões do poder e da Oligarquia Corporativa que regula e regulamenta nossas vidas, para quem o Estado apenas tem feito, ao longo da História, o trabalho sujo. Negar-se a consumir não só é uma atitude ecologicamente necessária e urgente como também significa deixar de endossar os valores de uma sociedade que se ergue sobre a exploração  material e também emocional e subjetiva de vidas inocentes.


Video da semana:

quarta-feira, 16 de março de 2011

Eles querem te vender felicidade

Eu sempre tive uma veia de revolta. Nunca soube explicar bem de onde isso vinha, mas desde criança sempre me senti um peixe fora d´água. Não me enturmava bem com as outras crianças e tinha interesses meio adversos. Gostava de estudar e era muito curiosa, a criança dos “por quês”.

A primeira forma de opressão que eu entendi e me identifiquei foi por ter nascido meninA. Com um grande A no final. Em um determinado momento da minha pré-adolescência eu vi todo o meu gosto pelos estudos ser ressignificado a partir do momento em que mulheres, ou meninAs que estão no caminho de se tornar mulheres, não são estimuladas a pensar. Comecei constantemente, tanto dentro de casa quanto na escola, a me sentir sempre em segundo plano, quase como se eu tivesse que gritar para fazer alguém perceber que eu era tão inteligente quanto qualquer meninO que freqüentava a mesma sala de aula que eu. O que acabou gerando algum dano a minha auto-estima. O mundo queria (e ainda quer) que eu acredite que sou burra, e os meninOs, que agora cresceram e se chamam de homens, me lembram o tempo todo que eu não posso ter idéias próprias, afinal eles estão aí pra isso, para pensarem por mim.

Pois bem. Esse tipo de questionamento tomou conta de boa parte da minha adolescência. E foi ali, tentando entender meu papel social, tentando entender por que o dia dos namorados era tão importante pra mim, e tentando entender por que eu achava (ou será que achavam por mim?) que um namorado era algo tão importante na vida, senão vital, que eu abri as portas e janelas da minha mente. Foi um processo lento. Mas aos poucos fui me interando das opressões e restrições que assolam nosso mundo.

Ainda jovem entendi que racismo não ficou para trás nos livros de História. Ele vive em cada esquina. Aos 15 anos tive um namorado negro, e vivi na minha pele branca essa opressão. Não é fácil fazer parte das minorias, principalmente quando supostamente você não faz. Escolher estar ao lado deles, dos excluídos, dos socialmente rejeitados, dos historicamente oprimidos, não é uma escolha fácil. Mas para mim nunca foi uma escolha propriamente dita, foi quase como que um impulso, algo que não foi possível evitar. Eu me via apenas como um ser humano, não olhava cor, classe social, gênero... Com o tempo e com o aprofundamento das idéias fui percebendo que é claro que olhava, essas questões acabam ficando impressas no nosso inconsciente quer queiramos ou não.

E lá pelos meus 20 anos aconteceu algo que foi transformar tudo. Essa sim posso dizer que era uma forma de opressão que nunca havia conseguido vislumbrar sozinha, precisei ser sacudida, mastigada, engolida e vomitada para que a realidade me invadisse.

Tudo aconteceu num churrasco. Quanta ironia! Era aniversário de uma grande amiga na época, a mais antiga. E lá estava uma outra amiga, uma amizade não tão antiga, mas que tem se provado uma das mais fortes. E a nova amiga não estava comendo carne. Veja só... E começou a falar sobre um documentário que havia assistido, e contava histórias de animais mortos de formas horríveis. Eu fiquei com aquilo na cabeça, já havia conhecido uma menina no pré-vestibular que também não comia carne e uma vez quanto a interroguei do por que ela começou a chorar e dizer que os animais sofrem. E também tinha uma prima, que não comia carne e tinha o mesmo discurso da amiga no churrasco. Voltei pra casa decidida assistir ao tal documentário.

Era o Earthlings. E foi ali que passou o furacão. Dessa vez as minhas portas e janelas não foram abertas de forma lenta e gradual, elas foram arrancadas e jogadas longe. O “ideal vegan” entrou na minha vida sem pedir licença. Novamente, foi praticamente um impulso, eu não podia compactuar com tudo aquilo. Quem pode?

Em algumas semanas eu havia devorado textos, vídeos, livros... Conheci idéias, pensadores e notei que o veganismo era a ideologia mais completa com a qual eu já havia me deparado. Não é somente uma luta para que as pessoas parem de comer carne, como muitos pensam. A partir do momento que você compreende que não há razão para oprimir outro ser somente porque ele pertence a uma espécie distinta da sua, tudo muda.

E é aí que falo que essa é uma forma de opressão de difícil compreensão. Durante a minha adolescência, eu conseguia entender que negros não são mercadorias ou inferiores, mulheres também não o são... Mas talvez tivesse sido fácil porque eu sentia isso na pele, porque era algo que me afetava e com a qual eu conseguia me relacionar tão facilmente. E acho que exatamente por isso que o documentário me foi tão eficiente.

O que mais me chamou atenção ali foram as cenas com as vacas leiteiras. Esse foi o gatilho que me fez conectar com os demais animais do planeta, me mostrar o meu lado mais animal, um momento que eu nunca nem vivenciei (eu nunca pari nem amamentei), mas que mostra nosso lado animalesco, uma verdade que constantemente fugimos e mascaramos. Sim! Nós somos animais! Encarem o fato de frente!

Hoje já se passou um bom tempo desde a primeira vez em que assisti o Earthlings. E meus estudos e práticas em relação ao veganismo já se aprofundaram bastante. Hoje eu compreendo que nenhuma forma de opressão pode ser considerada isoladamente, todas elas são frutos da História e da Cultura. E não há como falar de uma opressão sem encostar nas demais, TODAS AS FORMAS DE OPRESSÃO TEM A MESMA ORIGEM E, NO FUNDO, SÃO A MESMA OPRESSÃO.

A minha atual concepção entende o veganismo como a luta contra a sociedade de consumo. A busca desenfreada por produtos que supostamente nos trazem felicidade, leva a exploração de recursos que são finitos e de outros que não são recursos at all, são seres explorados e escravizados, e eu já não estou falando somente de animais não-humanos. O capitalismo nos vende prazer sob um falso rótulo de felicidade. But guess what? A felicidade é outro animal mitológico! Não, isso não é papo quem está depressivo prestes a cortar os pulsos. O conceito de felicidade foi criado para nos manter na linha, no passado a felicidade estava no reino dos céus, e assim a Igreja mantinha todo mundo na linha. No presente a felicidade está no dinheiro e no seu poder de compra, e assim o capital te mantem fazendo exatamente aquilo que ele quer: consumindo.

A pessoa que decide adotar o veganismo como filosofia de vida tem que ser alguém que tenha seriamente refletido sobre seus conceitos de prazer e felicidade. Porque carne É gostoso! Queijo É gostoso! E todos esses produtos industrializados, cheio de corantes, leite, ovos e glutamato monossódico SÃO gostosos! E se você vai abrir mão deles você estará SIM abrindo mão de muitos aspectos prazerosos da vida, inclusive aspectos sociais que também são prazerosos. Não haverá mais rodízio de pizzas com os amigos num sábado a noite nem churrascos de domingo. Não, não haverá mais!

Eu estou dizendo tudo isso pra mostrar que é necessário, urgentemente necessário, rever os nossos conceitos sobre prazer. O vegan que não repensa seus conceitos sobre prazer, acaba caindo. Por que alguém “caí” do veganismo? Porque sucumbe aos prazeres efêmeros do capital, mesmo que alguns se mascarem atrás da “necessidade”.

É comum escutar histórias de vegans que caem quando vão fazer uma viagem ou algo assim. Dizem estar num lugar estranho, onde não conhecem os lugares, não sabem onde adquirir seus produtos vegans e lá vão em direção ao queijo, etc. Quer dizer que só consegue ser vegan se houver um mercado (aqui entendido como publico alvo, e não supermercados) vegan? Se puder comprar industrializados e produtos gostosinhos é vegan, se não fica muito difícil e apelam para o bom, velho e apetitoso queijinho?

Ninguém morre ou fica doente se passar alguns dias ou até semanas, comendo pão e batata. E esses dois alimentos acabam sendo a base para qualquer vegan em qualquer viagem. Eu vou repetir, você não vai morrer nem ficar doente se comer somente pão e batata por alguns dias ou até mesmo semanas. Mas com certeza não será gostoso.

domingo, 13 de março de 2011

A estreita, sinuosa e dolorosa ponte que liga o Nada a Lugar Algum

  (Dorothy Lavigne)

      "Track down this monster!". Bem, quem já leu alguns dos meu artigos,já deve ter reparado que costumo iniciar com alguma frase de efeito e este caso não será diferente. Uma das autoras do blog Coletivo Caju me convidou para escrever sobre um tema que admito não dominar (e quem o domina?). Pois bem, vou apresentar então, minhas experiências pessoais e meus apontamentos sob uma ótica subjetiva e muito íntima- um desabafo, mesmo- no mesmo tom com que têm se apresentado outros artigos deste blog.

     Antes de tudo, julgo impossível falar sobre o tema que me foi confiado, a "transexualidade" sobre o prisma da Teoria Queer ou Pós-Identitária, uma vez que um conceito anula automaticamente o outro. É impossível a existência de um fenômeno transexual uma vez que a idéia de "sexo", naõ se reduz a corporalidade, os corpos não são realidades em si mesmos, mas o discurso sobre eles, uma apropriação sócio-cultural. Ou seja não se pode falar em homens e em mulheres, mas sim em pênis e vaginas. E se o sexo não existe como fato concreto, como imaginar a transformação de masculino para feminino e vice-versa? Acho deveras interessante imaginar tal possibilidade apenas a restringindo ao espaço médico das cirurgias e das body-modifications, mas não é possível entendê-lo  muito além disto. Por isso que fico indignad@ quando, por exemplo, a ex-BBB Ariadna, vai a publico afirmar que não gostaria de ser chamada de "transexual", pois é "mulher". Ambas as definições, além de  arbitrárias e em si falsas (falamos de mulheres sem útero que não menstruam, por exemplo), não permitem por razões políticas qualquer tipo de elasticidade ou revisões que possam colocar em duvida a ordem vigente. Ou seja, discordando das feministas, "gênero" como conceito não é uma ferramenta útil de análise histórica, muito menos de militância, mas pelo contrário, o mais poderoso motor de engenharia social.

    Munidos desta conceituação e delimitado o espaço da minha fala, vamos ao meu desabafo:

    A alguns meses atrás, escrevi para  o blog Além da Parada, do qual sou uma das fundadoras, um texto sobre minha participação no ENUDS -Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual- texto no qual abordava um episódio "pitoresco" ocorrido com minha pessoa, quando, ao ver um grupo de nudistas no evento e querendo me unir a eles, não tive o desprendimento necessário e cai no choro. Muitas pessoas dizem não entender meu medo e inúmeras vezes me indagaram sobre isto. Pois bem, como já afirmei em várias ocasiões, o corpo da "transex" não é intelegível, ou seja, não é algo passível de ser interpretado através do prisma do "gênero" e muito menos quando este corpo, por motivos políticos não busca se enquadrar numa das "caixinhas", numa norma específica. É muito fácil aplaudir quem tenta subverter uma norma tão rígida. O difícil é sentir na pele o peso de uma luta, a qual muitas vezes nos obrigamos a travar para ter o direito ao acesso a satisfação plena através de nossos corpos.

      Para aqueles que acham que a peleja é simples e se reduz a fincar um bandeira no solo do "terceiro sexo", retirando de nossas mentes os elementos atribuídos a masculinidade e a feminilidade, o que nos resta? Aquele que, ao meu ver, seria o ápice da subversão, o "intersexo" (antigamente chamado hermafrodita) também está preso a tal dicotomia. Não podendo simplesmente esconder sua existência, viram-se os olhares curiosos e academicistas ( e o ENUDS estava cheio deles, infelizmente) para o "quanto por cento" daquele ser se enquadra na masculinidade e feminilidade, inscrevendo-o. forçosamente, no conceito de "humanidade". Enfim, pessoas que não se enquadram no masculino e feminino no geral não passam de retalhos de gênero, verdadeiros Frankenstein's criados a partir de pedaços de homens e mulheres.

     Aliás, por falar em monstros:alguém já viu algum que não se enquadrasse em tal norma, por mais estranho e bizarro que fosse? Não me lembro. Até as horripilantes criaturas assassinas da série Alien, por mais desumanas que pareçam têm sexo e baseados neste, toda uma estrutura social. Recentemente participei de uma discussão sobre Spore, videogame que adoro e cujo objetivo é criar e administrar uma civilização de criaturas alienígenas. Dentro de várias criticas, uma me chamou atenção: parece que o inventor do jogo "se esquecera" de permitir que os monstrinhos tivessem sexo, fossem machos e fêmeas. Ou seja, tal noção cosmológica está tão alicerçada no nosso sub-consciente que não ousamos simplesmente imaginar algo que a subverta. O único gênio que talvez o tenha feito, e isto não é especificado, foi Stanley Kubrick, que usou a estratégia da sugestão- os alienígenas do filme 2001, não têm sexo, simplesmente por que não são vistos em cena.

     Enfim, as vezes tenho vontade de pendurar as chuteiras. As vezes é valida a máxima cantada pela Elis Regina: "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais"

    Não me estenderei mais do que isso. Sintam-se livre para comentar e dar suas opiniões e crítica  Gostaria, no próximo texto, se me for permitido, falar sobre um tema que tem me fascinado e me envolvido muito profundamente; o "amor queer". Como uma pessoa que não se enquadra nas regras socialmente aceitas de sexo e gênero se relaciona afetivamente e eróticamente com outras, estejam elas dentro ou fora das normas consagradas? Qual o resultado, os ganhos e as perdas subjetivas e psíquicas deste tipo de fato? Gostaria de expor minhas experiências pessoais e aquilo que tenho aprendido com elas no dia-a-dia.

terça-feira, 8 de março de 2011

Dia internacional da exploração do útero

Todos os processos de aculturação que sofremos ao longo da vida são um emaranhado complexo de narrativas a que ficamos expostos – mais tarde me aprofundarei nisso, reserve a informação por agora. Isso inclui dar mais ênfase a algumas histórias do que outras escolhendo como justificativas para esta ênfase valores e padrões vigentes na nossa sociedade. Quando se é mulher – eu nunca cheguei a ser uma, mas tentei com todas as minhas forças por um longo tempo – todos os olhos da sociedade voltam-se para nossa vida afetivo-sexual. A Bela Adormecida é o arquétipo de como somos criadas em função do casamento: a menina adormece no início da adolescência, ou seja, ela VIVE até o início da adolescência, e sua vida recomeça, ou seja, ela VOLTA A VIVER no início da idade adulta, através do casamento. Nós, fêmeas – e façamos mais tarde a diferença entre fêmea e feminina – somos ensinadas que o amor sexual, materializado no casamento, é o propósito de nossa existência. Isso nos deixa míopes para uma longa série de outras relações e acontecimentos que perfazem a nossa vida.

Eu vivi ao lado de uma pessoa por 12 anos da minha vida. Agora esse relacionamento acabou, mas não me ressinto: dadas as circunstâncias em que nos encontrávamos, a separação foi a escolha mais saudável, e eu, nem sei como!, fico aqui boba e alegre por ter protagonizado uma história tão bela, contagiante, divertida e tão politicamente fértil. Foi ela quem comeu lixo na escola ao meu lado... foi naquelas mãos que eu perdi minha virgindade... ela foi meu refúgio, foi meu casulo, ela foi um sem número dessas metáforas de onde bebemos a nossa força quando precisamos enfrentar o mundo. E ela não era minha esposa, minha namorada, minha amante; eu era profundamente apaixonada por uma pessoa e raramente isto exigiu de mim que eu a tocasse, beijasse, e nunca me incitou a querer ter filhos com ela. A relação mais importante da minha vida foi, por assim dizer, uma amizade política.
Um dos maiores méritos dessa pessoa em minha vida foi seu envolvimento com lutas feministas e teoria queer. Embora muitas vezes tenha sido maçante viver ao lado de uma pessoa tão imersa em uma teoria só – que, apesar de configurar uma causa urgente, não é uma causa completa – foi impossível não aprender certas coisinhas com ela.

Nossa sociedade chocou-se com que algumas pessoas fossem propriedade de outras em função da cor de sua pele ou de sua origem continental. Chocou-se quando os porões do holocausto se abriram para revelar o massacre direcionado a judeus, gays e comunistas. O século XX foi uma época importante de ojeriza à discriminação de forma geral: estava claro para a maioria de nós que não deveríamos seccionar nossa sociedade, distribuir tarefas ou hierarquizá-la de acordo com atributos étnicos, religiosos ou físicos. Estava claro para a maioria de nós que as diferenças entre nossos corpos não assinalavam quaisquer aptidões naturais dos mesmos para este ou aquele tipo de trabalho, e mais importante, nossas diferenças não assinalavam inaptidões ou deficiências. Diferenças são só diferenças, e este pensamento está indo tão longe que, aos poucos, muitos de nós (por enquanto uma minoria), estamos expandindo esse pensamento para abraçar toda a esfera da vida animal, demonstrando que também os não-humanos são apenas seres distintos, mas não seres inferiores a ser livremente explorados por nós.

O que me espanta nisso tudo é que tão pouca gente tenha visto ainda a anti-naturalidade do Feminino, da Mulher.

Sim, alguns de nós temos úteros e ovários, outros de nós temos paus e testículos; mas alguns de nós são carecas e outros possuem cabelos, e alguns de nós são mais altos do que outros sem que tracemos uma linha imaginária dividindo toda uma civilização em função disso. Por que o útero?

Recentemente vi um documentário sobre o processo civilizatório, em que um paleontólogo afirmava que o cercamento da terra e a invenção da propriedade ocorreram simultaneamente ao aprisionamento da mulher à monogamia. Para mim, tudo ficou claro feito água: assim como a terra não é por si só território, isto é, assim como ser território não é um atributo natural da terra, ser mulher não é um atributo natural do corpo. O processo de transformação da Fêmea em Mulher é o mesmo que o da Terra em Território, e ambos são sustentáculos de civilizações centradas na propriedade. Terra e Fêmea se tornam meios de produção de riqueza; o útero, como a terra, é propriedade do homem para garantir a manutenção dos próprios bens, e ele os explora a fim de ascender na hierarquia social.

Assim como ser escravo não é um atributo natural do corpo de pele negra, assim como ser animal de carga não é atributo natural da vaca ou do cavalo, assim como ser comerciante não é um atributo do ser judeu: ser frágil, linda, BURRA, submissa, lisinha e macia, usar saia, querer ter filhos, gostar de cozinhar, ter uma tara irresistível por sapatos, ser sensível, ser impulsiva e apaixonada, querer estar sempre linda e contente, ser mãe devota e dedicada e achar que o amor é a centralidade e fonte de toda a vida não são características inerentes ao útero ou aos ovários: são chagas e condicionamentos de milênios daquela que é possivelmente a mais longa e próspera exploração praticada em todo o mundo civilizado.

Eu precisei ler e pensar um bocado para finalmente ver com clareza tudo isso, mas uma vez isolada a variável da artificialidade da mulher, fica fácil ver por que somos treinadas para ser assim e quem se beneficia dessa exploração. Fica fácil olhar para trás e isolar, um a um, cada momento em que cada um desses condicionamentos tão arraigados e naturalizados nos foi apresentado ou imposto.

Existe uma piada que começa assim:
“Por que existe um dia internacional da mulher?”
E a resposta,
“Porque todos os outros são dias do Homem”.

Hoje, no dia internacional da mulher, pense nesta piada. Pense bem. Porque ela está certa.

Mas eu jamais teria visto isso se não fosse pela minha melhor amiga.

Video da Semana

domingo, 6 de março de 2011

Carta de amor a Tokien (continuação)

Uma coisa que me contaram de novo e de novo, é que antes, no tempo do Nazismo e das Ditaduras, sabíamos contra o que estávamos lutando. O Inimigo tinha uma face, uma voz, um discurso, mas que acabado o Totalitarismo, não tínhamos mais com quem lutar. Quando o Inimigo esboçava um novo rosto e uma nova voz, era inutilmente atacado, transformando-se em fumaça diante de nossos olhos, bem nas nossas mãos.

Mas eu li e li muitas coisas, Tolkien, para enfim descobrir que mesmo no tempo das Ditaduras, estávamos lutando contra o inimigo errado. Que aqueles ditadores caricatos em seus púlpitos estavam a orar mentiras nas quais nem mesmo eles acreditavam... eram apenas soldados... eram a máscara de pessoas que continuam impunes. Eram a Máscara do avanço da Civilização, com seus dentes de ferro e suas garras que entram fundo na Terra, que inoculam veneno nos rios e mentiras em nossos corações. Dizem-nos que a era das Dicotomias acabou porque não querem que vejamos uma simples verdade: ainda há Eles, e ainda há Nós; ainda há dentes em nossas gargantas e algemas em nossas mãos. Se algo mudou é que agora nossa prisão conta com uma droga inebriante chamada Consumo, que nos entorpece mal e temporariamente, para que não sintamos os Males do Mundo. Ainda há uma Mordor, e ainda há um Condado, mas ao contrário de seus livros, não há mais povos livres... Como você mesmo disse, “tal é a vida moderna: Mordor no meio de nós”.

Fui lendo de novo O Senhor dos Anéis, mas agora de olhos abertos, e paralelamente, lendo sua biografia. Tolkien, você, como eu, é o fruto de um mundo que está morrendo. Os Elfos estão fugindo, ou entrando em cavernas, onde serão esquecidos, e a Terra está sendo deixada nas mãos dos Homens. Você nasceu numa Inglaterra vitoriana, com extensas campinas e moinhos de Vento, e acabou numa Inglaterra submersa em fumaça. Você foi grandioso e sensível, e chorou pelas árvores muito antes de haver Green Peace ou Salve as Baleias. Sua Obra retrata o mundo agonizante no qual você mesmo viveu. E tal como nesse mundo, não é ingênuo nem míope apontar um Bem e um Mal, e dar-lhes nomes.

Tal como antes, Tolkien é para ser sentido... e dessa vez, com nitidez, senti a fumaça de Mordor, senti que, com a partida dos Elfos, as próprias estrelas perderam parte de seu fulgor. Senti a tristeza pelos pobres Olifantes, que não tinham raiva nem mal em seus corações, mas que marcharam para dentro dos rios, e foram lavados da Terra Média para sempre. Senti o frio do novo Condado, onde antes os Hobbits moravam dentro da própria Terra, e agora amontoavam-se em pobres casas de tijolos. Quiséramos todos viver nas tocas, como os Hobbits, no seio da Terra, no ninho emaranhado das raízes dos carvalhos, e não nesses arranha-céus que, como o próprio nome diz, chagam o céu e ofuscam as estrelas com seu brilho artificial, que nunca se apaga, como o Olho vermelho de Mordor.

Tolkien, você sabia do que falava.

Deixei você dentro de mim: percebi que você, grande amigo, como todos os meus grandes amigos, é uma parte da minha personalidade que posso sempre visitar, a cujas palavras sempre posso recorrer. Seus livros me oferecem, ainda e sempre, um abraço real quando me deparo com este mundo morrendo à minha volta. Há, dentro de mim, algo de belo que você plantou. De você, sempre posso puxar o hálito e a força dos meus dragões, o verde e o orvalho das minhas planícies, e nossos olhos se cruzam sempre que posso olhar as estrelas.

Obrigada por tudo.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Carta de amor a Tokien

Conheci você quando tinha 14 anos. Rata de biblioteca convicta, já tinha roído uma porção de livros da minha escola, e embora todos eles aplacassem momentaneamente minha sede por me envolver literariamente com outras pessoas, eram todos livros One Night Stand. Eu os lia, passando meus olhos por eles, enquanto no fundo de mim, minha alma se ocupava de outras coisas, o que incluía meus próprios livros – ainda não escrevi nenhum, mas já produzi uma porção de crônicas, contos e resenhas.

Um dia, um tio meu chegou com a sua maior obra nas mãos, O Senhor dos Anéis. Era o livro mais velho que eu já tinha visto e tocado; suas páginas eram sedosas e amarelecidas, mas as letras conservavam a história bem nítida. Seu cheiro era de mofo adocicado. Amei você desde a capa, e meu amor foi tomando forma ao longo do prólogo, do índice, dos capítulos. Eu gostava de como você impregnava todo o mundo que criara com beleza, mesmo nas coisas horripilantes e malvadas. Com sua paciência, com os detalhes, fui entendendo que havia uma maneira certa de ler a sua obra. Tolkien não é coisa que se lê, Tolkien é coisa que se sente. Há que se sentir a grama, orvalhada pela manhã, tingida de leve prateado, há que se sentir o vento, há que se sentir as estrelas. Havia tamanha riqueza de sentires que, por muito tempo, eu voltava ao Senhor dos Anéis, e até decorei algumas das passagens de que mais gostava.

Desde aquele momento em que primeiro toquei o livro, aquele momento sobrenatural em que o livro entrou pelas ranhuras dos meus dedos e caiu na minha corrente sanguínea, desde aquele primeiro momento em que, a bem da verdade, foi o livro que me tocou, eu sabia que havia alguém por detrás das páginas que eu amaria também. Nunca perdi você de vista, aquele velhinho risonho na contracapa dos três volumes.

Mas perdi você de vista no tempo. Eu cresci, e como você sabe, crescer é um processo muito doloroso em que matam a criança que você é e substituem por um adulto quase sempre insatisfeito. Essa criança morta nunca deixa de ser uma parte de nós que, estando morta, nos torna seres incompletos. Eu entrei numa faculdade onde aprendi coisas belas e coisas horríveis. Eu entrei numa faculdade que ensina pessoas a ser operárias, fortificando o Sistema no qual estamos todos inseridos. Essas pessoas aprendem a fazer coisas assustadoras, monstruosas, e embora eu não queira nem vá praticá-las, não há nenhuma dúvida de que também as aprendi. Eu as vi acontecendo.

Antes, eu era Frodo e Sam; sua obra, O Senhor dos Anéis, era o meu Condado, um lugar onde Bem e Mal são muito bem definidos, e embora a ameaça seja a maior de todas, é possível escolher! Os heróis do livro, como quaisquer heróis do mundo, podem ter suas dúvidas, e podem até morrer sem qualquer tipo de recompensa, mas todo o menor e mais imperceptível esforço não passa em vão, e no final se prova de suma importância para que o Bem prevaleça. Daí eu cresci, e plantaram em mim um adulto confuso que já não via sentido nessa dicotomia, que me foi mostrada por Mestres e Doutores como ingênua. Plantaram Mordor em mim, e uma porção do continente que eu sou virou uma terra desolada onde corre veneno no lugar da água, e que nada frutifica além de azedume na língua e um nó na garganta que não se dissipa jamais.

Eu perdi você de vista no tempo. Deixei de abrir o SdA, mesmo que para ler aqueles pequenos pedaços de grama, tão conhecidos e queridos, e apagaram-se de mim os aforismos que antes haviam sido hinos de quem eu era. Todavia, fizeram algo pior comigo: apagaram meus caminhos internos, os caminhos que levavam até você. Deixei, sem querer, que toda aquela pesada academia enterrasse as fadas e os elfos, deixei que a academia tornasse os dragões em criaturas senis e doentes, que hibernam no fundo da terra. Meus dragões de fogo se tornaram morto-vivos fumacentos e impotentes, soterrados por cidades de moinhos e engrenagens – como aquele moinho que o Saruman ergueu no Condado, pouco antes de morrer.

Uma coisa aconteceu e mudou o rumo dessa prosa. Foi uma reviravolta impressionante provocada por um pequeno ursinho de pelúcia, numa papelaria do centro da cidade.

Minha Vovó, uma velhinha mais branca que uma parede, mais lenta que uma tartaruga e mais misteriosa do que um gato (mesmo a Maria, que é um gato absolutamente estúpido, tem seus mistérios), sempre com os cabelos tingidos imitando a cor natural que haviam tido muitas décadas atrás, me deu esse chaveiro em algum dia entre meus nove e meus onze anos. Ela era pobre de verdade, por isso tinha um cuidado extremo com todos os seus pertences. Quando ela me entregou aquele ursinho que parecia ter viajado grandes distâncias - talvez pela pequena mala de plástico presa a uma de suas patas, ou pelo cartão pendurado no pescoço por um elástico apodrecido - eu sabia que ele tinha suas histórias, e que era para cuidar muito bem dele. Como sempre, minha avó não disse nada, pois ela era uma típica caipira brasileira, dessas que falam estritamente o necessário e preferem as entrelinhas às mensagens explícitas. Ela me entregou o ursinho, eu guardei.

Andando pelo centro da cidade, entrei na papelaria simplesmente para ver cores e passar as mãos nos bichinhos de pelúcia. Como você bem sabe, Tolkien, a Cidade é austera, e as experiências sensoriais que ela nos oferece são limitadas e pobres. Eu entro nas papelarias do mundo porque não há grama nem céu em todas as praças, não há tanta grama nem tanto céu quanto é necessário para a saúde das nossas almas, então eu improviso nessas lojas. Não levo mais nada delas para não alimentar os Dragões da Modernidade, que cerram árvores com os dentes e cospem fogo sobre as florestas, mas sinto uma felicidade débil e frágil por conseguir momentaneamente fugir dos arranhacéus nesses mares de papel colorido. Então encontrei lá uma cartela de adesivos que, inesperadamente, tinham o ursinho da minha infância, a relíquia mais preciosa da criança que eu fui, o Ursinho da minha Avó. E, assim como seu livro entrou pelas pontas dos meus dedos tão logo o toquei, a visão animadora daquele ursinho devolveu a vida à criança que eu julgava assassinada pelo Mundo. Meus dragões acordaram, e você – que adorava e temia dragões – adoraria ver as línguas de fogo com que tingiram meu céu – o céu dentro de mim – naquela tarde. Foi algo de belo.

Cheguei em casa envolvida por aquele fogo redentor e descobri que, na verdade, minha criança estava apenas dormindo, intocada, sob as feridas, sob as chagas e sob a burocracia que tinham jogado sobre ela, dentro de mim. Mas que nada daquele lixo era verdade, e que na verdade os fumos tóxicos de Mordor nunca integraram meu ser, e bastava um sopro de coragem e rebeldia para que eles retrocedessem... eu peguei o Anel, que por tanto tempo me dominara, e vi que não passava de um Anel de mentiras, um anel forjado. Peguei e joguei para o alto, onde um dragão em pleno vôo derreteu-o com um acidental espirro de fogo.

Ninguém sabe quantas coisas joguei fora naquela tarde inspiradora, e nas tardes subseqüentes. Quanto mais aliviava o peso da carga, mais meus dragões voavam, decorando os céus com suas magníficas escamas. Enfim, chegou a hora de um importante confronto: eu me reencontrei com você. Tolkien. Você estava vivo dentro de mim, sob uma árvore, com seu cachimbo, esculpindo a fumaça na forma de portentosos navios. A cada baforada, percebi, você erguia um novo mundo, de prados e elfos, e ventos e estrelas. Porém eu precisava saber se você era mesmo uma parte de mim, ou se era só como os fumos de Mordor, que soprei com um gesto displicente.

(fim da primeira parte)