domingo, 31 de julho de 2011

Vamos fazer um programinha?

O tema hoje é prostituição! Inspirada pelo filme da Bruna Surfistinha, resolvi vir aqui e deixar as palavras correrem. Esse foi um filme que me surpreendeu bastante, tenho que dizer. É que a gente, querendo ou não, acaba formando opiniões que são fechadas, seladas por uma série de coisas que vão acontecendo ao longo de nossas vidas.

Nossa sociedade, pautada nessa moral judaico-cristã, “condena” a prostituição. Na verdade condena o sexo. Aliás, pra ser ainda mais precisa, condena o sexo às mulheres. Porque aos homens ele nunca foi negado, nunca mesmo! A eles cabe a divina missão de espalhar a semente pelo mundo, “multiplicai-vos”. A elas cabe a resignação ao lar e ao macho alfa que a domina, seja ele quem for. Portanto, é bem fácil de perceber que prostituta é ralé, né...

Condenar a prostituição por esses motivos, dizer que essa não é uma profissão digna, ou aquelas frases do tipo “eu prefiro ir limpar privadas do que vender minha buceta”... Bom, essa é aquela velha e chata visão de direita, critã, machista etc. Me desculpem, mas não me sinto compelida a falar sobre essa visão. Já tô bastante cansada dela e, no momento, sem muita paciência. Além do que, não foi por causa dela que eu resolvi começar a escrever.

Aquela história de meninas pobres, que foram vendidas, arrancadas de suas casas, as vezes levadas a outros países, forçadas a vender seus corpos. Meninas e mulheres que caem na vida por desespero e necessidades extremas. Sim, sim, sim, isso tudo é muito triste e mais demonstrações cruas e nuas do falocêntrismo nosso de cada dia. Mas também não foi para falar disso que eu vim até aqui.

Na verdade, o que o filme me motivou a pensar foram naqueles casos que a gente raramente pára pra pensar: quando a mulher realmente opta por ser puta! Quando ela pára tudo por algum motivo, larga tudo por algum motivo, e simplesmente decide que agora ela vende sexo.

Agora, aqui, puxando bem pela memória, acho que a primeira vez que parei para refletir verdadeiramente sobre prostituição, fora dessa esfera social-cristã, foi na época em que eu fiz teatro. Me lembro um dia, durante uma dinâmica, a professora falando sobre interpretar, emprestar seu corpo a outra pessoa. Sim, porque o personagem é outra pessoa. E, muitas vezes, é uma pessoa que faz coisas totalmente diferente das coisas que você faz ou faria. E ela lançou a pergunta, assim mesmo, sem pudor, como tinha que ser “qual é a diferença entre os atores e as prostitutas? Qual a diferença entre o pedreiro e a prostituta? Todo mundo vende o corpo, não vende? Que diferença faz a forma como vendemos nossos corpos? Por que umas são aceitas e consideradas dignas e outras não?”.

O capitalismo mascara a opressão sob lindas formas. Mas a verdade é que tá todo mundo sendo fodido, e tem de tudo vindo: tem o sujeito que coloca talco demais no pau, tem o que cheira mal, tem o que tem fetiches estranhos, tem o que vai pedir pra você mijar nele, tem aquele que só vai querer comer teu cu e nada mais, tem aquele que só quer boquete e faz questão de que você engula a porra toda. É isso aí. Qual é a diferença?

Carteira assinada, férias, décimo terceiro, fundo de garantia, aposentadoria... Tudo ilusão do sistema! Um plano muito bem articulado pra nos colocar na linha. Você finge que goza, eles fingem que acreditam e te jogam o dinheiro na cara. E você cála a boca, pega o dinheiro, se tiver sorte toma um banho, troca o lençol e parte pro próximo.

Pra mim o ponto auge do filme foi quando ela sai do hospital. O tal do Hudson oferece tudo a ela, diz que quer tirá-la dessa vida, diz que ela pode voltar a estudar, fazer faculdade. E ela responde que ela não quer viver nesse mundo, foi justamente tentando fugir dele que ela largou tudo, saiu da casa dos pais e decidiu virar puta. E ela pediu que ele tentasse entendê-la, ele não é o príncipe encantado, nem o homem que vai tirá-la dessa vida, porque se um dia ela sair dessa vida, vai ser do mesmo jeito que entrou, sabendo que foi uma escolha dela, e de mais ninguém.

A grande verdade é que o fato dela ser uma prostituta é apenas um detalhe, nessa história toda. Ela poderia ter ido trabalhar numa loja, podia vender sanduíche na praia, podia atender telefone em algum escritório, podia até ter feito a tal faculdade e ganhar mais dinheiro, com mais prestígio... Tando faz. Nada disso faria diferença.

Para o capitalismo todas as profissões são a de prostituta, estamos todxs ali deitados de pernas abertas, para satisfazer os desejos dele... Sempre os dele...

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Amor (continuação)

No que tange à autonomia da mulher heterossexual em relação a seu corpo, uma conquista que permanece é a relação entre o útero e o pai. Porém, na medida em que o corpo com útero deixa de ser uma negociata entre pais, vinculada à manutenção ou à expansão da propriedade privada, o capital apropria-se de tal conquista, ressignificando-a, impondo à mulher a reprodução da lógica de mercado em relação a seu próprio corpo. Agora, “ela vai à caça”: uma vez que a sociedade reconhece a opção pela independência, ou melhor, pela solteirice, como uma derrota imperdoável, envolvendo a “mulher sozinha” num manto de complacência e tristeza, torna-se responsabilidade da mulher heterossexual “conquistar um homem” à custa de um investimento que incide    majoritariamente sobre a estética – embora cada vez mais tenda a abranger também sua performance.
                Quanto mais exitosa for a mulher nas artes da conquista; quanto melhor souber maquiar-se e vestir-se, mais valorizada estará em relação às demais, numa complexa escala de valores que agora não apenas comporta classe e raça como critérios como: a textura do cabelo, a silhueta (gorda ou magra), a pele sem manchas e sem pêlos, cabelos brilhantes ou opacos, e por aí vai. Essa estrutura complexa provoca entre as mulheres a constante sensação de competição, sensação esta que nos divide. E não pensemos ingenuamente que se trata apenas de um acidente, de uma coincidência promovida por uma cultura: trata-se de uma estratégia ativa do machismo para evitar sentimentos de cumplicidade e união entre as mulheres, união essa que, ao longo da história, tem sido sempre vista com maus olhos. Frequentemente, os diversos veículos de comunicação através de suas narrativas (novelas, livros, filmes, séries de TV, etc) treinam a nós, mulheres, para conceber umas às outras como ferrenhas competidoras; somos descritas como maliciosas e falsas; nossas amizades, quando representadas por tais narrativas, são laços frágeis e provisórios, sempre ameaçados pela aparição de um homem, e a sociedade civil absorver tais arquétipos, acabando por reproduzi-los.  Não raro, melhor amiga e namorado se odeiam: o namorado vê na melhor amiga uma rival, não no sentido do sexo, mas no sentido de que a melhor amiga em geral preocupa-se com o bem-estar da mulher, e não com a estabilidade da relação, o que leva muitas vezes a melhor amiga a depor contra o cônjuge.
                Nessa lógica de mercado, a mulher procura tornar-se o produto mais bem posicionado na prateleira, mais valorizado no grupo a que pertence, e isso passa por dentro das relações com o capital. Uma vez que a beleza em nossa sociedade exige uma grande monta de investimentos tecnológicos – cosméticos, roupas – a mulher heterossexual acaba por definir sua identidade através da relação de exclusividade que mantém com os bens que consome. A partir disso é fácil entender por que a situação paradigmática do “vestido repetido na festa” é tão trágica: uma vez com o mesmo vestido, as mulheres tendem a comparar-se e a serem comparadas, afixando automaticamente uma vencedora e uma perdedora.
                É importante ressaltar que estar no topo dessa hierarquia trás inúmeros benefícios aparentes para quem dela goza: ser bem atendida em lojas, possuir um séquito de homens que, na esperança de um dia possuí-la, mantêm-se amigos fiéis e solícitos, ser mais bem orientada por professores, receber presentes, entre outros privilégios. Isso nos divide ainda mais enquanto classe de seres oprimidos em função de nossos úteros: aquelas que estão de fora do clube de vantagens revoltam-se, e com toda a razão; muitas feministas passam a enxergar melhor a opressão que vivem na medida em que estão privadas das poucas vantagens que “ser mulher” nos oferece. Nesse sentido, aquelas que continuam a ser aduladas melo machismo passam a ser publicamente promovidas como exemplares do gênero, promovendo uma pedagogia que, através de revistas, jornais, programas de TV, disciplina meninas e jovens mulheres a seguir o arquétipo das “vencedoras”. O mesmo discurso, pois, através da lógica formal, tipifica a feminista enquanto uma mera mulher descontente, “despeitada e invejosa” com uma ordem que é construída como natural, ou pior, como correta. O feminismo, pois, é esvaziado de sua política.
                Não à toa, retomando nosso tópico, a feminista é qualificada como “mal-amada”. A mulher, enquanto gênero, constrói-se na sua submissão ao homem. Toda a construção da identidade feminina é voltada a tornar o corpo uterino uma ferramenta do corpo com pênis; de nossa estética à nossa subjetividade, toda a construção de nossas personalidades e caráteres é um longo e lento investimento simbólico de domesticação. E o amor é a consumação, a convergência de todos os condicionamentos, e o ponto em que suas finalidades vêm à tona. É no “ser amada” e no “amar” que o corpo com útero consuma a metamorfose em mulher, e eleva exponencialmente seu servilismo aumentando seu investimento cosmético, indumentário e performático. E a feminista rejeita esse tripé. Na busca por desqualifica-la e despolitizar essa luta, a feminista é tipificada como mal-amada e, mais recentemente, mal-comida – e mal sabem nossos inimigos que, no que tange à construção do gênero feminino como mero complemento à sexualidade e à subjetividade do falo, nesse sentido da palavra, não nos interessa ser mulher.
                Isso nos leva a dois questionamentos. Ambos são de interesse tático, estratégico, para a luta contra o falocentrismo. Uma vez que a primazia do Homem muito se exerce nos atos de fala, a linguagem, a escolha lexical que fazemos em nossos enunciados, são de suma importância para a nossa luta. Uma vez que o falocentrismo nos organiza simbolicamente, muito de nossa luta acontece no âmbito dos significados e das ressignificações. Desta forma, até que ponto devemos reivindicar palavras tais como amor e mulher?

domingo, 24 de julho de 2011

Amor

Como já disse alguém que deixou a frase no ar e depois a perdeu, tudo pode ser. Pode ser acaso, um mau dia, céu cinza, a topada que eu dei hoje de manhã, ao saltar do ônibus, e já nem lembro, mas que deixou impressa em mim irritação que, esquecida a causa, tornou-se como se intrínseca a mim. Acho que ao deixar o útero da minha mãe dei no mundo uma topada qualquer que agora já me é natural. E é possível que seja, porque tudo pode ser; mas como não se pode viver sobre o solo fértil das possibilidades, vou dizer que não sei.

Eu lembro do crepúsculo da minha adolescência: eu era muito como eram os dias das minhas férias de verão, as férias de uma infância primitiva e já quase esquecida, a não ser por um punhado limitado de sensações; as férias não acabavam nunca, as férias eram só certeza. Havia aquele desvario de brincar e a ilusão de que não havia hoje, posto que o sol por pouco não se punha; o dia se estendendo através das horas mal deixava perceber que já eram sete da noite, e bastava um piscar de olhos já se estaria brincando sob um céu violáceo cheio de estrelas, e seria a hora do banho – de tirar o barro das mãos, vestir pijama e sonhos. No crepúsculo dos meus dezoito anos, achava que estava no começo de tudo; a terra prometida do Feudo Acadêmico exalava seu cheiro de livros velhos pelas fendas das pesadas cortinas de veludo (minhas ilusões), e uma vez atravessado o Estige do vestibular, eu ganharia o mundo. Era tudo tão certo!

Achava-me tanta coisa que hoje já não concordo, ou não lembro, ou acho até que não existe – acho que é assim com todo mundo. Entre essas coisas estava a ideia de que era anarquista, e lembro de estar certa vez em um simpósio sobre o tema, ali no Campus do Gragoatá, da UFF – para aqueles que não conhecem, sintam já na palavra Gragoatá o cheiro do mar e das amendoeiras, o chão de pedrinhas, os quero-queros, e até uma certa magia, mesmo que neste texto essa última soe vulgar. Inebriada pela Academia que eu adentrava pela primeira vez, perdida entre professores e punks unidos sob a mesma redentora bandeira, eu olhava os títulos dos livros à venda com alegria, com esperança, e sem dinheiro algum, como era de praxe naquela época, até me deparar com um que me levou à revolta – a revolta levou meus pezinhos, sempre naqueles velhos tênis, a ir embora com pressa, pensando puta num cem número de argumentos contra uma certa dona que dizia, em seu livro, que essa coisa de amor não existe.

Aquilo era um terrível engano, pensava. No ímpeto de despir-se das amarras que a aprisionavam, a moça, cujo nome se perdeu (e as arqueólogas façam o favor de achar), acabara caindo na mesma ingenuidade daqueles que acham possível destruir um sistema apenas negando a sua existência, ou a mesma arrogância de quem pensa que, uma vez não sendo documentada, a solitária folha jamais caiu no meio da floresta. Dizia não apenas que o amor não existia, como tinha sido inventado, com a arquitetada intenção de aprisionar a mulher no lar, nas quimeras; libertando-a num mundo medievo, saciar-lhe-ia a vontade de por si só viver o que lia, enquanto suas mãos poderiam ficar eternamente atadas nas bolhas de sabão de um detergente doméstico.

O livro e sua orelha ousada nunca me abandonaram inteiramente, compondo um pesadelo que algumas vezes me pegava sonolenta, cabeceando nos ônibus da vida. Porque se não houvesse amor, eu não sabia exatamente o que seria de mim, posto que desde o amanhecer da minha vida tinham-me dito que a existência de tudo aquilo que eu chamava de “eu” era apenas o amontoado errático de moléculas que tomariam sentido uma vez que eu encontrasse meu grande amor. Minha história, pois, era pura pré-história; eu, por minha vez, era apenas o apêndice de uma outra vida, eu era peça num quebra-cabeças composto apenas de duas partes: eu e Ele. “eu” em minúsculas.

Caro homem que me lê; cara pessoa dotada de espermatozóides cujo corpo desde cedo é assinalado como masculino, e conduzido pelo mundo por uma sucessão de portas abertas – claro que nem todas as portas estão abertas; para além da diferença dos gêneros, há a de cor e de classes; mas imagine que se a sociedade tem sido para vocês uma sucessão de portas abertas pontuadas por obstáculos, a vida da mulher é um amontoado de obstáculos pontilhados de portas abertas. Caro macho – com o perdão da palavra – imagino que a partir deste parágrafo o texto represente uma real dificuldade de leitura para vocês, treinados veementemente para rebater toda a literatura feminina com suas metáforas mélicas e floridas. Pois bem, se é verdadeiro o repúdio, mais verdadeiro ainda é o fato de que tal reação não lhe é natural, mas parte da constituição social, cultural e política daquilo que grosseiramente chamamos de “caráter” ou “personalidade”. A nós, mulheres, foi legado como que um gueto literário, isto é, uma gama de assuntos “tipicamente femininos” que nos são apropriados, quando não obrigatórios. No epicentro desta miríade de assuntos está o amor, e não por acaso, como veremos adiante. E os homens, evidentemente, são devidamente orientados a não gostar de boa parte de nossa produção cultural literária, não por motivos de qualidade, mas porque essa é uma literatura que francamente nos inicia no mundo da submissão.

Desta forma, o homem que quiser colaborar para o fim da opressão de gêneros terá de lutar contra o que é possivelmente a maior marca do falocentrismo: o monopólio do lugar de fala. A paixão pelo discurso e o desprezo pela escuta. Na convivência diária, a supremacia do falo não se manifesta só (nem majoritariamente) na divisão assimétrica de tarefas (que em geral leva ao acúmulo das tarefas braçais para a mulher), mas nos atos de fala. O bom observador verá que qualquer mulher que se pronuncie em situação imprópria, isto é, situação na qual é pressuposto o domínio intelectual masculino sobre o assunto, será automaticamente rotulada por alguma alcunha pejorativa, entre as quais a mais delicada será algum sinônimo qualquer de “verborrágica”. Isto porque os atos de fala, por mais prosaicos e cotidianos que sejam, são todos políticos; é sobre os discursos que se organizam as ações, as disciplinas; sendo assim, as falas que exigem conhecimento técnico, científico, isto é, as falas que são determinantes para as práticas devem ser proferidas exclusivamente por homens. Toda a impaciência com o discurso feminino – não suportar a voz, não querer ouví-la, ter a sensação permanente de que a mulher não discorda, mas apenas não entendeu o que você queria dizer – fazem parte de uma prática despótica tipicamente falocêntrica: a expulsão da mulher do lugar de fala. Retomando, pois, a proposta inicial, o homem que quiser engajar-se objetivamente na luta pelo fim da opressão da mulher terá de escutar. A escuta é revolucionária.

O mito de Adão e Eva é o que infla o pulmão dos ultrarromânticos, grandes responsáveis (embora não únicos) pelo modelo de amor que se dirige à mulher. A constituição do mito permite-nos enxergar por que o mesmo tema, “amor”, muitas vezes através das mesmas narrativas (cânones da literatura, filmes, novelas televisivas) surte sobre a mulher e sobre o homem efeitos diferentes, orientando comportamentos opostos.

É fato que o mito propõe que ambos, homem e mulher, sejam incompletos, e profundamente infelizes em sua incompletude. Não se trata apenas de uma incompletude subjetiva, mas objetiva, quase visceral: a história insinua que é objetivamente impossível atingir um grau satisfatório de felicidade na solidão, quando não afirma que a felicidade encontrada na solidão é apenas ilusória. Para além disso, o mito de Adão e Eva, em seus desdobramentos, ressignifica a palavra “solidão” para um sentimento de desolamento, depressão e angústia, identificando a raiz dessa inquietude na falta do cônjuge. Dessa maneira, para homens e mulheres, a fonte da felicidade é o amor conjugal, de onde derivarão todas as outras alegrias; todas as alegrias são completas no amor conjugal apenas.

A pequena diferença está na questão da costela. O Homem é orientado a procurar a parte que lhe falta no todo; a mulher, por sua vez, é orientada a encontrar o todo d'onde se perdeu já no início dos tempos, para onde suas vísceras apontam sem falhar. Se para o homem a procura do amor faz parte de uma saga espiritual, subjetiva, para a mulher trata-se de uma busca muito maior. O Amor para a mulher não é apresentado apenas como um sentir intenso, como a alegria de encontrar um sorriso de quem se gosta; o amor, para a mulher, é construído e imposto como um conjunto de valores e práticas que excede o mundo das flores e dos suspiros. O mito do Amor é um mito de retorno ao verdadeiro lar. O mito do amor é o que desvela impiedosamente que o laicismo do mundo ocidental é uma máscara trágica, posto que põe milhões de mulheres na esteira fabril da busca pela paz de espírito, busca na qual a mulher se anula em função do sujeito de desejo, numa relação fatalmente assimétrica na qual torna-se o objeto.

No mito do amor ocidental e bíblico, a mulher não pertence a si mesma, é a consequência lógica do homem. Seu corpo deve, pois, aguardá-lo, e caso caia em tentação, sofrerá internamente as mazelas da culpa. Ainda que a virgindade esteja vivendo dias inglórios, o mito é apenas lapidado, deformado: transforma-se na dicotomia “sexo casual” versus “sexo com amor”. Não raro revistas femininas escrevem artigos sobre o tema, orientando sempre as meninas no sentido de enaltecer o segundo em detrimento do primeiro, sem contudo bombardear o “sexo casual” às claras. E uma coisa continua constante: mesmo que o seu “primeiro homem” não seja o seu “verdadeiro amor”, é fortemente aconselhável à mulher estar perdidamente apaixonada pelo homem que lhe tirará o hímen.

A questão da virgindade quando analisada pelo prisma do amor fagocita a biologia na mais curiosa peripécia: virgindade e promiscuidade são medidas da vagina, e não do comportamento social. Por essa razão torna-se fácil explicar por que o homem não está sujeito ao valor de uma ou de outra coisa, a não ser pela obrigatoriedade de NÃO ser virgem – o que gera um problema aparente: se o homem deve perder a virgindade e a mulher deve guardá-la, alguém tem que ceder. Porém, a sociedade aponta dois diferentes caminhos, sejam eles: sendo a virgindade concernente apenas à vagina, mais precisamente ao hímen, todas as práticas “periféricas” são apenas “preliminares”, de forma que o corpo da mulher pode continuar livremente servindo ao prazer peniano. A segunda solução surge do corte de classes e raça: para que as meninas brancas e ricas possam ser virgens, o homem pode dispor dos corpos negros e pobres, bem como das prostitutas – o arquétipo de Maria Madalena, aliás, demonstra com perfeição que o mundo cristão vê na prostituta uma função duplamente moralizante de garantia da virgindade das “moças de bem”, um exemplo do comportamento proscrito e a contenção do adultério feminino, uma vez que, para burlar o casamento, o homem procurará preferencialmente a prostituta, e não uma mulher casada, ou pior ainda, virgem.

A estrutura conservadora e cristã na qual o corpo da mulher pertence ao pai antes de pertencer ao marido afrouxa-se – sem desaparecer – no que tange ao pai, mas permanece no que tange ao marido, ou ao “grande amor”. É ilusório pensar que de alguma forma a indumentária feminina atende a alguém além do homem, de suas necessidades subjetivas e simbólicas. O espartilho não foi abolido, mas engolido na medida em que o corpo feminino deve, agora, corresponder biologicamente à silhueta denominada feminina. Esta, por sua vez, está mui longe se representar vagamente um estereótipo que seja do corpo que contém o útero (contrariamente ao discurso da biologia), representando, isto sim, o imaginário de um corpo simbólico que corresponde aos papéis atribuídos à fêmea humana: o corpo torneado responde ao vigor e ao apetite sexual; os seios fortes e os quadris largos apropriados à proliferação; ausência de pêlos denotando delicadeza, suavidade, fragilidade e, em última instância, dependência.

Por essa razão, amor e conjugalidade estão entrelaçados na percepção deste sentimento destinada à mulher; amor não se trata, portanto, apenas de um estado emocional, mas de uma crença na qual um estado emocional é também físico e espiritual, que a levam de maneira automatizada, naturalizada, ao cumprimento de um papel. O apelo mélico do qual falei ainda há pouco é apenas uma entre as mais variadas estéticas na qual o amor é insinuado à mulher, emaranhado nas narrativas que compõem a cultura. Erro é pensar no falocentrismo como um obelisco defendido a ferro e fogo por uma corja acéfala testosterona: o segredo de uma sobrevivência próspera reside, inclusive, em sua maleabilidade.

A ideia de que o monopólio do útero rege a vida sexual da fêmea foi firmemente bombardeado pelo advento da pílula anticoncepcional que, como vimos, foi rapidamente convertida em um benefício para o prazer do homem, que consegue através dela livrar-se da camisinha, exercendo sua dominação simbólica através da ejaculação. A dissociação entre sexo e proliferação certamente abala o amor cristão na medida em que a prole era apresentada à mulher como fruto máximo do amor; porém, isso apenas desloca mais ainda a centralidade do amor para o sexo, condensando dois arquétipos em um só corpo: a santa e a puta. Ela é santa na medida em que sua fidelidade ao falo é real, inquestionável; contudo, movida pelo amor, construído como força primitiva e visceral, a mulher acessa seus “instintos mais animalescos”, assumindo no coito posturas ativas, dominantes, extremamente gráficas. Quanto mais sua performance corresponde à coreografia da prostituta, mais próxima ela está de seu núcleo animal, e supostamente despida da cultura e das exigências sociais, está também mais próxima do amor.

“Self made woman e o mito da conquista: agora que a mulher não é mais peça de negociata política entre pais e maridos, a função da beleza e do empenho na feminilidade são responsáveis por arrebanhar o abraço de um homem...”

domingo, 17 de julho de 2011

Colheita Feliz (parte 2)

Saímos do banheiro, da sala, do apartamento; numa rua do Centro que não tem nome, a realidade dos abraça, com lembranças da prova de hoje à noite e da sua reunião – porque você é um menino muito sério, e afinal nós temos uma revolução a fazer. Você ainda sorri, todo suave, mas na bondade que esgarça seu rosto tem agora uma ponta de sarcasmo. Você toma minha mão e brinca com meus dedos como numa medalha de honra ao mérito, aquelas medalhas de latão que são distribuídas às crianças que nunca estiveram realmente no páreo. Eu penso que nunca fiz parte do seu desejo, e agora me inundam os fantasmas da infância, os fantasmas disformes do medo e da angústia escondidos sob um branco lençol, arrastando as correntes no fundo lamacento da minha alma, repleto de desgosto e lágrimas que nunca chorei. Nessas horas eu lembro que não sou mulher – nem homem, nem coisa alguma – e chego a pensar que não é assim tão absurdo que você não me queira. Esse meio de caminho, essa incógnita.

O que, é claro, fica muito longe de atenuar meu desejo, e meu corpo inteiro, imantado por essa sua mão a brincar com meus dedos, ainda te deseja, ainda grita eriçando meus pêlos, como gato que acaba de ver assombração. Talvez eu não seja tão revolucionária quanto penso. Não. Eu sou apenas uma lunática que orbita pequenos desejos, pequenos cometas que vivem a bagunçar a ordem já muito frágil da minha alma. Eu sou uma cafajeste sempre atrás de um novo rabo de saia, sempre abanando o rabo para a mais nova paixão que desfila ante meus olhos, nas ruas da Vida. Se minhas paixões são idéias, se me apaixono pelo feminismo com a mesma facilidade com que me envolvo nos cachos profundamente negros que habitam essa sua cabecinha marxista, é pura coincidência. Não é razão nem empírica a chama fátua que me guia através da vida, mas o brilho efusivo entusiástico das minhas paixões. E assim, seguindo de ouvido as batidas do meu coração e mantendo acesa no horizonte uma pequena cisma, eu sigo.

E não é o feminismo nem a teoria queer que desata o nó na minha garganta, mas o fato de que as minhas entranhas ficam perturbadas quando você não está dentro de mim. E, desatado o nó, libertas as águas, a pergunta saiu tão rápida que não pude lapidá-la, refiná-la, a pergunta saiu com a mesma violência com que antes dominava meu interior:

O – Por que você não quis me comer?

Inabalável, você:

O – Porque não teve clima.

Inabalável, eu:

O – Mas o que deu errado?

Sorrindo sem qualquer sombra de sarcasmo, sorrindo a paz das nuvens do céu, você responde:

O – Porque não precisa ter sexo para dar certo. Estava bom como estava, não fique preocupada.

E eu entendo que sou machista; que sou eu quem vive transformando o sexo na cereja do meu bolo. Que, preservando o valor patriarcal do coito, continuo achando que o sexo é a consumação do afeto e a fusão das almas, quando o sexo é apenas uma entre as muitas formas de acariciarmos e sermos acariciados. Continuo esquecendo que talvez esteja muito mais junto de você caminhando na rua de mãos dadas, conversando sobre trotskysmo, do que com você entre as minhas pernas sem dizer nada. Então, colho das suas palavras um ensinamento novo. Com a certeza de que, ao escrever esse texto, você está mais comigo do que nunca; isso que agora eu sei é uma colheita feliz.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Colheita Feliz

Banheiro velho, pia cor-de-rosa. A cafonália dos anos 1980 impressa em cores aberrantes nos azulejos da parede, e ainda mais vívidas pelo encardido dos anos. Banheiro masculino, o descuido de uma barba feita na pia, a preguiça de empurrar os pêlos para o ralo, gibis da Mônica acumulados ao lado do sanitário. Em um minuto de solene silêncio, pergunto de quem são essas personalíssimas pegadas impressas no banheiro de uma república masculina.

Eu sou uma intrusa, um parasita. Sou o ovo da verminose que espera em silêncio um descuido do organismo para crescer, instalar-se e corromper a estrutura tão hospitaleira e agradável que se me faz Casa. Uma parasita sem voz, uma parasita que não pode ser sabida, dentro do banheiro eu calo até a minha respiração e peço encarecidamente ao meu coração que bata um pouco mais baixo, por favor. Porque são horas da manhã, e pode um homem querer acordar, fazer a barba, escovar os dentes, e a regra é muito clara ao dizer que as mulheres não podem entrar.

E vem de dentro de mim esse prazer imenso de saber que ali é meu lugar. Um protesto, um tímido protesto; meu lugar, meu lugar de fala, meu lugar no palanque é, e para sempre será, o lugar errado. Toda vez que a fronteira da Norma se alarga para aconchegar (ou calar?) alguma coisa em seu seio, eu trato de pular a barreira e ficar de fora. Sempre de fora. Porque não há norma que me abrace, o abraço da norma é sempre o sufoco, o silêncio, e eu cheguei ao mundo da mesma maneira como pretendo sair dele: com gritos de protesto, banhada em sangue.

Ainda que seja um sangue metafórico, veja bem. Eu tenho a sorte que muitos dos meus amigos não têm, pois ninguém ainda me encostou as mãos para tirar sangue do meu corpo em função dos meus ideais. Cada dia a mais acho que é só uma questão de tempo; cada dia mais é um a menos até que surja das sombras alguém, um coturno nas minhas costas, me chamando de sapatão, de comunista, de maluca, de qualquer coisa. E ainda que o coturno nunca chegue (oxalá não chegue!) a sua sombra me persegue. São palavras hostis emaranhadas no meu nome, que ouço nas esquinas, nos corredores, nos bares da vida. A batalha deste lado de cá, a batalha dos enjeitados, dos invisíveis, é simbolicamente manchada de sangue; a dor que a gente sente, a dor que eu sinto consumida por dentro, é imensurável.

Mesmo que eu quisesse, mesmo que eu tentasse, meu corpo desobedece as ordens da moral estética. Isso, ele faz sozinho. Porque a vida inteira eu só ouvi “você está ficando mocinha”, a metamorfose nunca se deu. No corpo, a mulher nunca emergiu, nunca entalhou suas curvas, e no rosto, tampouco a boneca foi embora. Daí resulta que nunca cheguei a ser mulher: nunca fui vista como algo maior que garota. E como me frustrava, meu deus! Porque enquanto ao meu redor esbanjavam-se pernas, peitos e bundas, eu era eternamente o meio do caminho.

O meio do caminho em tudo. Nunca me decidi entre meninos e meninas. E as pessoas sempre me cobrando as contas. Porque afinal, você vai ter que casar, vai ter que escolher entre um e outro. Do que você gosta mais, gato ou cachorro? E não tem nada, além disso, no cardápio da sociedade? O prato do dia há de ser sempre uma dicotomia?

Passa-se talvez um minuto antes do seu regresso. Não combinamos nenhum código para bater na porta, pode ser qualquer um do outro lado. E eu, pelada, esperando você voltar, dou uma chance ao azar: que nada. Era só você, que entra sorrindo com essa sua cara de menino bonzinho. Coisa que eu admiro em você é esse sorriso. Eu gosto de mergulhar nessa sinceridade e aí tirar férias do universo. Porque, como você sabe, eu não sou marxista, não boto tanta fé nos seres humanos. Faço as apostas mais baixas, mais rasas, nunca jogo minhas fichas todas, muito menos nos Homens.

Eu, até a quinta-feira passada, tinha feito uma escolha muito clara. Não porque precisasse dar à sociedade a tão esperada resposta, mas porque estava cansada de apanhar simbolicamente. Estava cansada das promessas libertárias de certos homens que na cama, ou ébrios, tornam-se tiranos. Cansada de ser diariamente expulsa do lugar de fala: você já reparou que quem fala demais são os homens? Você já reparou quantos assuntos, quantas frases no meio pode encontrar na sua memória? Você, Homem, já reparou com que olhos encantados sua amante se debruça em suas palavras? Não se trata tanto de amor quanto de respeito, e esse respeito, cansei de procurar debalde nos homens. Quando você me pegou eu estava de malas prontas.

Nus no banheiro, no frio, no silêncio. Tudo em você é suave: você ficaria espantado em saber que já passaram pelas minhas pernas muitas mulheres mais homens que você. E é disso que eu gosto: gosto de você onde você falha, onde você desvia, onde você ignora a norma, onde você se encontra comigo no meio do caminho. Nossas mãos indecisas passeiam, com certa dúvida, dos pêlos, nas costas, nas pernas. O chão escorregadio faz com que nossos atos sejam menos pornográficos do que risíveis, e por isso, sem deixar de zelar pelo silêncio, nós rimos um pouco, rimos baixinho.

Na minha cabeça, crio um orgasmo. Espero pelo gozo enquanto conduzo suas mãos pelos caminhos que ficam ocultos entre as minhas pernas. Sei que são muitos pêlos, sei que você talvez não entenda ainda que eles fazem parte de todo esse protesto que eu tenho sido nos últimos anos. Ainda assim, não deixo de desejar a sua mão, os seus movimentos, e por fim não deixo de desejar o seu afeto e seu desejo. Mas as mãos vacilam e se retiram de leve, como se no resto do corpo houvesse mais o que fazer do que desvendar o já desvendado mistério que mora entre as pernas.

Porém, quanto mais você afasta as mãos, quanto mais cola os lábios nas minhas costas, quanto maior é seu calor contra meu corpo, quanto mais longo é seu abraço, mais o desejo esquenta e escorre por entre minhas pernas. Eu trago de novo suas mãos com delicadeza, e com a mesma delicadeza elas se afastam. Começo então a tremer e a temer por dentro que você não me deseje. Que não deseje este corpo que, despido dos artifícios da alfaiataria, é andrógino, é impreciso, decidiu-se inexato. E o tempo passa, e as carícias continuam no mesmo ritmo lento da grama que cresce, das nuvens que pastam no céu nos dias do outono. “Eu preciso ir embora”. Recolho do chão as minhas roupas, guardo no bolso a camisinha ainda na embalagem, e vou embora aterrorizada, pensando no que aconteceu. Pensando no que NÃO aconteceu; pensando em que significa esse sinal do céu, essa peste na minha Tebas, indagando-me se, tal qual Édipo, não serei eu a minha própria peste.


(CONTINUA...)

domingo, 10 de julho de 2011

Igreja dos Homens

Acordar cedo é um desses meus hábitos incorrigíveis. Pior, é um hábito que meu corpo criou à minha revelia; não adianta lhe explicar que são sete e meia da manhã de sábado, e que para a agonia, o sono pode ser boa rota de fuga. Que nada. Para ele o que importa é que já amanheceu o cinza, fresco e agradável, e como um cão que deseja ser levado a passeio, ele não quer perder isso por nada.

Foi quinta-feira quando eu contei para Pedro, melhor amigo de Rômulo, o que havia se passado. Não porque eu seja imensamente boa e esteja genuinamente preocupada com seus sentimentos, já que seus sentimentos são apenas de orgulho, de posse, de macho que perdeu seu troféu – pois eu o era. Nos poucos momentos em que estivemos juntos, ele me levou à presença de seus amigos, que deixaram em mim olhares de desejo, que deixaram nele olhares de inveja – alguns deles ainda demonstraram abertamente que me pegariam com ou sem ele. E ele gostava desse jogo, tanto quanto não gostou de perdê-lo.

Chamamos de política quando agimos francamente contra nossas vontades e crenças em virtude de um objetivo maior que repousa em mãos alheias. Política foi o que eu fiz tentando parecer francamente preocupada com aquele homem, no intuito de ficar com um outro, com seu melhor amigo, pois eu conheço – não nasci ontem – a ética masculina. Sei que ontem, sexta-feira, meus dois homens, o ex e o desejado, se reuniram para um debate, para uma inquisição moderna, em que meu destino será negociado como se negocia a posse de um escravo, que em condição de mercadoria, não tem direito a seus desejos. Que tudo é uma questão de direitos autorais: “desfilei com ela primeiro”. Sei que os homens são essa sociedade secreta gigantesca que fica mexendo seus títeres por trás das mulheres, como se fossem deuses.

Ser homem é uma religião e uma igreja, onde bruxas são queimadas, diariamente. Herege é a palavra grega que designa liberdade, e a heresia não seria um crime se o desejo das mulheres tantas vezes não fosse oposto ao desejo dos homens – não haveria crime, se as mulheres fossem livres, e elas são tanto mais bruxas na medida em que mais selvagens são. É tudo uma questão de acordos, onde a beleza das bruxas, as danças nuas ao luar, as borboletas, as cores, são voluntariamente apagados por uma redoma de esquecimento: “mulher de amigo meu é homem”.

No raso dos meus sentimentos, que vivem todos palpitando nas veias periféricas, eu gosto dessa adrenalina, eu durmo na cama da angústia, eu penso na fogueira, até me divirto. Encarno a discórdia, espreito a ética masculina como um diabo entre os padres; visto-me de tentação para colher seus olhares, que guardo todos na memória, olhos boiando em frascos com líquidos estranhos – afinal, eu sou, sim, uma bruxa, uma herege, uma livre. Gosto de pisar na fragilidade da honra. Por mais que a partir de agora, neste exato momento, decidam de dentro da igreja que eu não fui senão uma tentação fortuita, um vacilo da fé viril, o estrago, a mácula, a sujeira no manto sagrado, já foi feita.

Ah, a boa e velha bíblia não cansa de ser vivida: para se chamar um lugarejo de Cidade, há que se eleger, de quando em vez, uma Maria Madalena. Antes, andava às ruas maltrapilha, talvez de vermelho. Talvez o rubor de uma fruta silvestre manchasse suas faces e seus lábios então; a luxúria repousaria em suas ancas fartas, que se movimentariam com um balanço marítimo sob o volume dos panos. Porém, estamos em épocas quando o tempo é mercadoria preciosa, escassa, e tudo que os homens têm a deixar numa puta (além, é claro, de seu esperma e suas doenças veneras) é o olhar. Então, os mantos e todo o jogo insinuante e misterioso são reduzidos a frangalhos, meias arrastão, coturnos e pequenas tiras de pano que insistimos – por metonímia, ou por herança etimológica – em chamar de saias.

Não sou assim tão descarada, e a julgar pelas minhas roupas, um historiador ou um arqueólogo jamais arriscariam que a puta da cidade, a puta da vez, sou eu. Mas a puta não está nas roupas. Não está no meu rosto, lavado de maquiagem. Não está nas minhas ancas estreitas, nem na minha boceta – e já que estamos falando dela, convém dizer que não foi tão amplamente usada quanto a de quantas carolas que as escondem sob seus mantos! A questão toda é: a puta está na Cidade. Está na imaginação coletiva, está nas línguas, está na fantasia masturbatória daqueles (e daquelas!) que mais a reprovam. Está na alma primeva e esquecida da humanidade. Eu sou só o rosto que Madalena ganhou nesta geração.

Fossem dois homens em cantos opostos da cidade. Fossem dois homens que jamais se viram ou trocaram palavra, eu não seria puta: no máximo seria sirigaita, fogosa, galinha, e até mesmo pegadora. Mas não. Não quando você fere os contratos masculinos de honra e fidelidade. Não quando você mostra que os contratos de hombridade são frágeis, e nada têm de honrosos: que por trás de palavras leoninas e compromissos de irmandade, o que há entre os homens é orgulho, insegurança, posse e uma grande dose da mais cruel competição. Quando entre dois homens irrompe uma mulher, fica claro que o único laço que os une é um sentimento medíocre, pequeno, um sentimento que não tem sequer convicção em si mesmo: o que há entre dois homens, e que eclode na presença da mulher, é o machismo.

Assim, sigo tapeando minha angústia com os mais pretensiosos delírios feministas, quando na verdade meu útero foi simples e irremediavelmente fisgado por aquela barba loura, mal-feita e displiscente. Pela lascívia que se desprende da pele morena com a mesma naturalidade do suor num dia de verão carioca, quando o suor não se distingue da umidade do ar, e não sabemos se efetivamente é suor ou apenas o beijo atmosférico. Então, prenhe das fantasias que mantenho com esse homem castanho, volto para a paz das cobertas onde, vigilante, contorço-me, como se eu mesma fosse o feto angustiado de uma gravidez incerta. O que Rômulo escolherá afinal, largar a puta preservando a honra, ou manchar de sangue menstrual, para todo o sempre, sua imagem de amigo fiel? Escolherá a Puta ou a Cidade?

Esse telefone, que não toca...

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O mundo das quimeras informes. O lado de cá, depois da cerca

O que é a linguagem? Muitos já a definiram das mais diversas formas, mas deifinindo-a grosseiramente por aquilo a que a linguagem se presta, trata-se de uma ferramenta. Uma ferramenta para nos movimentarmos dentro do mundo sensível; a linguagem é a representação intelectual e conceitural do mundo à nossa forma e de um mundo dentro de nós, a cultura, que nasce, acredito, de dentro dela. É a linguagem que nos permite os conceitos dentro dos quais trafegamos e nos entendemos: sacando da manga o velho exemplo, não posso carregar no bolso todas as coisas de que falo, e para isso existem os signos e símbolos: para substituir, com fins de comunicação, coisas do mundo ou coisas do nosso mui particular intelecto.

Eu via a linguagem como vejo o universo: infinito, e por isso mesmo informe. No centro, os significados mais fáceis e acessíveis, aqueles livros velhos de be-a-bá da infância, em que cada letra é representada por um objeto da nossa vida cotidiana. Asa, bebê, casa, dado, elefante. Daí segue-se uma periferia de sutilezas, as quais não se pode desenhar no livro: amor, ódio, alegria. Abraço não É amor, por mais amor que haja nos seus abraços. O universo das palavras, em minha mente, era um universo de muitas esferas concêntricas, em cujo interior mais profundo estariam os significados mais simples, e cada vez mais afastados desse centro pueril, agregavam-se os significados mais complexos.

Como é difícil a topografia estelar da minha mente! Porque não se trata só de palavras. Tolo é conceber a linguagem como instrumento de captura. A criação de conceitos também delimita significados e determina nossa própria maneira de ver e trafegar no mundo. Porque, veja, a realidade não é inscritível na ordem simbólica. Nossa linguagem, ao tentar representar essa Coisa aí fora, a materialidade, não só falha redondamente como acaba ser a única realidade que nós, humanos, vivemos. Não que não tenhamos corpos que vivem, que respiram, que suam e que comem, mas ao nos relacionarmos com essa materialidade inegável, somos inegavelmente interpelados pelos significados que criamos. É como ser cego e relacionar-se com o mundo envolvido de uma grossa luva de lã.

A linguagem é essa grossa luva de lã.

Você se movimenta dentro da linguagem achando, de certa forma, que todos os significados são possíveis. Não importando quantas esferas concêntricas, cada vez mais complexa, existam nesse universo em expansão, como uma enorme e misteriosa matroska, você acha que nunca chegará ao seu limite. Você acha que, se for capaz de inventar um novo significado, há de achar uma palavra que, esticando-se, pode abrigá-lo com sua sombra. Ao contrário, também, pode criar uma nova palavra para um significado antigo. Mas hoje vejo com muita clareza que esse paradigma, essa crença, é uma grande dança das cadeiras: a ressignificação não existe senão uma reinterpretação.

Os discursos criam. Talvez não criem árvores e cadeiras, creio mesmo que não. Mas os discursos mesmos criam nossas práticas. Na maior parte do tempo, não é o surgimento de novas práticas que exige que a linguagem se estique para defini-las, mas pelo contrário, é o surgimento de novos discursos que possibilita novas práticas. Talvez eu queira dizer que... Linguagem e cultura não se dissociam. Talvez não se expandam com o mesmo ritmo, talvez uma ou outra se ultrapassem algumas vezes e tenham que correr para alcançar-se, para abarcar-se, para dar-se conta uma da outra. A linguagem nasce da cultura e vice-versa.

Sei que não estou me fazendo crer nem entender. Acho que estou maluca: fora da ordem simbólica, fora da linguagem, fora da cultura, vendo o universo de um jeito absolutamente estranho, fora das minhas queridas esferas concêntricas.

A linguagem que está aqui está fugindo de mim. Tento recombinar suas peças num tétris infinito, mas assim como no jogo, meu monólito está muito próximo de um queijo suíço. Só que antes, onde eu via vazio, antes, os pontos que a linguagem e a cultura não têm nada a dizer, eu vejo que há, sim, coisas. E há muitas coisas. Há coisas caladas. Há significados sem significantes, há idéias tão distantes dessas que temos em mãos que talvez somente todo um novo idioma, e toda uma nova cultura, pudessem dar conta de explicar, e somente através de traduções altamente mutilatórias eu seria capaz de me fazer entender. Logo, não me faria entender, e morreria na mesma solidão em que vivo este presente.

O fato de não haver uma palavra ou um conceito para uma coisa não quer dizer que essa coisa não exista. Quando se trata de algo material, como uma rosa, como uma cadeira, é fácil imaginar e explicar. Mas e quando essa coisa é um novo conceito? Você poderia arriscar que esse novo conceito poderia ser explicado pela associação combinatória de conceitos já existentes – é isso que os verbetes de dicionário fazem: juntando um conceito a outro, produzem um enunciado que procura limitar o significado de uma dada palavra. E eis a chave da questão! Eis a chave que pode abrir a cerca: limite.

domingo, 3 de julho de 2011

Nossa educação moral: por que ensinamos às crianças que só devem dizer a verdade?

(R.)


A honestidade e franqueza só são possíveis entre iguais, em relações horizontais, livres. Fora desse âmbito, não há possibilidade para as duas. Dizer a verdade – e não vou discutir os sentidos dessa palavra, ‘verdade’ – sobre nós ou sobre o que fizemos, para quem tem poder, é nos fragilizar, é submissão, é parte da servidão voluntária.

A primeira relação desigual que enfrentamos na vida, a partir do momento em que nascemos, é nossa relação com nossos pais. Os pais, em nossa sociedade, encarnam a primeira hierarquia, a primeira autoridade que há de nos ensinar a submissão a todas as demais autoridades – um ensino com e sem palavras... Dos pais aceitamos xs professorxs, xs policiais, xs juízes, os/as patrões/patroaz, vereadorxs, deputadxs, senadorxs, presidentes e as instituições todas empoderadas. Nascemos, obviamente, sem muitas forças para resistirmos a essa terrível herança cultural e a maioria de nós nunca se libertará psicologicamente desse bando de usurpadores. E para que esses desapareçam de nossa vida social é preciso essa libertação nesse nível.

Os pais costumam dizer para seus filhos: “diga sempre a verdade”, “nunca minta”, “não esconda nada de mim”. Por que fazem isso? A resposta mais óbvia é a de que querem ter controle e domínio sobre seus filhos. São armas de manipulação. Outros dirão que é para protegê-los. Como proteger um/a filhx se x fragilizamos? Se não dizemos a elx que há momentos para verdades e momentos para mentiras? Que é preciso uma certa inteligência para discernir esses momentos, uma certa capoeira mental. Nós, os adultos, não dizemos isso porque temos receio de que as crianças usem de mentira para conosco. E por que não usariam, se somos poder? É saudável que o façam, que calculem suas possibilidades de se safar das sanções negativas, venham de quem vier. Se amamos de fato nossxs filhxs, precisamos estruturar outras relações com elxs, sem caráter punitivo e explicarmos como o mundo é, criarmos um percurso libertário nessa relação. Substituir a autoridade por amor, porque a primeira submete e (hetero)disciplina, a segunda orienta e deixa viver – com sua existência de autoaprendizado e a autodisciplina. Se não há crime e castigo, não haverá necessidade de mentira em uma dada relação, não?

Você diz, por exemplo, para seu/sua filhx que é importante aprender. Então, essa pobre criatura é enviada, por vc, ao presídio escolar e, aos poucos, vai aprendendo que aprender é a menor das funções da escola: elx será disciplinadx, controladx, submetidx, avaliadx, etc. Percebendo isso, faz uso de corrupção, mais que necessária nesse contexto. Mata aulas, ou cola, e é descoberto. Por que brigarmos com nossx filhx? É preciso orientá-lx a, em próxima ocasião, a fazer melhor, não ser pegx, ser mais inteligente... A corrupção por parte dos não-empoderados, como parte da mentira, em nossa sociedade repressora, é mais que necessária, é uma condição de sobrevivência. Lembre-se a escola é obrigatória para filhxs e pais. E a educação, seja privada ou estatal, é sempre controlada e determinada pelo estado.

Não somos ensinados a isso, ao jogo da verdade e mentira, ao discernimento ético (posicionamento) entre uma e outra nos devidos contextos. Crescemos resistindo ao que nos coage sem que isso venha a nossa consciência, viramos, quando muito, calculistas, oportunistas, desleais porque não aprendemos a diferenciar os diferentes tipos de relações que enfrentamos no mundo. Nunca saímos de uma estrutura de reação infantil. Por exemplo, um casal amoroso supõe uma relação horizontal, não? Sem que ninguém se arrogue em proprietário do outro, não? Então, por que mentimos, traímos, somos desleais? Porque com nossa educação autoritária somos incapazes de relações livres... funcionamos pelo medo, medo das sanções (inclusive emocionais, chantagem) dos outros, daqueles q dizem nos amar... repetimos a todo tempo as instituições que criam crimes e castigos... crescemos sádicos e pusilânimes, facetas que estarão aparentes dependendo dos lugares que ocupamos nas relações.

Manipulação, competição e delação: não é incomum que com mais de um/a filhx, os pais manipulem, recompensando com espúrias, um/a delxs para delação dx outrx E x delator/a fará isso com outrxs iguais diante de outrxs autoridades em outros contextos até porque, xs delatorxs costumam se vender por muito pouco: de um afago a uns níqueis... E o delatado aprenderá que é difícil a possibilidade de confiar em alguém: nem em seus pais, nem em seus/suas irmãos/ãs, em quem?

Dizer sempre a verdade. Ser honesto. Repetidas vezes ouvimos isso, até a náusea, desde criança. Viva nossa educação autoritária, que prevê senhores e servos. Ouço de muitas pessoas que ostentam com um orgulho imbecil nos lábios “sou pobre, mas sou honesto”, ou seja, um/a submissx!! Ou de um indigente “por favor, uma esmola, eu podia tá roubando” E pergunto: por que não? Por que um/a pobre ou um/a indigente deve ser honestx? E honestx com quem? Apenas com seus iguais! Porque ser sempre honesto e com qualquer um é respeitar toda uma estrutura social-proprietária que xs oprime, é colocar em risco a própria sobrevivência, é andar sempre de cabeça baixa...

Diante de qualquer autoridade, se vc não pode uma rasteira, e sabe que pode ser punido – por qualquer crime que inventaram contra vc – minta. Jogue sua herança moral fora, livre-se de um sentimento difuso e longínquo de culpa. Não faça disparar o detector de mentiras por medo, se escapa, não sofrerá nada, senão, valeu a tentativa. Na roda x escravx luta ou brinca? Ao seu senhor dirá que brinca, dirá que dança, mas xs outrxs escravxs sabem que elx luta. Um dia fundamos quilombos até que se espalhem pelo mundo e queimemos a Casa Grande e a Senzala. Repense a educação dos pequenos nesse mundo em que alguns se arrogam senhores de outros...