domingo, 18 de dezembro de 2011

Onde elas estão?





Desde o começo desse ano, tenho tido com os marxistas uma relação... dialética. Se, por um lado, aprendo, troco muito com eles, por outro eles me deixam uma porção de pulgas atrás da orelha que acho válido de comentar (vou ser sucintx, juro).

Todo marxista sabe que as ciências de que dispomos são burguesas: pensadas por e para uma classe a fim de atender seus interesses específicos. Essa classe, por sua vez, não é um mero conjunto de corpos genéricos que internamente se organizam de maneira horizontal, justa e autogerida, mas que a burguesia tem uma cultura, uma raça, um gênero, uma orientação sexual, e por aí vai. No entanto, tem hora que muito marxista faz ouvido de mercador, e lança mão exatamente das ciências burguesas para validar seus argumentos – e, ao que parece, a História é a menina dos olhos.

Desde março ou abril que não me sai da cabeça aquela oração “a história do Homem é a história da luta de classes”. Do homem, pode até ser: dx negrx, da mulher, ou seja, a história “dos outros” (como o cara pálida tem nos chamado) é uma outra história... Gente, POR FAVOR, chega de confundir HISTÓRIA com PASSADO. Enquanto ciência, a história NARRA o passado, e o faz elencando como protagonistas aqueles que politicamente são eleitos enquanto tal. Igualzinho às fábulas de Esopo, minha gente, a História é só uma narrativa pensada como meio de justificar uma moral.

Da maneira como a história tem sido contada, a mulher só entra em cena quando se envolve em algum evento da luta de classes. Tirando isso, reina um silêncio sepulcral: parece que elas não fizeram nada de interessante nesses anos todos. Que não pensaram, que mal viveram, e que não contribuíram, em absoluto, para que o mundo seja o que é hoje. Parece que fomos, menos que coadjuvantes, o cenário do Épico do Pau.

A lição número um do feminismo é saber que histórias são contadas por pessoas com interesses específicos: esse ponto, aliás, acho que está mais do que batido. Porém, a pergunta que vem a seguir é: o que essas mulheres estavam fazendo, e onde, e como?

O sistema falocrático não diz respeito só à economia, e a prova disso é o silêncio sobre a produção cultural feminina. Artistas talentosas, pensadoras argutas, escritoras férteis de obras profusas... obras que certamente eram “vendáveis” foram engavetadas pelos engravatados críticos e editores: o critério da “qualidade” nunca foi o que regeu a entrada da mulher no mundo das artes ou do pensamento, como querem de nós que acreditemos.

Nesses dias de TPM tenho feito muitos quadrinhos para extravasar. Porque, afinal de contas, o que se passa no mundo mágico do meu útero nada tem a ver com meus amigos e companheiros. Enquanto ninguém provar que folha de papel tem sentimento, e que fica magoada por eu descontar nela todas as minhas angústias, muitos caderninhos inocentes serão torturados. Lá pelo meio dos meus rabiscos, surgiu a pergunta: onde estão AS cartunistas? Decerto existem. Mas ONDE ELAS ESTÃO?

Como diria o ditado, “que las hay, las hay”, e fui com tudo – via tumblr, Google, Wikipédia – atrás delas. E encontrei! A maior parte restrita à produção alternativa, zineira – como moizinha. Algumas com um acúmulo de anos, obras publicadas, personagens... enfim. Inspiração para quem precisa!

Suzy-X (http://seesuzysketch.blogspot.com/) é bem atual, retrata problemas do cotidiano de feminista. Na mesma temática, tem a zineira http://www.juliedoucet.net/. Alison Bechdel escreve quadrinhos protagonizados por dykes, numa tirinha que foi publicada durante anos em diversos jornais, e neste site (http://dykestowatchoutfor.com/) muito simpático encontra-se alguma de sua produção. Também foi publicada em português, http://www.universohq.com/quadrinhos/2007/n10102007_10.cfm.

Elas estão por aí...

domingo, 11 de dezembro de 2011

Para imprimir, para distribuir, para refletir...



O texto não está, assim, um primor. Na verdade, se comparado a outros aqui do blog, está mesmo ruim. Mas se eu aprendi uma coisa nesta vida de vegan e feminist, é que a atenção de gente intolerante é rara, e quando a há, é curta. Muitas vezes, quando a pessoa se depara com um texto grande demais e que, logo de início, tende a destruir tudo em que acredita, rejeita-o quase imediatamente. Esse zine (ou flyer, ou whatever...) é uma tentativa de contornar o problema: entregar um zine na mão de alguém, com um texto sucinto, figuras "bonitas" (mas essa é uma questão para depois), às vezes é mais eficiente do que a estratégias tradicionais do bate-boca ou testamento.

Estamos tentando de tudo; estamos fazendo todas as experiências possíveis e necessárias. Não somos dones da verdade, mas onde chegarmos com ela, faremos de tudo para denunciar a falácia histórica de que a única história possível é essa que se vem contando, impondo e destruindo... E contamos com a SUA ajuda ^^

P.S.: Se alguém quiser as imagens em resolução e tamanho próprios para imprimir, basta mandar e-mail para coletivocaju@gmail.com ou (espero que funcione, não estou muito íntimx com isso aqui) 



Boa semana!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Um dia normal: entre a mitologia e o gardenal

Hoje eu tive um excelente dia! Sim, pros padrões da normalidade corriqueira eu tive um excelente dia. Acordei de bom humor, depois de uma ótima noite de sono, e fui logo saudada por aquele ser peludo e de rabinho abanando que dorme no meu quarto. A manhã estava agradável, o ônibus não veio lotado, e eu fui sentada confortavelmente até meu destino, lendo meu livrinho que hoje me pareceu mais interessante do que nos outros dias. O dia de trabalho transcorreu com facilidade, fiz mais vendas do que num dia comum, o que significa mais comissão. O pagamento também foi feito hoje, apesar do 5º dia útil ser somente amanha. Mas eu dei a sorte de ter uma patroa legal. É, ela é legal, compreensiva, se preocupa com seus funcionários, sabe... Voltei pra casa pra encontrar novamente aquele serzinho que sempre me espera na porta já com o rabinho em frenesi, pronto pra colocar seu brinquedo preferido aos meus pés e pedir um pouco de atenção.

Sim, hoje foi um ótimo dia. E no entanto a revolta ainda é latente dentro de mim. Revolta no sentido revolucionário mesmo, não que eu esteja de mal humor agora. É que revolta olhar pra esse dia supostamente bom e satisfatório e concluir que ele, na verdade, é uma bosta. Como posso me sentir feliz por ser explorada? Como alguém pode se sentir feliz sabendo que sua mais valia serve pra comprar carros com banco de couro prx patrxo legal e preocupadx? Como posso ficar feliz acordando na selva de pedra e vendo que estre ser tão carinhoso, que lambe minha mão pela manhã, dorme na gaveta de concreto que o aprisiona? Como alguém pode se sentir feliz domesticado e escravizado?

As chateações de verdade do dia perfeito (que obviamente não podia ser 100%, porque isso é vida real, né minha gente) vieram na hora do almoço. Primeiro o momento marmita... Mas esse momento já estou até excluindo da chateação diária, porque a gente se habitua com as desgraças. É uma triste acomodação. Durante o almoço minha marmita é sempre um evento, porque apesar de eu já estar dividindo aquele espaço de trabalho há alguns meses com as mesmas pessoas, é incrível a capacidade que elas tem de continuar chocadas com o fato de eu não ingerir cadáveres. Elas deveria é ficar chocadas com o fato delas ainda ingerirem cadáveres... ora...

E o segundo momento veio quando uma colega anuncia que talvez tenha que pedir as contas porque o marido anda chateado porque ela trabalha aos sábados, “dona de casa não trabalha aos sábados”, disse o pirocudo. Coitada, depois de parir 6 filhos pro filho da puta, finalmente encontrou um emprego que ela gosta e o babaca vem com essa. Nessas horas o machismo puxa nosso tapete, queria dizer pra ela gritar, se revoltar, largar o cara... queria dizer muitas coisas, disse algumas, outras seriam inúteis porque ela não entenderia mesmo... No fim fiquei pensando em todas nós, mulheres, e nas vacas leiteiras. Somos iguais! Eles pensam e agem como se nossos úteros estivessem a serviço deles. Perguntei por que ela teve 6 filhos, e ela me respondeu que o marido queria uma menina, então ela teve 5 meninos e parou quando veio a menina.

Se eu fosse dessas que leva mitologia a serio eu levantaria os braços e perguntaria “Por que Deus? Por quê?”. Mas como eu sou dessas que acha mitologia interessante mas não a leva a serio eu apenas ouço a resposta que não vem do além “Porque o kapital está a serviço do grande falo, minha filha... você ainda não sabia?”... É... eu sabia sim voz...

Eu comecei a desenhar esse texto na minha mente, dentro do ônibus voltando pra casa. E naquele momento fiquei pensando em frases tentando criar um titulo... E foi quase inevitável lembrar daquele jargão idiota que diz que “a ignorância é uma benção”. A ignorância é a chave mestra que mantem as engrenagens do mundo de opressão funcionando. O grande problema nisso tudo não está no fato de SER ignorante, mas de QUERER PERMANECER ignorante. Ignorar o problema, fingir que ele não existe, não o faz desaparecer, mas em muitos casos o afasta da nossa visão.

O que estou tentando dizer com esse texto é que considero realmente impossível ser feliz quando se decide seguir pelos caminhos de luta. Não dá pra sentir felicidade tendo consciência da sua opressão diária, da opressão das pessoas e dos seres a sua volta, da natureza... Estamos todxs enjauladxs, acorrentadxs, amordaçadxs, sendo diariamente estrupradxs, tendo nossxs úteros usados pra finalidades sujas. Nossas crianças já nascem marcadas a ferro, são arrancadas de nós e já estão condenadas... Somos todxs condenadxs.

É preciso deslocar o eixo de lugar, quebrar esse velho relógio. A felicidade jaz na luta voraz pela mudança. Olhar-se no espelho e constatar a beleza que é trazer um pouco de sangue nos olhos... Desejo e esperança... esse é o eixo...

E a voz mitológica que não vem do além insiste mais um pouco: “Não se preocupe não minha filha... O que Eles querem é isso mesmo, querem que todos vocês, ovelinhas, acreditem que a felicidade lhes pertencem. Porque só assim é possível etiquetá-la. Você não sabia? Em última análise toma aquele remedinho tarja preta... custa caro, viu... Mas promete felicidade!”

Foi mal aí dona voz... Mas eu prefiro manter a mente limpa e os olhos abertos. Ambos sedentos... sempre!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Desaparecidxs

Vamos tentar ser humanxs hoje. For a change.

Meu companheiro foi embora hoje. É, ele é um daqueles homens com coisas entre as pernas e que se pensam homens. Estou explicando - e ele está entendendo - que as coisas não são tão preto-no-branco, que ele não é tão homem quanto pensa, e que não ser homem é ótimo! E que se ele se acha heterossexual, bem, temos um problema: se eu não sou mulher, ele não é tão hetero assim...

Deixou já um incômodo, ele ter ido embora. Não é bem saudade-carrapato-melacueca, mas uma coisa muito simples, muito direta: é bom estar lado a lado com um militante tantas horas seguidas!!! Acordar do lado de uma pessoa para quem você não tem que explicar tudo-de-novo, do zero, todos os dias... que não acha um absurdo que eu fale, com todas as letrinhas, que o mundo humano gira em torno de grandes caralhos dourados e voadores, e nós, não homens, somos os alvos desses mísseis de porra. (Adorei essa história de mísseis de porra, gente, que máximo!). Não só isso, mas uma pessoa que aprende. Aprende todos os dias um pouco mais, cheio de dúvidas, dificuldades, mas cheio de vontade de passar por cima disso tudo. Aham, demora pra entender. Nunca estive nesse lugar de fala, mas quando se é branco, com pênis, heterossexual, deve ser difícil entender um bocado de coisas. Mas até agora tudo vale a pena, tudo.

Não posso falar pelas duas pessoas desse blog, e como não tem essa de quem-é-quem... enfim, tenho entrado de cabeça no feminismo. Escrito muito coisas que não sei bem onde enfiar, o que fazer com elas... resolvi sair do armário e entrar no meu lugar de fala. Isso aí. Fiz uma opção política, acadêmica, e um projeto de vida que eu deveria ter feito muitos anos atrás: ver o mundo através da minha opressão. Largar dessa porra de tentar ver pelos olhos dos outros, da teoria dos outros, da opressão dos outros. Cansei. Não vou dizer aqui que meu lugar de fala é a coisa mais constante do mundo. Posso largar tudo e virar freira. Em 10 minutos. Ordem das carmelitas descalças. Não garanto muita coisa do meu futuro, mas garanto que, a partir da minha escolha, ficou tudo bastante claro. Agora uso a teoria que convém para os fins políticos que escolhi: e jogo fora o que não presta, o que não me interessa. Sou feminista, até onde sei, e isso me deixa muito feliz.

Só que me deixa muito solitária. E ser feminista é lidar com coisas muito sérias. O mundo é hostil e não foi feito para nós não-homens. Esse Homem, por sua vez, é uma fatia muito fina do bolo da humanidade: os brancos, heterossexuais, de direita, enfim... Vejam bem, era para ser o contrário! Se o homem, essa coisa aí que eu acho bom de ser combatida, é a menor fatia, eu deveria estar feliz! O resto do bolo inteirinho me pertence... né? E nós somos a maioria, então é só a gente se juntar, colocar ordem na casa e viver feliz para sempre, num paraíso vegan-queer... né?

Não é... é tanta coisa pra explicar, pra desconstruir... Ouvir diariamente que "vocês mulheres/negrxs/minorias-em-geral já têm tudo, o que MAIS vocês querem?"... Ou, pior ainda, falar com as mulheres (elas não têm culpa, eu sei) que dizem "mas eu GOSTO de me sentir bonita, ninguém está me obrigando"... Mostrar diariamente para as pessoas, como uma mãe a uma criança, que a arquitetura, que a tecnologia, que toda a produção humana tem um discurso simples: "Pertence ao caralho". O caralho dourado, voador, grandão, viril, branco, europeu/estadunidense e assim por diante.

Pura coincidência que 10 mulheres morram por dia assassinadas por seus maridos, que 2 sejam agredidas por minuto, que o Brasil seja responsável por quase 50% das mortes de transsexuais no mundo... E é como eu sempre digo, o mais difícil é explicar as coisas fáceis. Essas é que dão trabalho. Essas é que dão uma puta canseira, e eu estou cansada, triste, desgastada, tudo-ao-mesmo-tempo-agora.

Tenho uns planos delinquentes, delirantes, de que as coisas que ando escrevendo aqui no conforto ronronante do meu PC ajudem pessoas a não sofrerem tanto por causa dessa merda de falocentrismo. Elas virão à tona, tudo em tempo; mas por enquanto, estou aproveitando as férias que me dei do querido-blog. Quem milita conhece o desgaste, espero estar perdoadx no coração dos escassos leitores.

Não sei quando volto, mas espero voltar. Enquanto isso, boa noite a todxs!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Cansadxs e sem tempo, mas ainda respirando...

Umas coisas pra pensar:


FEMINAZI: porque exigir que seu gênero seja tratado com dignidade é a mesma coisa que invadir a Polônia...


Hum, interessante! Deixe-me registrar isso na minha listinha de "coisas para as quais estou pouco me fodendo".




 Você tem o direito de ter sua opinião e eu tenho o direito de dizer quão idiota ela é!





Comece uma revolução, pare de odiar o seu corpo.

domingo, 4 de setembro de 2011

Utópico

COMO eu queria um mundo sem machismo, sem especismo, em que eu não tivesse que militar.
em que eu pudesse só escutar as minhas músicas preferidas e andar a esmo, sem nenhum compromisso de chegar a algum lugar, dizer onde estive, sem nenhum risco de me estuprarem, sem risco de me roubarem. um mundo em que cada casa pudesse servir de abrigo, em que cada pessoa fosse anfitriã, onde não fosse necessário documento, em que as pessoas fossem ingênuas e virgens e não conseguissem sequer
imaginar o que significa "medo".
um mundo em que eu me vestisse só pra espantar o mosquito e o frio.
em que eu tivesse que correr só pra me divertir.
em que eu tivesse que escrever só pra me lembrar do que é bom.
em que eu não tivesse que ler o rótulo pra saber se o produto é feito à custa da exploração de um outro ser vivo.
aliás, um mundo sem embalagens. onde eu pudesse ver através dos rostos.
um mundo com um balanço pendurado em uma arvore, pra balançar a tarde toda tentando ver o outro lado do horizonte.
um mundo cheio de pássaros debandando para o sul.

Um mundo tão perfeito quanto uma música mal executada ao piano. Onde os erros, acidentais, não ferem os ouvidos. Antes, o erro fortuito de um dedo brincalhão adverte-nos para o fato de que a música nunca se repete: cada execução é única, e é única em suas imperfeições, em seus erros.

Um mundo onde eu não tenha que lutar, em que eu viva apenas e apenas para mim mesma. E assim, sem dever nada ao mundo, que eu finalmente me conheça. Onde meu desejo não seja moldado nas formas da opressão que eu vivi. Que meu desejo não seja podado pelas lâminas da violência simbólica.

Um mundo em que, todos iguais, fossem todos igualmente amigos. Iguais, igualmente amantes. Iguais, igualmente irmãos. Iguais, pouco importaria se hoje é a última vez que nos vemos na vida: seu rosto refletir-se-ia em todos os demais, e meus braços, iguais a todos os outros, nunca deixariam saudades. E cada vez que você a alguém abraçasse, humano ou não humano, eu sentiria na brisa a carícia da sua lembrança. Simples assim. Na brisa do balanço que sobe e desce, enquanto procuro perscrutar o horizonte.

domingo, 28 de agosto de 2011

Seus cabelos azuis

Foi de pé, no meio do outono, tomando sorvete de casquinha. Velho hábito esse meu, tomar sorvete no frio. Mamãe, médica, diz que o corpo humano, mui primitivo, pede gordura para proteger-se, mal sabendo que bem ali, nas Lojas Americanas ou na Leader da esquina, há casacos. Pedia sorvete, eu tomava o sorvete de pé, erguida contra o vento frio como um obelisco inabalável, como um obelisco erguido por reis do passado, quando animais falavam. Um obelisco que atravessava todos os tempos, uma estátua de uma certa liberdade. Quis lhe dizer tudo isso, mas você não estava a meu lado, e pela primeira vez senti saudades de você. Eu quis lhe contar alguma coisa sobre como aquela tarde trazia ventos do Sul, eu quis lhe dizer como havia asas de fadas transparentes naquele ar gelado, e também quis com você rir de algum sátiro que passou pulando na rua. Porém, tínhamos crescido, saído da escola, você agora morava em outra cidade e eu não tinha como lhe dizer absolutamente nada. Pois além de saber que você estava em Minas Gerais, eu não sabia mais nada; minha amiga agora representava um vago conhecimento de geografia.

Quando meses depois fui te ver, você tinha lindos cabelos azuis. Lindos cabelos de anis, que dava vontade de enfiar inteiro na boca, e chupar essa cor de arco-íris até a última gota, até que o cabelo descolorido como palha aparecesse sob a tintura. Nunca achei que fosse de mentira aquele azul, não acredito que haja de fato coisas de mentira. Se não foi a natureza, se foi a farmácia que te tingiu a cabeça de céu, não é menos verdade, por não ser menos você. Tivesse cabelos vermelhos, laranjas, saía de você esse bando de cores, do seu sorriso, e eu tive certeza de que meu lugar era ao seu lado. Que não fosse físico, esse lado, eu também sabia, conquanto tivesse o conforto das suas palavras, conquanto você pudesse me abraçar com a alma, conquanto pudéssemos tomar sorvetes contra o outono em cidades diferentes, sabendo que estávamos unidas pelo tempo.

E naquele dia de ressaca, quando acordamos lado a lado, eu acordei primeiro, e a primeira coisa que vi foi aquela cascata azul manchando o travesseiro, enquanto uma nesga de sol rasgava o quarto em dois. Eu sabia que era aquele ali meu lugar, ao lado do seu azul.

Eu nunca tinha tido 13 anos de relacionamento, muito menos tinha me visto querendo terminar tal feito. Porque, veja bem, de fato não ligo para as histórias das coisas, se o presente me machuca. Mas com você, com você é tão diferente! Com você eu só podia lembrar daqueles lindos cabelos azuis. Daquele banho de chuva que levou embora um pé das minhas havaianas. Mesmo que a Você do presente me machucasse, e eu tenho certeza, certeza, de que te machuquei também: nas manhãs de outono que vieram antes do fim, não havia um dia sequer em que eu não pensasse em reaver aqueles seus cabelos azuis. E aquele sorriso que irradiava todas as cores. E as histórias de todos os mundos que inventamos na esquina da sua casa, antes mesmo de você se mudar para aquele distante continente de Minas Gerais. Não havia um dia em que eu não tentasse reaver aquela menina com quem eu queria encontrar liberdade dos pais e avós assassinos de sonhos, com quem eu queria salvar o mundo do capitalismo, e do machismo, e do racismo, e do especismo... Não... terminar com você não era apenas dar por encerrada uma história, mas fechar as cortinas de um futuro que desenhamos juntas, lá no quadro de giz da nossa infância.

Então, uma manhã de verão derreteu o nosso sorvete de uma vez por todas, uma ligação de telefone, e burocráticas como duas stalinistas, estava por terra o nosso portentoso castelo de cartas. E pensar que jamais enxerguei a fragilidade de nossa arquitetura de papel, cheguei a apostar certas feitas que era inabalável, enquanto cá e lá já as traças invisíveis comiam nosso alicerce. Subestimamos o poder das pequenas mágoas e das pequenas feridas, enquanto estávamos ambas concentradas em problemas maiores. E não vimos. Mal vimos. Que a poeira assentou no seu cabelo azul e a miopia se assentou nos seus olhos. Agora não sei, já não sei, se a garota que tinha aqueles lindos cabelos ainda existe. Por último, vale dizer, que os cabelos eram tão mais lindos na medida em que eram seus...

domingo, 21 de agosto de 2011

De um outro lugar...


Bom, gente, hoje o POST vai ser um tanto quanto diferente. Em vez de ficarmos matraqueando para vocês ouvirem, vamos dar lugar, mais uma vez, a um@ amig@ querid@, a Dorothy, que para além de leitora assídua – ao que parece – deste humilde blog, tem opiniões e posicionamentos que nós achamos MUITÍSSIMO RELEVANTES. Ela aqui faz uma crítica pós-moderna e pós-estruturalista ao nosso “No seu cu... que tal?”. O texto pode ser lido nos comentários do nosso post, mas achamos que ela merece mais visibilidade (aliás... uma mulher-trans-pós-identitária sempre merece mais visibilidade!) e cedemos o honrado post de domingo para suas palavras.

Nós, é claro, elaboramos uma réplica, mas invertendo os papéis, nossa resposta pode ser encontrada nos comentários.

"O problema do feminismo estaria na questão importantíssima levantada por varios autores, entre eles a socióloga Berenice Bento: "qual afinal é o sujeito político do feminismo?"
Se é o personagem social "mulher", na minha opinião, o feminismo continua sendo sexista.

E por "sexismo" ,entendo a divisão binaria de papéis de acordo com genitalias e supostas "identidades de gênero" naturais e biolõgicas. Não é possivel se revindicar o feminismo sem acatar convenções que imponham que há um ser (a mulher) que é históricamente oprimida por outro (o homem) e neste processo se reproduzir uma forma de opressão que começa ainda antes de nascermos"
 

"E ao Diogo:

Bão são os homens que têm "implicância" com o feminismo. Pelo que entendi do texto, a autora parece perceber algo que venho notando a muito tempo: se o sujeito do feminsimo é a "mulher-vagina", são os homens que não têm o referencial subjetivo ou objetivo para compreende-lo.

Eu como "mulher-trans-pós-identitária", por não ter vivido varias das experiencias "femininas" na inha vida (não saber o que é menstruar, não ter acesso a uma vagina, não ter tido uma educação de "menina" quando criança) não poderia nunca me revindicar como "feminista". Desconheço a profundidade da experiencia feminina.

Pelo mesmo motivo não posso concordar com uma luta contra o "machismo" sem antes me aprofundar na luta e na opressão do homem. Em suma, não concordo com ideais maniqueístas do tipo "burguesia X proletariado", "feminismo X machismo", "bem X mal", pq isso na pratica desumaniza e nao apresenta soluções,apenas busca apontar supostos "culpados".

O grande mérito deste texto, foi perceber que imaginar que a esquerda "libertária", é capaz de compreender o sofrimento das mulheres simplesmente por ser "libertária" e sem compreender que a idéia de "libertarianismo" numa sociedade neo-liberal não é a mesma de 30 anos atrás. "ITS A TRAP!" A esquerda tem menos capacidade de compreenção exatamente pq acredita que as opressões são fruto de questões objetivas, quando pelo contrário, o problema está na subjetividade, "IT'S A TRAP TOO!!!"

Bom, pelo menos esta é minha opinião."

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Você e eu


O despertador tocou cedo, você se espreguiçou do meu lado. Sua visão me reconfortou e, apesar do imenso sono que ainda me acometia, juntei forças para me levantar. Comemos nosso desjejum juntos, e ainda trocamos caricias e olhares. Caminhamos lado a lado, nós dois sabiamos o dia que nos aguardava mas, naquele momento, tinhamos apenas um ao outro e o asfalto sob nossos pés.

Saí pra trabalhar ainda pensando em você. Você ficou em casa, enquanto eu fui ganhar o pão. Lembrei do pão que você mais gosta. Desejei que o dia passasse rápido para voltar pra casa e te rever.

Passei o dia numa mesa telefônica com um computador lento a minha frente. Me irritei levemente quando a voz, do outro lado da linha, disse que eu era paga para repetir coisas como um robô. Me indaguei sobre aqueles que, verdadeiramente, não trabalham como robôs. É que o capitalismo tem esse poder sobre nós, mesmo quando somos competentes e exercemos a função que nos foi designada, nós a repetimos tantas vezes que tudo fica meio robótico mesmo. Não importa o quão letrado ou iletrado você seja, somos todos robozinhos programados.

Eu não sou uma máquina, e não gostei quando aquela voz me comparou a uma. Eu sei de todo o meu potencial intelectual e me senti, com aquela comparação, presa dentro de um cubo de gelo. Mas a verdade é que, naquele momento, eu estava apenas cumprindo a função que foi assinada na minha carteira, e eu era apenas mais um robozinho programado.

Lembrei de você ao desligar o telefone. O que será que você estaria fazendo? Aquela hora do dia minha irmã estava em casa, então sabia que você não estava sozinho. Me preocupei com a sua rotina e, na hora do meu almoço, liguei pra casa.

Depois de encerrar o ponto, ainda tinha que enfrentar aquelas aulas cansativas e lotadas de piadinhas que já me cansavam antes mesmo de ouvi-las. E eu pensei em jogar tudo na primeira lixeira e ir pra casa ficar com você. Enfrentei bravamente, não sem engolir um café amargo que serviu pra manter meus olhos abertos.

Saí dali desejando chegar em casa. E o ônibus que levou alguns minutos para sair, mas que pareceram horas. E você? A essa altura já estaria sozinho em casa. Minha irmã trabalha a noite. Será que você estaria comportado? Será que estaria com fome?

Abri a porta, os olhos correndo a sua procura. E lá estava você, deitado na sua caminha, levantou se espreguiçando, com o rabo balançando e vindo na minha direção. Ajoelhei para te cumprimentar, senti seu pelo macio nos meus dedos. E já fui logo apanhando a coleira, era hora do passeio da noite, para o xixi antes de dormir.

Decidi descer mais uma quadra até o parque. Chegando lá, você era só felicidade! Te libertei da coleira e imediatamente você começou a correr, descrevendo grandes circulos a minha volta. E a medida que eu fui caminhando pelo parque você veio correndo sempre descrevendo raios a minha volta. Ali a diante alguém também passeava com um cachorro, e você brincou com ele.

Eu fiquei ali, durante quase meia hora, sentindo sono e apreciando você e a sua “liberdade”. Porque livre você não é, mas ali você podia sentir aquele gostinho lá no final da língua.

E de repente me dei conta do que você havia feito no meu coração. Nós somos iguais! Dois escravos fabricados, tentando viver da melhor maneira que podemos. Desejamos a liberdade, desejamos viver a vida plenamente. Mas essa vida já não é desse mundo, nem sei se um dia já foi. A vida lá fora só nos machuca.

Você sabia que voltar para casa comigo era sua melhor opção e, na hora de ir embora, me esticou o pescoço resignado. E nós dois voltamos lado a lado, pensando e desejando um mundo em que nós dois pudessemos ser livres. Um mundo em que eu não precisasse ser um robozinho programado e você nunca fosse pra casa comigo.

E nós voltamos e, ao entrar em casa, eu liguei a TV, e você deitou nos meus pés... e suspirou... e eu também...

domingo, 14 de agosto de 2011

Cocozinho


Hoje a temática é o cu de novo... O último texto, escrito pela minha amiga e companheira de blog, me fez pensar e relembrar muita coisa. E também foi um texto que gerou certa repercussão por aqui. Então decidi levar o assunto a frente e, mais uma vez, mostrar como o machismo anda na nossa cola diariamente.

Eu nunca fui chegada nessa história de cu. Essa coisa de prazer anal sempre foi assunto estranho pra mim. Quando perdi a virgindade, meu namorado da época também era virgem. O clima entre a gente foi esquentando aos poucos e, na verdade, foi tudo muito legal. É legal viver esse momento de descoberta juntos, sem pressa, explorando as novas sensações. E lá pelas tantas do nosso namoro, já sem meu precioso cabacinho, o assunto do anal veio à tona. Eu tinha curiosidade. Resolvemos tentar.

Péssimo! Sério, não consigo entender de onde vem o tal do prazer anal. Pra mim a sensação é igualzinha a de estar cagando. O cara tava lá, metendo, todo feliz, e eu só conseguia pensar que estava cagando. Comecei a entrar numa nóia louca, de achar que ele ia tirar e a pica dele ia estar toda cagada, que a cama ia ficar toda cagada... enfim, não me diverti nem um pouco.

Mas acontece que homem parece que tem fetiche em comer cu! Que merda! Eu disse ao meu namorado que já não queria fazer de novo. Ele foi tranquilo em relação a isso. Mas todos os caras com quem me envolvi dali pra frente não. Será que é assim tão difícil compreender que nem toda mulher gosta de dar a porra do cu?

E o pior é que a gente vai se sentindo pressionada a dar a rosca. Eles pedem tanto, insistem tanto. E já fazia tanto tempo que as vezes eu ficava pensando que talvez pudesse ser bom, vai ver eu não tava sabendo aproveitar... Vai saber... E lá fui eu empinar a rabeta pra outra piroca. Mesma merma. Mesma vontade de cagar, coisa mais estranha.

Quando eu falo isso pras pessoas eu recebo respostas muito loucas. Tem gente que diz que eu tô viajando, que sexo anal não tem nada a ver com cagar. Mas já ouvi “ah, mas cagar é tão gostoso”. E uma amiga me contou que o namorado dela ficava de pau duro quando ia cagar. Sei lá cara... Talvez isso tudo seja meio Freudiano, talvez não. Eu espero que não. A única coisa que sei é que sentir tesão em cagar, realmente não é a minha. Fica você aí com seu cocozinho...

Ultimamente a vida anda meio parada no quesito sexual. É que de repente ficou muito complicado me relacionar com homens. São tantos os questionamentos, são tantas as coisas que já não engulo mais, que a verdade é que a minha pica ficou maior que a deles, e agora são eles que estão pedindo por favor pra eu não meter no cuzinho deles.

Olha... nada contra quem tem tesão em cu. Se te faz feliz, vai na fé! Mas esse buraco é muito mais complexo. Há um tempo atras, numa discussão sobre homofobia, um cara (homofóbico, claro) me solta a pérola via twitter “mulher também tem cu”. É, só falta eles entenderem que homem também tem!!! Nessa hora eu lembrei de uma cabeleireira onde eu cortava meu cabelo, uma vez dizendo que fica bolada quando tem um namorado que fica enchendo o saco pra comer o cu dela, ela tinha medo dele ser viado. As duas caras de uma mesma moeda.

Eu cansei das piadinhas, eu cansei da pressão, eu cansei do cocozinho... E o papo tem que ser bem reto, bem como terminou minha amiga “E NO SEU CU??”. Mulher também tem cu, cocozinho, mas homem também tem. Empina a rosquinha bem gostoso pra mim, vai... Isso... Agora geme!!!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

No seu cu... que tal?

Tenho um amigo que diz que só dá o cu porque não tem buceta. Tenho que concordar com ele que, apesar de ter prazer com o sexo anal (o que inclui, contrariando a ciência burguesa e cristã, orgasmos!) minha vida em torno da minha rosquinha sempre foi a velha questão do cão e do gato: como a maioria esmagadora das pessoas agraciadas com uma rola dourada ao nascer tem PAVOR de camisinha (como se o pau respirasse e fosse morrer sufocado com a dita cuja), e eu sou seriamente contra a domesticação da pílula anticoncepcional sobre o útero, eu vivia a vida adoidada na contagem da tabelinha, garantindo o sexo no período fértil com meu maravilhoso cuzinho. Pois é, não estou orgulhos@.

Reserve o parágrafo acima.

Está muito na moda essa galera heterossexual de esquerda, esses aí com seus balangandãs pendurados no meio das pernas, dizer que são feministas. Houve minha época de acreditar na balela, mas com um pouquinho de estudo, análise dos discursos dos meninos, e um tantinho de nada de bom senso, a gente vê que é simplesmente mentirinha. Veja bem, ser feminista NÃO É TORCER PELO TIME DAS MENINAS; ser feminista NÃO É TER UMA RELIGIÃO; ser feminista NÃO É CONCORDAR, por mais integralmente que seja, com uma certa visão de mundo. Isto porque, do humilde (ou não...) ponto de vista de quem vos fala, ser feminista é ser apt@ a produzir um discurso do lugar de fala de uma opressão MUITO ESPECÍFICA. Sendo mais grosseira: o monte Everest é alto, mas por mais alto que seja, não dá pra ver as pirâmides lá de cima, não é? Entonces, personas, o mesmo se dá com meus amigos machos de plantão: obrigada pelo apoio, acredito DE CORAÇÃO no seu engajamento contra o machismo que é um constituinte de suas próprias personalidades, mas por mais emoção e atitude que vocês imprimam nessa jornada, tem coisas que você só entende quando tem um útero. Nossa visão de mundo está atrelada ao nosso lugar de fala: nossa classe, nossa nacionalidade, nossa etnia E NOSSO GÊNERO. E o feminismo é uma visão de mundo.

Só que tem gente que não entende!!! Tem MESMO aqueles homens que acreditam que sabem sim, muito bem, como é que a mulher se sente, aliás, aquele time célebre que adora dizer por aí que o Chico Buarque entende a alma feminina - afirmação risível que eu não perderei meu tempo a explicar. Também não me orgulho nada de dizer que já esfreguei minha buceta e até já me apaixonei - vejam bem - por gente assim, numa época em que eu não entendia com a exatidão que entendo hoje, que se aprofunda a cada dia, que o machismo é algo muito além de simplesmente achar que lugar de mulher é na cozinha. E essa pessoa, que não cabe identificar, odiava camisinhas e adorava comer meu cu: era o matrimônio perfeito entre o útil e o agradável. E como ele (muito macho!!!) acreditava em poliamor, acreditava que eu era um ser humano com sexualidade própria, que eu era capaz de ter orgasmos (coisa da qual não posso reclamar era aquele maravilhoso sexo oral), que eu era capaz de ter raciocínios complexos e subjetividade relevante, e como meus estudos de gênero estavam apenas por começar, era fácil cair na lenga-lenga de que ele era feminista.

Repito a toda pessoa: IT'S A TRAP!

Pois bem... certo dia estava eu a me deliciar com aquela língua maravilhosa entre as pernas - orgasmo pouco é bobagem - quando de repente, não mais que de repente, o macho em questão decide tentar uma brincadeira nova: o beijo grego, ou "língua no cu". No início estava interessante... até que começou a vir uma IRREFREÁVEL vontade de peidar. Digo de novo: IRREFREÁVEL. Na verdade, comecei a ter aqueles peristaltismos selvagens que anunciam uma caganeira iminente. Era uma sensação horrível! Dei uma reboladinha e coloquei minha buceta do lugar para ele lamber, mas ele voltava com a língua para a minha rosca. Que inferno! Dei todas as indicações sutis de que não estava gostando, e quando a situação cruzou a linha do insuportável, falei com todas as letras que não queria mais: que por mais que fosse gostoso a língua na buceta (na verdade, pra mim, ainda é o momento clímax do sexo, indiscutivelmente) no cu não funcionava, ainda que fossem os mesmos movimentos linguais. Depois de minha breve e sincera explanação, o mancebo me responde com a pérola:

"No cu, na buceta... não é tudo a mesma coisa?"

Para mim, a falácia do feminismo do mancebo caiu por terra ali mesmo. Claro que ele me chupou um pouco mais, e eu gozei um pouco mais também, mas passei boa parte do meu relacionamento com la persona pensando comigo mesma como explicar para ele quão machista era aquele comportamento. Quão machista é você, homem, que não tem vagina nem útero nem clitóris, alegar que tem mais conhecimento sobre um corpo que você não tem. Aliás, essa confusão toda de "homem feminista" surge porque nossa maneira de produzir saber ainda separa, majoritariamente, corpo de mente: como se a gente não pensasse com o cérebro, e o cérebro não fosse parte do corpo, nós ainda temos uma visão muito espiritualista de que a nossa mente é uma coisa que habita nossa cabeça, e não que o nosso corpo é parte integrante, fundamental e inseparável de nossa subjetividade. Se eu não tivesse vagina, se eu nunca tivesse sido obrigada a me infectar em bares sujos na cidade porque os donos acham que "lugar de mulher não é no bar"; se eu não tivesse decidido ser um ás do video game e os meninos derrotados nunca tivessem dito que "video game não é para meninas" eu simplesmente não seria quem eu sou. E da mesma forma, todos aqueles que possuem bilaus e jamais passaram por isso experimentam a realidade de uma forma muito, muito diferente, e não estão autorizados, não possuem QUALQUER embasamento, para falar de como eu sinto as coisas, para falar se quero língua no meu cu ou não.

Verdade seja dita, eu nunca consegui elaborar uma conversa para contar ao menino aquelas coisas: cansei de ser expulsa do meu próprio lugar de fala (LOL pra ele!) e terminei. Mas antes de terminar, comecei a ler o alguma coisa d@ Beatriz Preciado, falando da implosão da genitália. Não cabe aqui resumei a obra prima da pessoa em questão; porém, ela levantou uma lebre muito boa. Todo mundo tem cu, ela dizia. Por que não promover uma interação mais horizontal entre nossos corpos a partir desse ponto em comum, que todos nós temos? Precariamente - precipitadamente - concluí que meu companheiro, feminista, estava na vibe da horizontalidade para além de posição preferencial na cama. Apostei que ele estava realmente buscando um sexo igualitário, satisfatório para tod@s @s envolvid@s, e um belo dia tentei fazer um cunilingus nele. Nada agressivo, não estuprei o cara: fiz uma massagem nas costas, carinho, beijos, fui descendo, descendo, até chegar lá. Aliás, "chegar" é um exagero: na borda da cueca, o cara pergunta: "o que você acha que está fazendo?". E eu respondi, muito de boa, muito calma...

"Estou fazendo NO SEU CU... que tal?"




domingo, 7 de agosto de 2011

Amy Winehouse assassinada pelo colarinho branco do machismo

A monogamia carcerária, aquela em que a esposa zelosa estava restrita pelo pudor das cercas vivas dos jardins, foi sacudida pelas ondas do feminismo: mas daninha que é, a cerca do jardim não tardou em crescer novamente, senão mais forte, muito mais sedutora. A cada sistema de produção coube um machismo adequado às suas demandas econômicas e simbólicas, nos marcos da tecnologia de cada uma das sociedades em que se apresentou. No mundo ocidental, aquele machismo rural e medievo da castidade e do pudor, que encarcerava não só o corpo da mulher como também a imagem desse corpo, foi substituído por um machismo capitalista que transformou esse mesmo corpo numa mercadoria fragmentada – da mesma maneira, aliás, que fragmenta a vaca: vendem-se nossos peitos, nossas bundas, nossas silhuetas, nossas vozes. E descarta-se o nosso cérebro.
Ainda não entendemos plenamente o poder da palavra, posto ainda não entendermos o ser humano como aquilo que se faz além (mas também) da carne. O machismo nem sempre mata com as próprias mãos, sendo inclusive perito em terceirizar a violência para que a mulher pratique-a sobre si mesma. E assim segue o machismo, garboso, o colarinho branco, impecável. Quando uma menina de 14 anos submete seu organismo a jornadas de 3 a 4 dias de fome; quando essa menina submete o próprio corpo a uma dieta de desnutrição para obter o “corpo correto”; quando a menina negra gasta o salário dos pais com formol e outros venenos para que seus cabelos balancem ao vento; quando a mulher, sob pressão do parceiro, abdica da camisinha e morre anos mais tarde de câncer no colo do útero são apenas os exemplos grosseiros de como o machismo não precisa acorrentar a mulher à cozinha para continuar a matá-la. Sem contar a morte subjetiva, silenciosa e diária, de não sabermos se esta rua é realmente segura, de não podermos voltar tarde para casa, de não podermos andar com uma roupa que nos agrada com medo de que a nossa simples existência convide um pervertido ao estupro.
Aliás, a imagem que se vende da mulher não é meramente o retrato do corpo, mas a imagem simbólica: a figura da mulher é um acumulador de significados, é a sede da moral, tanto enquanto exemplo positivo quanto exemplo negativo de conduta. Não só o corpo da mulher diz respeito a toda sociedade – todos se sentem à vontade para dizer que você está gorda, mal vestida, ou magra e bonita – como sua própria vida: seus amores, seus amantes, seu sexo. Se ela bebe, se ela fuma, se ela se senta com as pernas bem abertas, as línguas não param de bater, as portas da vizinhança se fecham, os rostos antes amigos não tardam a virar-se, olhar para o outro lado, cercando a mulher de uma invisibilidade que a marginaliza, e é com medo dessa marginalidade que muitas deixam de viver a plenitude de sua subjetividade, fazendo sexo, bebendo, fumando, e andando com as roupas que desejam andar.
Com as famosas a situação só se agrava, e o caso de Amy Winehouse não foi diferente. Quando um entusiasta da música bradou para mim que Amy era a nova Janis Joplin, corri para a internet para conhecê-la. Não achei nada demais: uma boa voz, é verdade, numa menina bonita para os padrões capitalistas, e uma música engraçadinha sobre recusar a tratar o vício pelas drogas. Mas meu amigo insistia: ela não é a nova Janis apenas pela “voz negra numa garota branca”, mas pela atitude! Ela usa drogas, causa escândalo por onde passa, she doesn’t give a shit.
Não tardou muito mesmo para que os escândalos começassem. Primeiro, as brigas homéricas com marido: pipocava de todos os lados o rosto inchado, os olhos comprimidos pelas bochechas, e o galanteador em questão completamente fatiado pelas unhas da menina. Estavam todos consternados: ele era o vilão; era por ele que Amy dizia com tanta veemência “no, no, no” para sua rehab. A história de amor redimia a cantora, que no final das contas, pobrezinha!, era apenas a vítima de um crápula que se aproveitava de seu coraçãozinho feminino.
A história, é claro, uma hora encheu o saco, e Amy ausentou-se brevemente do mundo papparazzo até que a questão das drogas fosse seu novo holofote. Agora, não era mais a pobre menina seduzida por um par de olhos azuis: era simplesmente a vagabunda, inconseqüente, viciada. Quando se trata dos narcóticos, a vítima é sempre culpada pelo vício, o que é tão absurdo quanto dizer que a mulher é culpada pelo estupro que sofreu. As imagens da decadência de Amy estavam por todo lugar, os carniceiros de plantão fizeram suas apostas: quanto tempo você acha que ela ainda vai durar? Um ano, dois, no máximo. E a única coisa que eu pensava era: o produtor dessa mulher é um idiota de deixar uma artista assim morrer.
Nessas horas, um publicitário torna a vida mais fácil de se entender. Fui perguntar ao meu irmão o que raios o produtor de Amy tinha na cabeça: a decrepitude da mulher estava espalhada na internet e reverberava mais alto que sua voz, que teoricamente era o produto da artista em questão. Fui perguntar se não estava fazendo mal para as vendas, e meu irmão levantou a sobrancelha direita, pendurando um sorriso disfarçadamente no canto da boca: “you’re doing it wrong, sis”. Comecei então a pensar que minha análise estava no mínimo equivocada, mas havia coisas mais urgentes a tratar do que Amy Winehouse, e a deixei de lado mais um tempo, até o dia em que calmamente, num bar da vida, num domingo quieto, recebi incrédula a notícia da morte da cantora.
Dias mais tarde fui às Lojas Americanas adquirir umas canetas que estava precisando, e Amy estava em todo lugar. Havia banners pendendo do teto como bandeiras fúnebres, sua voz ecoava pela loja num silêncio opressor, centenas de CDs estavam empilhados na entrada. Então percebi que a voz de Amy estava sendo vendida pela primeira vez: Amy Winehouse é a vítima de um feminicídio, no qual a voz é um produto post mortem. O corpo de Amy, bem como sua imagem, foram explorados pela indústria fonográfica, convertendo-se na mais bem arquitetada propaganda, na qual o desfecho trágico, a morte na juventude, veio apenas aumentar as luzes sobre o produto final. O produtor de Amy não era um ingênuo negligente, nem a cantora estava selvagem e fora de controle: estava tudo perfeitamente dentro do script.
Sempre penso comigo, nas horas vagas, que o machismo estará longe de acabar enquanto não entendermos que a exploração simbólica da mulher também é um abuso sexual, na medida em que só incide sobre o corpo feminino, sobre sua anatomia bem como sobre sua subjetividade. A vida de Amy Winehouse é uma versão longa-metragem do assassinato de Eloá, aquela menina que, após horas e horas seqüestrada pelo próprio companheiro, acabou sendo morta, enquanto a imprensa de rapina fazia de seu drama um frio espetáculo. Dessa vez, contudo, as próprias câmeras foram o assassino, e mais uma vez, o colarinho branco do machismo sai ileso, branco, intocado...

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

VeganLand

Sempre gostei de histórias lúdicas. Sempre gostei de sonhos. Sempre sonhei muito, dormindo ou acordada.

Nos últimos dias histórias sobre sonhos tem povoado, acidentalmente (ou não, partindo do princípio que não existem coincidências) minhas tardes. Histórias que falam sobre esse choque entre real e imaginativo. Sim... Imaginativo e não imaginário. Histórias que falam sobre perder o senso sem perceber, se perdendo nas profundezas do seu próprio ser, se mesclando e se entrelaçando.

O que é real? Alguém pergunta.

Essa noção toda é bastante confusa, e também bastante metafórica. Mas eu gosto de metáforas, elas fazem essa conexão que tanto gosto e que tanto me atrai e fascina.

E a melhor metáfora para isso está no bom e velho País das Maravilhas. Um lugar onde gatos voam, falam e desaparecem, lagartas fumam e dão conselhos, as flores cantam num uníssono perfeito, o coelho veste um colete e se preocupa com a hora, a lebre e o chapeleiro cantam em comemoração ao seu desaniversário e bebem chá, um castelo está fincado no meio do labirinto, e os seres temem ser decapitados pela rainha (essa parte bem que poderia ser real), e seu exército de cartas pinta suas rosas...

É... Mas a versão moderna, essa do Tim Burton, vai mais além. Eu não costumo gostar dos filmes do Tim Burton. Não sei bem por que, ele tem uma estética meio esquizofrênica que geralmente me atrairia. Mas não é da estética que estou falando. Da estética eu gosto. Acho que não gosto das temáticas que ele geralmente escolhe. Acho que é isso. Geralmente acho tudo muito raso, apesar de bonito.

Mas dessa fez foi diferente. Eu sei que esse filme foi lançado já tem um tempo e esse texto vem com certo atraso. Bom... Mas atraso em relação a que? Nada tem tempo, isso são apenas convenções velhas e sem sentido. O tempo da crítica é o tempo do agora, o tempo exato em que se faz algo, no caso, ver um filme. Sem essa de tempo marcado ou tempo passado. Apenas tempo vivido no exato instante em que deveria ser vivido.

E fiquei ali, diante da telinha do computador, me apaixonando por essa linda versão aparentemente esquizofrênica. (Adoro essa palavra! Dá pra notar?). Uma nova e perfeita interpretação.

Seria tudo apenas um sonho? Seria tudo predestinado a acontecer exatamente daquela maneira? Não importa. O que importa é a percepção de que não existe diferença entre sonho e realidade. O sonho É a realidade, e a realidade É o sonho. Entende?

E eu fiquei particularmente encantada por vários motivos. Eu sempre tive um fraco por rebeldias, especialmente as femininas. Há quem diga que eu sou meio rebelde... Meio... Isso implicaria em você ser meia também, como disse o chapeleiro...

E esse filme tem um quê de rebeldia feminina. Mas essa é a máscara superficial dele, mas na verdade é somente mais uma metáfora, assim como Wonderland é a grande metáfora. A história fala sobre tomar a frente, assumir nossas escolhas e ações, assumir o controle sobre nossas vidas. Viver a realidade! Sim, ele fala sobre isso. Não importa se estamos indo de encontro ao que esperam que a gente faça, se estamos desapontando alguns. O que importa é assumir o que realmente queremos e somos.

No meu caso seria algo bem fantástico assim. Sim! Criar um mundo novo. Tenho uma amiga que há um tempo chamou esse novo mundo de Veganland, e nós começamos a brincar sobre isso. Um mundo novo, onde exista paz, respeito, amor, carinho e afeto. Um mundo onde os pássaros cantem e voem livremente lá no céu, onde as águas dos rios sejam limpas e transparentes, onde os peixes nadem e respirem tranquilamente, onde as árvores creçam e dêem abrigo para os seres mágicos da floresta, onde as joaninhas e formiguinhas tenham seu espaço garantido, e onde a chuva caia refrescante numa tarde quente. Um mundo onde não existam guerras e brigas, onde destruição seja uma palavra desconhecido. Um mundo onde todos dêem as mãos em beneficio mútuo, onde as crianças possam rir felizes de suas histórias, onde todos os Reinos façam parte do mesmo planeta. Porque todos compreendemos que habitamos a mesma casa, o mesmo lar, e estamos todos em casa. Um mundo sem intrigas ou tragédias. Um mundo de Luz, de La Belle Verte.

Um mundo assim será possível? “Às vezes eu penso em seis coisas impossíveis antes do café da manhã”.

Acho que a pergunta principal não é se é possível ou não. Mas onde, exatamente, nós, seres humanos, cabemos nesse mundo? Nossas ações diárias nos levam pelo caminho diametralmente oposto a esse. Nós cultivamos coisas pseudo-racionais, idolatramos papel colorido, idealizamos o mundo dos sonhos como um local metálico, climatizado, sem muitas cores ou cheiros, bem afastado daquilo que chamamos de selvagem. Achamos bonito essas noções de civilidade. E assim, deste modo estranho, usurpamos todas as formas de vida que compartilham o planeta conosco, como se eles não tivessem o direito de existirem aqui. Inclusive os outros seres humanos.

Uma vez eu li uma frase que nunca mais me saiu da cabeça, apesar de ter completamente esquecido a fonte. “Violência é ter que pagar só para poder existir no planeta”. Sim!

E o filme foi correndo, Alice foi aumentando e diminuindo, e eu fiquei ali pensando sobre essas noções de real e imaginativo. E como isso tudo é, de fato, uma grande besteira implantada nas nossas cabeças para impedir que as idéias creçam. E aí lembrei do outro filme que povoou uma tarde qualquer dessa semana, e da frase que lá ouvi. “Qual é o parasita mais resistente? Bactéria? Vírus? Um verme intestinal? Uma idéia. Resistente e altamente contagiosa. Quando uma idéia domina o cérebro, é quase impossível erradicá-la.”.

É isso aí! Se queremos criar um mundo novo, o primeiro passo é idealizá-lo. É preciso arriscar ser chamado de louco, maluco, radical. O radicalismo é o único e verdadeiro caminho para mudança. Se posicionar radicalmente contra esse mundo caótico e a esses valores que corrompem e destroem, e radicalmente a favor de um mundo novo, pautado em novos valores, valores de pureza e de amor! Ser radical, buscar as raízes do sistema, alterar suas bases! Só assim poderemos ver uma estrutura totalmente nova.

Quem quiser me acompanhar é bem vindo a bordo! Nesse trem de idéias! E desejando ardentemente que as idéias voltem a ser perigosas! Rumo a VeganLand!

domingo, 31 de julho de 2011

Vamos fazer um programinha?

O tema hoje é prostituição! Inspirada pelo filme da Bruna Surfistinha, resolvi vir aqui e deixar as palavras correrem. Esse foi um filme que me surpreendeu bastante, tenho que dizer. É que a gente, querendo ou não, acaba formando opiniões que são fechadas, seladas por uma série de coisas que vão acontecendo ao longo de nossas vidas.

Nossa sociedade, pautada nessa moral judaico-cristã, “condena” a prostituição. Na verdade condena o sexo. Aliás, pra ser ainda mais precisa, condena o sexo às mulheres. Porque aos homens ele nunca foi negado, nunca mesmo! A eles cabe a divina missão de espalhar a semente pelo mundo, “multiplicai-vos”. A elas cabe a resignação ao lar e ao macho alfa que a domina, seja ele quem for. Portanto, é bem fácil de perceber que prostituta é ralé, né...

Condenar a prostituição por esses motivos, dizer que essa não é uma profissão digna, ou aquelas frases do tipo “eu prefiro ir limpar privadas do que vender minha buceta”... Bom, essa é aquela velha e chata visão de direita, critã, machista etc. Me desculpem, mas não me sinto compelida a falar sobre essa visão. Já tô bastante cansada dela e, no momento, sem muita paciência. Além do que, não foi por causa dela que eu resolvi começar a escrever.

Aquela história de meninas pobres, que foram vendidas, arrancadas de suas casas, as vezes levadas a outros países, forçadas a vender seus corpos. Meninas e mulheres que caem na vida por desespero e necessidades extremas. Sim, sim, sim, isso tudo é muito triste e mais demonstrações cruas e nuas do falocêntrismo nosso de cada dia. Mas também não foi para falar disso que eu vim até aqui.

Na verdade, o que o filme me motivou a pensar foram naqueles casos que a gente raramente pára pra pensar: quando a mulher realmente opta por ser puta! Quando ela pára tudo por algum motivo, larga tudo por algum motivo, e simplesmente decide que agora ela vende sexo.

Agora, aqui, puxando bem pela memória, acho que a primeira vez que parei para refletir verdadeiramente sobre prostituição, fora dessa esfera social-cristã, foi na época em que eu fiz teatro. Me lembro um dia, durante uma dinâmica, a professora falando sobre interpretar, emprestar seu corpo a outra pessoa. Sim, porque o personagem é outra pessoa. E, muitas vezes, é uma pessoa que faz coisas totalmente diferente das coisas que você faz ou faria. E ela lançou a pergunta, assim mesmo, sem pudor, como tinha que ser “qual é a diferença entre os atores e as prostitutas? Qual a diferença entre o pedreiro e a prostituta? Todo mundo vende o corpo, não vende? Que diferença faz a forma como vendemos nossos corpos? Por que umas são aceitas e consideradas dignas e outras não?”.

O capitalismo mascara a opressão sob lindas formas. Mas a verdade é que tá todo mundo sendo fodido, e tem de tudo vindo: tem o sujeito que coloca talco demais no pau, tem o que cheira mal, tem o que tem fetiches estranhos, tem o que vai pedir pra você mijar nele, tem aquele que só vai querer comer teu cu e nada mais, tem aquele que só quer boquete e faz questão de que você engula a porra toda. É isso aí. Qual é a diferença?

Carteira assinada, férias, décimo terceiro, fundo de garantia, aposentadoria... Tudo ilusão do sistema! Um plano muito bem articulado pra nos colocar na linha. Você finge que goza, eles fingem que acreditam e te jogam o dinheiro na cara. E você cála a boca, pega o dinheiro, se tiver sorte toma um banho, troca o lençol e parte pro próximo.

Pra mim o ponto auge do filme foi quando ela sai do hospital. O tal do Hudson oferece tudo a ela, diz que quer tirá-la dessa vida, diz que ela pode voltar a estudar, fazer faculdade. E ela responde que ela não quer viver nesse mundo, foi justamente tentando fugir dele que ela largou tudo, saiu da casa dos pais e decidiu virar puta. E ela pediu que ele tentasse entendê-la, ele não é o príncipe encantado, nem o homem que vai tirá-la dessa vida, porque se um dia ela sair dessa vida, vai ser do mesmo jeito que entrou, sabendo que foi uma escolha dela, e de mais ninguém.

A grande verdade é que o fato dela ser uma prostituta é apenas um detalhe, nessa história toda. Ela poderia ter ido trabalhar numa loja, podia vender sanduíche na praia, podia atender telefone em algum escritório, podia até ter feito a tal faculdade e ganhar mais dinheiro, com mais prestígio... Tando faz. Nada disso faria diferença.

Para o capitalismo todas as profissões são a de prostituta, estamos todxs ali deitados de pernas abertas, para satisfazer os desejos dele... Sempre os dele...

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Amor (continuação)

No que tange à autonomia da mulher heterossexual em relação a seu corpo, uma conquista que permanece é a relação entre o útero e o pai. Porém, na medida em que o corpo com útero deixa de ser uma negociata entre pais, vinculada à manutenção ou à expansão da propriedade privada, o capital apropria-se de tal conquista, ressignificando-a, impondo à mulher a reprodução da lógica de mercado em relação a seu próprio corpo. Agora, “ela vai à caça”: uma vez que a sociedade reconhece a opção pela independência, ou melhor, pela solteirice, como uma derrota imperdoável, envolvendo a “mulher sozinha” num manto de complacência e tristeza, torna-se responsabilidade da mulher heterossexual “conquistar um homem” à custa de um investimento que incide    majoritariamente sobre a estética – embora cada vez mais tenda a abranger também sua performance.
                Quanto mais exitosa for a mulher nas artes da conquista; quanto melhor souber maquiar-se e vestir-se, mais valorizada estará em relação às demais, numa complexa escala de valores que agora não apenas comporta classe e raça como critérios como: a textura do cabelo, a silhueta (gorda ou magra), a pele sem manchas e sem pêlos, cabelos brilhantes ou opacos, e por aí vai. Essa estrutura complexa provoca entre as mulheres a constante sensação de competição, sensação esta que nos divide. E não pensemos ingenuamente que se trata apenas de um acidente, de uma coincidência promovida por uma cultura: trata-se de uma estratégia ativa do machismo para evitar sentimentos de cumplicidade e união entre as mulheres, união essa que, ao longo da história, tem sido sempre vista com maus olhos. Frequentemente, os diversos veículos de comunicação através de suas narrativas (novelas, livros, filmes, séries de TV, etc) treinam a nós, mulheres, para conceber umas às outras como ferrenhas competidoras; somos descritas como maliciosas e falsas; nossas amizades, quando representadas por tais narrativas, são laços frágeis e provisórios, sempre ameaçados pela aparição de um homem, e a sociedade civil absorver tais arquétipos, acabando por reproduzi-los.  Não raro, melhor amiga e namorado se odeiam: o namorado vê na melhor amiga uma rival, não no sentido do sexo, mas no sentido de que a melhor amiga em geral preocupa-se com o bem-estar da mulher, e não com a estabilidade da relação, o que leva muitas vezes a melhor amiga a depor contra o cônjuge.
                Nessa lógica de mercado, a mulher procura tornar-se o produto mais bem posicionado na prateleira, mais valorizado no grupo a que pertence, e isso passa por dentro das relações com o capital. Uma vez que a beleza em nossa sociedade exige uma grande monta de investimentos tecnológicos – cosméticos, roupas – a mulher heterossexual acaba por definir sua identidade através da relação de exclusividade que mantém com os bens que consome. A partir disso é fácil entender por que a situação paradigmática do “vestido repetido na festa” é tão trágica: uma vez com o mesmo vestido, as mulheres tendem a comparar-se e a serem comparadas, afixando automaticamente uma vencedora e uma perdedora.
                É importante ressaltar que estar no topo dessa hierarquia trás inúmeros benefícios aparentes para quem dela goza: ser bem atendida em lojas, possuir um séquito de homens que, na esperança de um dia possuí-la, mantêm-se amigos fiéis e solícitos, ser mais bem orientada por professores, receber presentes, entre outros privilégios. Isso nos divide ainda mais enquanto classe de seres oprimidos em função de nossos úteros: aquelas que estão de fora do clube de vantagens revoltam-se, e com toda a razão; muitas feministas passam a enxergar melhor a opressão que vivem na medida em que estão privadas das poucas vantagens que “ser mulher” nos oferece. Nesse sentido, aquelas que continuam a ser aduladas melo machismo passam a ser publicamente promovidas como exemplares do gênero, promovendo uma pedagogia que, através de revistas, jornais, programas de TV, disciplina meninas e jovens mulheres a seguir o arquétipo das “vencedoras”. O mesmo discurso, pois, através da lógica formal, tipifica a feminista enquanto uma mera mulher descontente, “despeitada e invejosa” com uma ordem que é construída como natural, ou pior, como correta. O feminismo, pois, é esvaziado de sua política.
                Não à toa, retomando nosso tópico, a feminista é qualificada como “mal-amada”. A mulher, enquanto gênero, constrói-se na sua submissão ao homem. Toda a construção da identidade feminina é voltada a tornar o corpo uterino uma ferramenta do corpo com pênis; de nossa estética à nossa subjetividade, toda a construção de nossas personalidades e caráteres é um longo e lento investimento simbólico de domesticação. E o amor é a consumação, a convergência de todos os condicionamentos, e o ponto em que suas finalidades vêm à tona. É no “ser amada” e no “amar” que o corpo com útero consuma a metamorfose em mulher, e eleva exponencialmente seu servilismo aumentando seu investimento cosmético, indumentário e performático. E a feminista rejeita esse tripé. Na busca por desqualifica-la e despolitizar essa luta, a feminista é tipificada como mal-amada e, mais recentemente, mal-comida – e mal sabem nossos inimigos que, no que tange à construção do gênero feminino como mero complemento à sexualidade e à subjetividade do falo, nesse sentido da palavra, não nos interessa ser mulher.
                Isso nos leva a dois questionamentos. Ambos são de interesse tático, estratégico, para a luta contra o falocentrismo. Uma vez que a primazia do Homem muito se exerce nos atos de fala, a linguagem, a escolha lexical que fazemos em nossos enunciados, são de suma importância para a nossa luta. Uma vez que o falocentrismo nos organiza simbolicamente, muito de nossa luta acontece no âmbito dos significados e das ressignificações. Desta forma, até que ponto devemos reivindicar palavras tais como amor e mulher?

domingo, 24 de julho de 2011

Amor

Como já disse alguém que deixou a frase no ar e depois a perdeu, tudo pode ser. Pode ser acaso, um mau dia, céu cinza, a topada que eu dei hoje de manhã, ao saltar do ônibus, e já nem lembro, mas que deixou impressa em mim irritação que, esquecida a causa, tornou-se como se intrínseca a mim. Acho que ao deixar o útero da minha mãe dei no mundo uma topada qualquer que agora já me é natural. E é possível que seja, porque tudo pode ser; mas como não se pode viver sobre o solo fértil das possibilidades, vou dizer que não sei.

Eu lembro do crepúsculo da minha adolescência: eu era muito como eram os dias das minhas férias de verão, as férias de uma infância primitiva e já quase esquecida, a não ser por um punhado limitado de sensações; as férias não acabavam nunca, as férias eram só certeza. Havia aquele desvario de brincar e a ilusão de que não havia hoje, posto que o sol por pouco não se punha; o dia se estendendo através das horas mal deixava perceber que já eram sete da noite, e bastava um piscar de olhos já se estaria brincando sob um céu violáceo cheio de estrelas, e seria a hora do banho – de tirar o barro das mãos, vestir pijama e sonhos. No crepúsculo dos meus dezoito anos, achava que estava no começo de tudo; a terra prometida do Feudo Acadêmico exalava seu cheiro de livros velhos pelas fendas das pesadas cortinas de veludo (minhas ilusões), e uma vez atravessado o Estige do vestibular, eu ganharia o mundo. Era tudo tão certo!

Achava-me tanta coisa que hoje já não concordo, ou não lembro, ou acho até que não existe – acho que é assim com todo mundo. Entre essas coisas estava a ideia de que era anarquista, e lembro de estar certa vez em um simpósio sobre o tema, ali no Campus do Gragoatá, da UFF – para aqueles que não conhecem, sintam já na palavra Gragoatá o cheiro do mar e das amendoeiras, o chão de pedrinhas, os quero-queros, e até uma certa magia, mesmo que neste texto essa última soe vulgar. Inebriada pela Academia que eu adentrava pela primeira vez, perdida entre professores e punks unidos sob a mesma redentora bandeira, eu olhava os títulos dos livros à venda com alegria, com esperança, e sem dinheiro algum, como era de praxe naquela época, até me deparar com um que me levou à revolta – a revolta levou meus pezinhos, sempre naqueles velhos tênis, a ir embora com pressa, pensando puta num cem número de argumentos contra uma certa dona que dizia, em seu livro, que essa coisa de amor não existe.

Aquilo era um terrível engano, pensava. No ímpeto de despir-se das amarras que a aprisionavam, a moça, cujo nome se perdeu (e as arqueólogas façam o favor de achar), acabara caindo na mesma ingenuidade daqueles que acham possível destruir um sistema apenas negando a sua existência, ou a mesma arrogância de quem pensa que, uma vez não sendo documentada, a solitária folha jamais caiu no meio da floresta. Dizia não apenas que o amor não existia, como tinha sido inventado, com a arquitetada intenção de aprisionar a mulher no lar, nas quimeras; libertando-a num mundo medievo, saciar-lhe-ia a vontade de por si só viver o que lia, enquanto suas mãos poderiam ficar eternamente atadas nas bolhas de sabão de um detergente doméstico.

O livro e sua orelha ousada nunca me abandonaram inteiramente, compondo um pesadelo que algumas vezes me pegava sonolenta, cabeceando nos ônibus da vida. Porque se não houvesse amor, eu não sabia exatamente o que seria de mim, posto que desde o amanhecer da minha vida tinham-me dito que a existência de tudo aquilo que eu chamava de “eu” era apenas o amontoado errático de moléculas que tomariam sentido uma vez que eu encontrasse meu grande amor. Minha história, pois, era pura pré-história; eu, por minha vez, era apenas o apêndice de uma outra vida, eu era peça num quebra-cabeças composto apenas de duas partes: eu e Ele. “eu” em minúsculas.

Caro homem que me lê; cara pessoa dotada de espermatozóides cujo corpo desde cedo é assinalado como masculino, e conduzido pelo mundo por uma sucessão de portas abertas – claro que nem todas as portas estão abertas; para além da diferença dos gêneros, há a de cor e de classes; mas imagine que se a sociedade tem sido para vocês uma sucessão de portas abertas pontuadas por obstáculos, a vida da mulher é um amontoado de obstáculos pontilhados de portas abertas. Caro macho – com o perdão da palavra – imagino que a partir deste parágrafo o texto represente uma real dificuldade de leitura para vocês, treinados veementemente para rebater toda a literatura feminina com suas metáforas mélicas e floridas. Pois bem, se é verdadeiro o repúdio, mais verdadeiro ainda é o fato de que tal reação não lhe é natural, mas parte da constituição social, cultural e política daquilo que grosseiramente chamamos de “caráter” ou “personalidade”. A nós, mulheres, foi legado como que um gueto literário, isto é, uma gama de assuntos “tipicamente femininos” que nos são apropriados, quando não obrigatórios. No epicentro desta miríade de assuntos está o amor, e não por acaso, como veremos adiante. E os homens, evidentemente, são devidamente orientados a não gostar de boa parte de nossa produção cultural literária, não por motivos de qualidade, mas porque essa é uma literatura que francamente nos inicia no mundo da submissão.

Desta forma, o homem que quiser colaborar para o fim da opressão de gêneros terá de lutar contra o que é possivelmente a maior marca do falocentrismo: o monopólio do lugar de fala. A paixão pelo discurso e o desprezo pela escuta. Na convivência diária, a supremacia do falo não se manifesta só (nem majoritariamente) na divisão assimétrica de tarefas (que em geral leva ao acúmulo das tarefas braçais para a mulher), mas nos atos de fala. O bom observador verá que qualquer mulher que se pronuncie em situação imprópria, isto é, situação na qual é pressuposto o domínio intelectual masculino sobre o assunto, será automaticamente rotulada por alguma alcunha pejorativa, entre as quais a mais delicada será algum sinônimo qualquer de “verborrágica”. Isto porque os atos de fala, por mais prosaicos e cotidianos que sejam, são todos políticos; é sobre os discursos que se organizam as ações, as disciplinas; sendo assim, as falas que exigem conhecimento técnico, científico, isto é, as falas que são determinantes para as práticas devem ser proferidas exclusivamente por homens. Toda a impaciência com o discurso feminino – não suportar a voz, não querer ouví-la, ter a sensação permanente de que a mulher não discorda, mas apenas não entendeu o que você queria dizer – fazem parte de uma prática despótica tipicamente falocêntrica: a expulsão da mulher do lugar de fala. Retomando, pois, a proposta inicial, o homem que quiser engajar-se objetivamente na luta pelo fim da opressão da mulher terá de escutar. A escuta é revolucionária.

O mito de Adão e Eva é o que infla o pulmão dos ultrarromânticos, grandes responsáveis (embora não únicos) pelo modelo de amor que se dirige à mulher. A constituição do mito permite-nos enxergar por que o mesmo tema, “amor”, muitas vezes através das mesmas narrativas (cânones da literatura, filmes, novelas televisivas) surte sobre a mulher e sobre o homem efeitos diferentes, orientando comportamentos opostos.

É fato que o mito propõe que ambos, homem e mulher, sejam incompletos, e profundamente infelizes em sua incompletude. Não se trata apenas de uma incompletude subjetiva, mas objetiva, quase visceral: a história insinua que é objetivamente impossível atingir um grau satisfatório de felicidade na solidão, quando não afirma que a felicidade encontrada na solidão é apenas ilusória. Para além disso, o mito de Adão e Eva, em seus desdobramentos, ressignifica a palavra “solidão” para um sentimento de desolamento, depressão e angústia, identificando a raiz dessa inquietude na falta do cônjuge. Dessa maneira, para homens e mulheres, a fonte da felicidade é o amor conjugal, de onde derivarão todas as outras alegrias; todas as alegrias são completas no amor conjugal apenas.

A pequena diferença está na questão da costela. O Homem é orientado a procurar a parte que lhe falta no todo; a mulher, por sua vez, é orientada a encontrar o todo d'onde se perdeu já no início dos tempos, para onde suas vísceras apontam sem falhar. Se para o homem a procura do amor faz parte de uma saga espiritual, subjetiva, para a mulher trata-se de uma busca muito maior. O Amor para a mulher não é apresentado apenas como um sentir intenso, como a alegria de encontrar um sorriso de quem se gosta; o amor, para a mulher, é construído e imposto como um conjunto de valores e práticas que excede o mundo das flores e dos suspiros. O mito do Amor é um mito de retorno ao verdadeiro lar. O mito do amor é o que desvela impiedosamente que o laicismo do mundo ocidental é uma máscara trágica, posto que põe milhões de mulheres na esteira fabril da busca pela paz de espírito, busca na qual a mulher se anula em função do sujeito de desejo, numa relação fatalmente assimétrica na qual torna-se o objeto.

No mito do amor ocidental e bíblico, a mulher não pertence a si mesma, é a consequência lógica do homem. Seu corpo deve, pois, aguardá-lo, e caso caia em tentação, sofrerá internamente as mazelas da culpa. Ainda que a virgindade esteja vivendo dias inglórios, o mito é apenas lapidado, deformado: transforma-se na dicotomia “sexo casual” versus “sexo com amor”. Não raro revistas femininas escrevem artigos sobre o tema, orientando sempre as meninas no sentido de enaltecer o segundo em detrimento do primeiro, sem contudo bombardear o “sexo casual” às claras. E uma coisa continua constante: mesmo que o seu “primeiro homem” não seja o seu “verdadeiro amor”, é fortemente aconselhável à mulher estar perdidamente apaixonada pelo homem que lhe tirará o hímen.

A questão da virgindade quando analisada pelo prisma do amor fagocita a biologia na mais curiosa peripécia: virgindade e promiscuidade são medidas da vagina, e não do comportamento social. Por essa razão torna-se fácil explicar por que o homem não está sujeito ao valor de uma ou de outra coisa, a não ser pela obrigatoriedade de NÃO ser virgem – o que gera um problema aparente: se o homem deve perder a virgindade e a mulher deve guardá-la, alguém tem que ceder. Porém, a sociedade aponta dois diferentes caminhos, sejam eles: sendo a virgindade concernente apenas à vagina, mais precisamente ao hímen, todas as práticas “periféricas” são apenas “preliminares”, de forma que o corpo da mulher pode continuar livremente servindo ao prazer peniano. A segunda solução surge do corte de classes e raça: para que as meninas brancas e ricas possam ser virgens, o homem pode dispor dos corpos negros e pobres, bem como das prostitutas – o arquétipo de Maria Madalena, aliás, demonstra com perfeição que o mundo cristão vê na prostituta uma função duplamente moralizante de garantia da virgindade das “moças de bem”, um exemplo do comportamento proscrito e a contenção do adultério feminino, uma vez que, para burlar o casamento, o homem procurará preferencialmente a prostituta, e não uma mulher casada, ou pior ainda, virgem.

A estrutura conservadora e cristã na qual o corpo da mulher pertence ao pai antes de pertencer ao marido afrouxa-se – sem desaparecer – no que tange ao pai, mas permanece no que tange ao marido, ou ao “grande amor”. É ilusório pensar que de alguma forma a indumentária feminina atende a alguém além do homem, de suas necessidades subjetivas e simbólicas. O espartilho não foi abolido, mas engolido na medida em que o corpo feminino deve, agora, corresponder biologicamente à silhueta denominada feminina. Esta, por sua vez, está mui longe se representar vagamente um estereótipo que seja do corpo que contém o útero (contrariamente ao discurso da biologia), representando, isto sim, o imaginário de um corpo simbólico que corresponde aos papéis atribuídos à fêmea humana: o corpo torneado responde ao vigor e ao apetite sexual; os seios fortes e os quadris largos apropriados à proliferação; ausência de pêlos denotando delicadeza, suavidade, fragilidade e, em última instância, dependência.

Por essa razão, amor e conjugalidade estão entrelaçados na percepção deste sentimento destinada à mulher; amor não se trata, portanto, apenas de um estado emocional, mas de uma crença na qual um estado emocional é também físico e espiritual, que a levam de maneira automatizada, naturalizada, ao cumprimento de um papel. O apelo mélico do qual falei ainda há pouco é apenas uma entre as mais variadas estéticas na qual o amor é insinuado à mulher, emaranhado nas narrativas que compõem a cultura. Erro é pensar no falocentrismo como um obelisco defendido a ferro e fogo por uma corja acéfala testosterona: o segredo de uma sobrevivência próspera reside, inclusive, em sua maleabilidade.

A ideia de que o monopólio do útero rege a vida sexual da fêmea foi firmemente bombardeado pelo advento da pílula anticoncepcional que, como vimos, foi rapidamente convertida em um benefício para o prazer do homem, que consegue através dela livrar-se da camisinha, exercendo sua dominação simbólica através da ejaculação. A dissociação entre sexo e proliferação certamente abala o amor cristão na medida em que a prole era apresentada à mulher como fruto máximo do amor; porém, isso apenas desloca mais ainda a centralidade do amor para o sexo, condensando dois arquétipos em um só corpo: a santa e a puta. Ela é santa na medida em que sua fidelidade ao falo é real, inquestionável; contudo, movida pelo amor, construído como força primitiva e visceral, a mulher acessa seus “instintos mais animalescos”, assumindo no coito posturas ativas, dominantes, extremamente gráficas. Quanto mais sua performance corresponde à coreografia da prostituta, mais próxima ela está de seu núcleo animal, e supostamente despida da cultura e das exigências sociais, está também mais próxima do amor.

“Self made woman e o mito da conquista: agora que a mulher não é mais peça de negociata política entre pais e maridos, a função da beleza e do empenho na feminilidade são responsáveis por arrebanhar o abraço de um homem...”