Ultimamente ando abordada e atordoada por perguntas descabidas. Me perguntam o que significam as histórias que escrevo, as intenções do blog para o qual colaboro, o que significa minha tatuagem, por aí vai. Eu tenho razoavelmente respostas para tais perguntas, o que é substancialmente diferente de dizer que tenho AS respostas.
Temos que nos resignar ao nosso cristianismo. Por mais que refutemos algumas de suas premissas morais, estamos nessa empresa há dois mil anos. São dois mil anos de infiltração cultural. O cristianismo chega a cantinhos e reentrâncias da nossa cultura e de nós mesmos, que nós nem sonhamos, nem conseguimos imaginar. Quem quiser dedicar-se a erradicar esse fungo, vai se deparar com o problema óbvio de que fungos não têm cabeças. Isso aí, fungo não tem cabeça: não adianta você acreditar que há um cerne de cristianismo que origina tudo o mais, e que uma vez sufocado, matará todo o resto por falta de nutrientes. Cristianismo está em você nos lugares mais sórdidos e mais sujos. Se você deve lutar contra ele? Claro! Vá em frente. Elimine o máximo que você puder. Mas esteja pronto para conceber que a sua empreitada é mais ampla e também mais profunda do que você imaginara antes.
Uma das seqüelas dessa cultura entranhada é nosso hábito de considerar os significados intrínsecos às coisas. Primeiro, confundimos significado com índice. As nuvens pesadas indicam que vai chover, mas não significam nada. O índice é essencialmente parte do acontecimento. Índice é algo que antecipa, que indica, que antecede. Que há de se transformar naquilo que anuncia. Os povos que acreditavam na leitura das estrelas não achavam que as posições significavam os acontecimentos que viriam, mas que os causavam: as estrelas não eram um mapa, mas eram corpos em profunda interação com o resto do universo, portanto capazes de alterar o rumo das estórias.
Significar é, pois, o gesto humano de dar a alguma coisa um sentido; o significado é, pois, arbitrário e cultural. Se flores significam paz, se coroas significam reis, não há nada de paz e de reis nos objetos que portam tais significados. Mas fomos criados segundo essa cultura, na qual um grande Senhor criou o mundo numa ação intelectual. Esse modelo de cosmogonia nos torna muito receptíveis à idéia de que o mundo material – ou sensível – é portador de significados intrínsecos.
Isso foi algo de bom que a faculdade de comunicação fez por mim. Nas aulas de história do cinema – que não tinham esse nome, mas eram mais ou menos isso. Ao explicar as vanguardas do cinema, a professora deixou claro que nem tudo é Hollywood e Notre Dame no mundo das narrativas. Pode ser que o modelo de historinha que tenha prevalecido comercialmente seja este em que o significado se pretende inerente ao filme. Porém, muitos foram os diretores e roteiristas que queriam dar ao público uma experiência menos engessada. Houve muitos diretores e roteiristas que apostaram na criatividade de seus espectadores para, a partir da experiência sensorial da película, tecer seus próprios significados, e até suas próprias histórias. Muitas dessas pessoas a que me refiro consideraram verdadeiramente tirânico que a narrativa cristã à qual somos acostumados desde os contos de fada da infância conduzisse as pessoas todas a um único denominador comum, a uma única conclusão, a um único significado. Muita gente, como eu, acredita em um leitor capaz de criar a partir dos elementos que lhe são dados, um leitor que não se resigna a perseguir um significado, mas que se ocupa de inventar um. Eu também sou esse leitor.
Eu andava triste e angustiada com essa coisa de escrever no blog. Ativismo é um negócio que às vezes dói. Hoje eu não queria me lembrar das mazelas femininas, do sofrimento das outras espécies. Fuga? Eu diria descanso. Acredito que o ativismo, como a expressão intelectual ou artística, deve ser motivo de alegria e realização, e muitos dos nossos leitores (muitos? LOL) devem compreender que essa realização não vem da angústia. Passei o dia hoje lembrando não mais dos meus inimigos, mas dos meus objetivos, mentalizando os animais que sobrevivem porque eu não os como, ou porque os tirei da rua, ou porque hoje lhes dei pipoca no chão da praça; o ativismo também tem belezas que só o ativista conhece.
Adquiri (sem pagar) um DVD do filme Fantasia, da Disney. Comecei pelo Fantasia 2000 porque anos atrás, quando o vira pela primeira vez, estava nessa cegueira, nessa esteira automatizante de encontrar o significado, encontrar a historinha por trás de cada animação. De fato, algumas tinham historinhas já mastigadas, para cair direto no sangue do leitor-espectador. Mas tinha uma animação logo no início que não tinha historinha nem personagem. Eram só água, fogo, nuvens e triângulos voadores. Hoje, me deixei levar nas asas daqueles polígonos que não diziam nada por si mesmos. De vez em quando eu elegia um ou outro para ser meu personagem, meu protagonista. Dava-lhe um nome. Ele gracejava com suas asas de três pontas cachoeiras que caíam do céu, ou fogo que saía da terra. Inventei o céu e a terra, mas também brinquei com as possibilidades – afinal, por que todo azul há de ser céu? Pode ser a porta do meu armário, que também foi pano de fundo das minhas fantasias particulares. Os triângulos sumiam e reapareciam, e faziam claras alusões a borboletas. Mas podiam ser pássaros! Podiam ser prendedores de cabelo. Milhares de pregadeiras voando e brincando, com um armário azul-bebê no fundo. O chão, que parecera magmático, podia ser a madeira do meu quarto: por que não? E assim eu passei alguns minutos, ao som de uma das sinfonias de Beethoven, brincando à larga com as possibilidades. Possibilidades são uma luxúria.
Não tenho AS respostas de nada. Quero morrer livre dessas respostas que são antecedidas por artigos determinados. Quero ter as minhas próprias respostas, um baralho cheio delas, e quero ser livre para de tempos em tempos recombiná-las, compondo uma espécie de caleidoscópio de significados.
Como um móbile cheio de pregadeiras!
Parabéns, gostei do blog. Me chamou muito a atenção!
ResponderExcluirVi através do twiter..
Parabéns pels textos, li tbm o do sexual.. hehe
E fiquei curioso em relação a sua tattoo :)
Ser vegetariano é algo que passa de qualquer compreensão..
Abraços