Ela era ruiva, seus cabelos da mesma cor flamejante que o corpo eqüino da cintura para baixo. A sua parte humana, contudo, era total e completamente animal, de um jeito que nós humanos não podemos ser. Em seu olhar, em suas mãos, estava totalmente nua desta humanidade que nos aprisiona. É inconcebível, agora acordada, aquela humana não-humana, gozando de uma natureza que nos é amputada desde sempre. Da mesma maneira que a cambraia invisível da civilização nos veste de maneira inconfundível, a ela não vestia. Da mesma maneira que um padre nu é ainda um padre, nem com todas as roupas do universo seria humana aquela centaura.
Para ela não existem palavras exatas; os sons e símbolos da humanidade automaticamente tornariam-na humana, posto que nossa única e precária maneira de entender a natureza é humanizá-la, com nossas rudimentares palavras. É significar o insignificável. É encaixotar o deslumbramento e demolir a liberdade.
No meio de uma rua humana, suburbana e noturna, perto da sarjeta onde navega o lixo diurno no fluxo de nossa merda, ela apanhava de uns cinco homens, todos com o mesmo rosto, todos meio com barba, todos meio sem dentes, que a açoitavam com varinhas de bambu. Açoitavam-lhe as pernas e o rosto - estava bom onde quer que lhe caíssem os golpes - como se a violência fosse o próprio fim. Eles açoitavam a natureza daquele corpo desnutrido, que já carregava os sintomas de estar na cidade há tempo demais, ancorada exclusivamente na memória de um lugar aonde se tornara impossível regressar. Dentro de nós, carregamos cada um um lugar do passado ou da infância que já não podemos visitar, que já não existe ou que está perdido. Mas sabemos que, enquanto estivermos vivos, o lugar não terá perecido totalmente, posto que, em nosso íntimo, nós somos o próprio lugar. A centaura carregava em si, dentro e fora, em toda a sua extensão, o próprio Planeta.
Eu perguntava ao homem - que eram 5 e 1 - por que estava fazendo aquilo. Ele me respondia sucintamente que ela tinha que aprender.
Para que não morresse, eu a resgatei e a trouxe para casa, onde minha família a recebeu com a mesma condescendência com que receberia um novo cão e um novo gato. A centaura estava faminta e queria comer a grama do jardim, mas minha mãe não podia deixar uma menina assim tão linda abaixar-se e comer no chão, como um cavalo. E centaura sentou-se à mesa, recebeu um prato de alface, azeite e sal. E nunca mais curvou-se diante do Planeta.
A centaura tinha frio, mas minha mãe não podia deixá-la aninhar-se com os cães no meio do mato, porque ela era uma menina tão linda. Ganhou uma cama com edredons e travesseiros de plumas, e nunca mais deitou-se no seio da Terra.
Quando estava já mais alimentada, quando o brilho voltava aos olhos de fogo, minha mãe decidiu que a centaura ainda cheirava a floresta, e arranjou para ela uma banheira com hidromassagem, sais e xampu. Fez nela uma touca de bolhas e espuma, desembaraçando as melenas e a cauda, fez massagem e hidratação na centaura, que agora já sabia uma ou duas palavras - obrigada e sim-senhora. E no meio do banho, a centaura ganhou um Nome, em batismo de espuma.
Em uma semana a Centaura foi embora alimentada, linda e perfumada, nua; mas não como antes. Lavada a floresta da alma, foi-se embora da minha casa humana.
Para ela não existem palavras exatas; os sons e símbolos da humanidade automaticamente tornariam-na humana, posto que nossa única e precária maneira de entender a natureza é humanizá-la, com nossas rudimentares palavras. É significar o insignificável. É encaixotar o deslumbramento e demolir a liberdade.
No meio de uma rua humana, suburbana e noturna, perto da sarjeta onde navega o lixo diurno no fluxo de nossa merda, ela apanhava de uns cinco homens, todos com o mesmo rosto, todos meio com barba, todos meio sem dentes, que a açoitavam com varinhas de bambu. Açoitavam-lhe as pernas e o rosto - estava bom onde quer que lhe caíssem os golpes - como se a violência fosse o próprio fim. Eles açoitavam a natureza daquele corpo desnutrido, que já carregava os sintomas de estar na cidade há tempo demais, ancorada exclusivamente na memória de um lugar aonde se tornara impossível regressar. Dentro de nós, carregamos cada um um lugar do passado ou da infância que já não podemos visitar, que já não existe ou que está perdido. Mas sabemos que, enquanto estivermos vivos, o lugar não terá perecido totalmente, posto que, em nosso íntimo, nós somos o próprio lugar. A centaura carregava em si, dentro e fora, em toda a sua extensão, o próprio Planeta.
Eu perguntava ao homem - que eram 5 e 1 - por que estava fazendo aquilo. Ele me respondia sucintamente que ela tinha que aprender.
Para que não morresse, eu a resgatei e a trouxe para casa, onde minha família a recebeu com a mesma condescendência com que receberia um novo cão e um novo gato. A centaura estava faminta e queria comer a grama do jardim, mas minha mãe não podia deixar uma menina assim tão linda abaixar-se e comer no chão, como um cavalo. E centaura sentou-se à mesa, recebeu um prato de alface, azeite e sal. E nunca mais curvou-se diante do Planeta.
A centaura tinha frio, mas minha mãe não podia deixá-la aninhar-se com os cães no meio do mato, porque ela era uma menina tão linda. Ganhou uma cama com edredons e travesseiros de plumas, e nunca mais deitou-se no seio da Terra.
Quando estava já mais alimentada, quando o brilho voltava aos olhos de fogo, minha mãe decidiu que a centaura ainda cheirava a floresta, e arranjou para ela uma banheira com hidromassagem, sais e xampu. Fez nela uma touca de bolhas e espuma, desembaraçando as melenas e a cauda, fez massagem e hidratação na centaura, que agora já sabia uma ou duas palavras - obrigada e sim-senhora. E no meio do banho, a centaura ganhou um Nome, em batismo de espuma.
Em uma semana a Centaura foi embora alimentada, linda e perfumada, nua; mas não como antes. Lavada a floresta da alma, foi-se embora da minha casa humana.
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