domingo, 29 de maio de 2011

O EGOÍSMO DA RAPOSA

" Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"

Depois de pensar bastante, cheguei à conclusão de que a melhor retórica da humanidade, ou pelo menos a preferida, a que deixamos que nos convença mais depressa e aquela com a qual desejamos convencer aos outros, muito mais efetiva que a razão, é a beleza. Não sei que espécie de efeito encantatório possui a estética que, se bem encaixada, desvia totalmente nossa atenção do conteúdo, do argumento que ela envolve. Talvez, por ser exatamente a beleza apenas um invólucro, nos detenhamos nela primeiro, antes de avançar para as camadas mais sutis e secretas de um quadro, de um poema e de um livro. É isto: acho que a beleza, como uma barragem, detém nosso olhar, de modo que às vezes nos tornamos repetidores de uma mensagem apenas pela imagem, pelo quadro que ela nos forma, e não verdadeiramente pelo conteúdo.

Creio ter sido isso que a raposa fez comigo durante todos esses anos, desde que li o Pequeno Príncipe – um livro bonito, sempre achei. Desde que isso aconteceu, aos meus 16 anos, a frase que inaugura o texto ficou emoldurada na minha cabeça com um teor de verdade irrefutável. Dentro do contexto em que está, quando a Raposa fala a seu Pequeno Príncipe da paixão que sente, nos tornamos complacentes, compreensivos com a raposa, principalmente vendo-a tão meigamente desenhada a lápis de cor no alto de uma colina verde. Assim como eu, tenho certeza – certeza comprovada, certeza conhecida, não a certeza subjetiva de quando nos entregamos a um sentimento poderoso – que outros fizeram da mesma frase um evangelho, incorporando-a a sua vida, a seu modo de viver e de ver seu próprio mundo, seus sentimentos.
Porém, a melhor arma contra a retórica da sedução é despi-la de seu apelo. Mais de uma vez, parafraseando alguma coisa que me parecia certa, a mera tradução, mudança de palavras ou a ausência da rima me fez ver quão errada, questionável ou falível era aquela mensagem. É como descamar a tinta e descobrir que aquilo que a tela tem de nobre é justamente a pintura: a tela sob ela não passa de tecido ordinário. 
 
Foi assim que desmascarei a raposa e sob ela descobri apenas um egoísmo desesperado. Que diz a Raposa? “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Que, uma vez amando o Pequeno Príncipe, esse sentimento será a fonte de sua alegria, mas também de sua espera. Que este amor trará a plenitude, mas apenas na presença de seu amado: enquanto ele não chega, será inquietação e angústia. “A felicidade tem seu preço”, continua a Raposa: mas a responsabilidade por este preço é inteiramente do Príncipe, e não dela mesma. É de seu amado, e não de seu coração.

Então, sob esse pretexto, a Raposa prossegue em seu discurso: manda que seu querido vá encontrar-se com a Rosa, que ele cativara primeiro. Diz que, uma vez tendo conquistado a estima e o coração daquela flor, o Príncipe tornara-se responsável por tudo que aquele amor a fizesse sentir. Diz a Raposa que teria então de zelar pelos sentimentos da Rosa; que se tornara eternamente refém daquilo que diria ou não a ela, e faz o Príncipe sentir-se profundamente culpado pela discussão que tivera com a Rosa tempos antes. Faz o Príncipe esquecer-se de que também a Rosa o cativou e, portanto, também ela era responsável por ele. Faz o Príncipe esquecer-se de que, tal como magoara a Rosa naquele momento antes de deixar seu planeta, também ela o magoara. Faz o Príncipe esquecer-se de que não existem no amor, cativados e cativadores, apenas almas que se envolvem mutuamente. A Raposa faz o Príncipe esquecer-se de si mesmo, da contrapartida que tanto ela quanto a Rosa lhe deviam, e o torna eternamente cativo de suas paixões, dos seres que o envolveram; torna-o eternamente responsável pelas oscilações que causa a esses seres exatamente e apenas por ama-los.

Sou responsável pela minha rosa...repetiu ele a fim de se lembrar”.

E a Rosa, o que teria dito?

Vídeo da Semana:

Um comentário:

  1. eu, se fosse a rosa e tivesse nascido sob o signo de aquário (se é que existe essa constelação lá no planeta dela), eu teria dito assim:

    sai prá lá grude... meu negócio é amor livre!

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