domingo, 22 de maio de 2011

Coturno


A gente acaba achando que os coturnos nunca morrem.

Você pensa, “isso foi feito para uma guerra” e pensa que nunca vai para a guerra. A situação para a qual a botinha foi feita afasta-se materialmente da realidade de quem a sua: intransponível barreira das possibilidades imaginárias e hipotéticas.

A barreira, porém, não é muro, mas um caminho. À guerra? Talvez não, mas as agruras do cotidiano vão roendo a sola de borracha, e o couro (sintético) tão tenaz no princípio, vai-se dobrando ao tempo, vai-se tornando macio. E essa maciez, ao microscópio da vida, são as pequenas ranhuras e machucados que o couro vai sofrendo; a moldagem vem do desgaste.

Freud disse que um cachimbo é só um cachimbo: um coturno é só um coturno. Nada de alegorias até aqui.

O meu passou sei lá quantos anos ao meu lado. Talvez cinco. E no meu caso, embora viesse a calhar com um estilo que flertava com o gótico, era uma necessidade usar coturnos, ou galochas em geral, na minha rua. Era lama que se apoderava desde a sola dos pés até os tornozelos. Linda, vermelha, pura. Lama primordial, eu diria, mas lama mesmo assim. Cagava a casa inteira se por esquecimento entrássemos de sapato, ou se tivéssemos que correr até o banheiro sem ter tempo de tirar o calçado. Nesse caso, o coturno era conveniente porque, impermeável, deixava a lama na rua, e entrava lustroso e negro em casa, como se nada tivesse sofrido.

Enganos! Meu coturno sofreu cada tempestade, uma a uma. E eu nem olhava que ele mudava com o tempo. Que perdia o lustre, e que a sola estava comida, dando forma exata ao meu caminhar. Notava, Às vezes, umas rugas, algumas expressões de dor e cansaço. Deixava-o recompor-se atrás da porta, até a tempestade seguinte.

Também usava coturno nos dias de frio: esquentar as canelas é preciso.

E ainda, nos shows de rock: nunca se sabe o que vai se encontrar no chão desses lugares.

Nos bares e nas boates ia de coturno pelo mesmo motivo.

Não lembro do dia em que aconteceu. Ele estava encostado atrás da porta da casa de uma amiga minha, onde eu o tinha deixado depois de um certo acampamento. Amanhã eu pego, amanhã eu pego, e o amanhã chegou tardiamente. Já embalsamado pelas teias de aranha, calcei o coturno, andei alguns metros, e a sola ficou no caminho. O cansaço o tinha vencido: ainda na mortalha, deixei-o eternamente na casa dessa amiga com quem já não falo mais, porque me faltava coragem para jogá-lo fora pessoalmente. Alimentei certo tempo a ilusão de encontrar um sapateiro que lhe desse uma sola nova, mas mesmo antes disso ele estava morto para mim, encostado eternamente atrás da porta.

Minha rua foi asfaltada. Sepultaram a lama primordial sob a grossa casca de concreto, da qual as sementes que dormem serenamente ainda vão se erguer. Eu vejo um lindo fim do mundo!

E no entanto, não deixa de chover. E você sabe que, quanto mais imunda, quanto mais urbana, melhor a água conhece o caminho para o seu pé. Ela transpõe qualquer sapato; ela corrompe a secura, a integridade do ninho de meias que protege você do frio e da sujeira. O gótico no meu armário hoje não passa de uma múmia nostálgica de roupas que eu não tenho coragem de jogar fora; não tem nada que rime com a palavra bota no meu guarda-roupa. E ela continua necessária.

Não existirá outro coturno em minha vida. Anônimo, foi o único. Testemunha fiel, retrato, termômetro, evidência, artefato da minha vida: descanse em paz, atrás da porta do céu, que há de ser o céu dos sapatos. Caminharemos no Éden, esmagando a grama dos jardins sagrados, saltitando nas mornas tempestades de Deus.

Parte 2:

O luto. Ele estava em todas as botas que eu via, e nenhuma delas era tão boa quanto ele. E se é verdade que em meu armário nada sobrevivera (em bom estado) que combinasse com um coturno, mais verdade ainda é que não há nada no armário ou em mim que combine com as botas maravilhosas e femininas que povoam as vitrines. Ser mulher nunca foi minha especialidade, e as finas botas de camurça (legítima) das boutiques da vida torciam seus empinados narizes para mim.

Além disso, não tenho nenhuma necessidade urgente de matar barata no canto, onde aliás acho que elas gozem de todo o direito de realizar suas refeições dignamente.

Até que comprei essa bota aqui, que não diz nada. De couro gritantemente falso, com umas tachinhas do lado, é o que é: uma bota. Sem mais. Deixa a lama do lado de fora, e impede que a água encontre caminhos para as minhas meias. Ei-las, botas, no meu pé, esquentando as minhas canelas, como deve ser. Vinha usando meio a contragosto, sempre pensando no dia idílico em que visitarei meu irmão em São Paulo – Passárgada! – e comprarei coturnos novos. Sem nem notar que a superfície muda de seu couro farsante já cedia ao peso, à falta de feminilidade, às ruas toscas, aos bares mijados. A bota de uma liquidação granfina esquecia-se pouco a pouco de seu berço de ouro, e já tinha nela impresso meu rosto escrachado e um bafo de café.

Então hoje, fui no cinema com você, ver o filme do Thor. Eu estava feliz do seu lado, sabe, mesmo com aquele frio todo. Tirei as botas em respeito à poltrona do cinema e Às muitas bundas alheias que não têm de se sentar sobre as migalhas das ruas e da minha vida. Tirei as botas para colocar os pés na poltrona, e percebi que estávamos nós três assistindo ao mesmo filme: eu, você e as botas.

Agora que elas te conhecem, posso afirmar que são verdadeiramente minhas.

Um comentário:

  1. As minhas continuam vivas. Foram guardadas ainda com lama da ultima fazenda, mas quando precisei eles estavam a postos. Já minhas pé-de-ferro, se foram há muito.

    acho que sempre vou ficar admirado com o efeito de suas crônicas em mim x3

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