domingo, 15 de maio de 2011

Vagabundas dizem NÃO

Temos que tomar cuidado com o conceito de destruição. Andamos encarando essa palavra como a solução final dos nossos problemas: uma vez o alvo reduzido a pó, respiramos aliviados e partimos para o próximo. No entanto, tenho me perguntado se a destruição existe na materialidade dos fatos. Afinal, quando destruímos um prédio, por exemplo, não fica um buraco negro, uma porção de vácuo, onde antes ele estava: fica alguma coisa. Ficam os escombros.
 E há formas e formas de se destruir um prédio. Você pode implodí-lo. Você pode acertá-lo com aquelas grandes bolas de metal, várias vezes, até que ele esteja no chão. Pode explodi-lo, pode invocar o Godzilla para derrubá-lo, pode conjurar um terremoto, motivar a ira divina... E para cada maneira de se destruir um prédio, há um tipo de entulho produzido: alguns com tijolos e alicerces ainda inteiros, outros totalmente reduzidos a pó. Seja como for, mesmo o mais fino pó que se dispersa ao vento é ainda um resto, um escombro. Logo, sempre que se destrói, também se cria. Esta coisa criada é a que me preocupa.
Então, quando se trata do machismo, do capitalismo, da homofobia, não podemos achar válida qualquer destruição, qualquer método e qualquer sujeito. Alternativas relâmpago, grandes promessas, idéias imediatistas não devem ser recebidas pelos nossos braços incondicionalmente abertos. Uma dose de desconfiança salutar deve ser introduzida da nossa luta. Não uma desconfiança paralisante, cega, que nos impeça de agir como unidade, com coesão. Mas uma desconfiança crítica, perspicaz, capaz de ver os rumos que os métodos apontam em si mesmos, que nos torne capazes de dizer “não, não é ESSA a luta que eu quero”.
Com essa desconfiança eu recebi a notícia de uma tal “Marcha das Vagabundas”, ocorrida no Canadá. Diante da afirmação de certo policial, de que “mulheres são estupradas porque estão no lugar errado, na hora errada e com a roupa errada”, as meninas subiram nas tamancas e foram de lingerie para as ruas: pintadas, penteadas, descabeladas, esgoelando-se por seus direitos. Cartazes em riste: “vagabundas dizem SIM”, e não devem ser discriminadas (que dirá estupradas!) por causa disso.
Vi os defeitos primeiro – por sinal, defeito meu. A marcha das vagabundas é uma grande fetichização da mulher pornô-farmacológica. Nós, donas de nossos maravilhosos corpitchos, podemos dar à vontade sem aquela preocupação arcaica de engravidar. O machismo já pegou essa nossa liberdade e a distorceu faz tempo: sobre a mulher APTA a trepar, construiu uma mulher DISPOSTA a trepar. Com qualquer um, a qualquer custo, a mulher contemporânea vive um grande pornô, no qual as mais sutis insinuações são sinais de um tesão que está a ponto de transbordar sobre o mundo a qualquer momento.
Não só isso, quais são os olhos que se deleitam no corpo da mulher quando vestido de rendas e cintas-liga? “Vagabundas dizem sim”, mas para quem? Com quem essa marcha dialoga? Com o homem heterossexual, é claro.
           Uma mulher que diz SIM, mas somente quando quer e a quem quer. Uma marcha que veio dizer que a vagina não é uma porta aberta: o fato de eu gostar de sexo e estar transando com Fulano não quer dizer que queira transar com todos os integrantes dessa casta bio-simbólica. É aqui que a gente vê que o machismo é esse gato escondido com o rabo de fora: os homens não costumam ver-se como gênero, costumam aparentar que não se vêem enquanto conjunto e que não defendem os interesses um dos outros. Mas basta a mulher soltar um AI e os homens todos entram em alvoroço.
Eu ainda não tinha um veredicto quanto à marcha das vagabas: sim? Não? Seria válido trazer essa marcha altamente fetichizante para o Brasil, onde a mulher é um símbolo nacional e sua sexualidade é moeda de troca do turismo? Uma marcha que, apesar de uma mensagem urgente e contundente, é também aberta a perigosas ambigüidades? Estamos num país onde a regra é tirar a roupa, e os policiais da boa forma estão em cada esquina prontos a gritar “baranga” ou “gostosa”, deixando bem claro se você está fazendo tudo certo ou não.
            A resposta veio do face de uma amiga minha, onde uma discussão inflamou os ânimos das feministas de plantão. Um homem, que por sinal se entendia como feminista (vai saber o que essa palavra significa hoje em dia...), veio dizer que a marcha das vagabas era pura perda de tempo, uma idiotice. Em primeiro lugar, desde quando roupa é prioridade? Que coisa fútil, não é mesmo? Com tanta gente passando fome, ser estuprada é fichinha. Quer sair de noite? Pega um táxi, vai de burca, ou fica em casa, que é mais seguro. Porque afinal, o pênis é essa coisa incontrolável: uma vez que os olhos de um homem afundem no decote da menina, o futuro é incerto, e o estupro é um fato. Não podemos nos responsabilizar pelos dados biológicos, todo homem é tarado, ninfomaníaco, descontrolado, e a cabeça do pau não raciocina. Fiquem em casa e guardem suas vaginas.
            Dei um pulo na cadeira: como é possível alguém expor o nome e a face no face para defender o estuprador? É claro que a defesa está nas entrelinhas, mas também é claro que a imediata identificação de gênero do falante com o estuprador fez o cidadão-comentador escolher seu lado na história imediatamente, sem pensar. O que nos aponta algo muito sério: ainda estamos na sociedade do estupro corretivo. Aquele em que um bom chá de pica vai logo te mostrar que você não é lésbica, não é vagabunda, senão pelo fato de que não encontrou a pica certa ainda. Mas que vai encontrar.
            É. Com todos os seus defeitos, talvez precisemos de uma marcha das vagabundas para levantar a voz, com todo o resto do corpo, contra essa sociedade. Mas eu proponho outra frase: “Vagabundas dizem NÃO”. Numa sociedade em que a adoração ao falo é a religião oficial e em que o sexo com homens é obrigatório, numa sociedade onde nossas vidas, das roupas à saúde pública, são voltadas para o prazer orgástico do homem, a nossa liberdade sexual começa onde paramos e dizemos NÃO.

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