“Tudo o que antes era subversivo agora pode ser comprado em qualquer loja.”
É com essa frase que eu quero começar. Essa frase que está ressoando com força dentro de mim, causando dor e pânico.
Desde o dia em que notei que o sistema me abraçava por inteiro, comecei a ser assolado por essa dor, por esse pânico. Eu já não sei precisar quando foi, nem como foi. Acho que essa é uma daquelas coisas que nos pegam desprevenidxs numa quarta-feira chuvosa e tediosa, dentro do ônibus lotado enquanto a gente tenta chegar em casa. Ônibus sempre foram meus locais preferidos para fazer reflexões profundas. Às vezes, quando estou realmente precisando pensar, eu chego a desejar que a viagem dure mais.
Talvez seja algo relacionado aos sons desconexos e selvagens do trânsito. As palavras abafadas das conversas quentes, e um eventual celular cujo dono recusa-se a plugar os fones de ouvido. Aquele chacoalhar constante e as paisagens nem sempre agradáveis que correm rápido demais para que nossos olhos se prendam em alguma coisa. E assim a gente segue pensando. Até que um dia a ficha cai, e você sente o abraço morno e venenoso do sistema.
O banco do ônibus nunca foi um lugar confortável. Viajar em pé menos ainda. Mas ainda assim a gente dorme em pé por mais um dia, tentando esquecer o pensamento do dia anterior. Mas agora já é tarde, ele já te invadiu, já te penetrou e já se instalou. Nesse momento, a única coisa que sobrou foi o turbilhão de perguntas subsequentes. E para elas, parece que ninguém consegue encontrar a resposta.
Era quarta ou era quinta? Quando começa a bater o desespero a gente começa a se apegar em detalhes desimportantes. Eu tava com a mochila vermelha no meu colo, dentro do ônibus. A viagem era longa demais pra ir em pé. Eu esperei pelo próximo ônibus. Então acho que não tava chovendo, se tivesse eu não ia querer ter ficado no ponto mais tempo. O meu guarda-chuva tava quebrado.
Ah é... Eu me lembro agora. Tinha um bottom na minha mochila. Um botton que já não tem mais. Bottons são efêmeros, sabe. Talvez eles acabem no mesmo lugar que as xuxinhas de cabelo e as canetas... Mas eu não sou desse tipo de pessoa. Nunca fui. Nunca fui de perder objetos, até bem pouco tempo eu ainda tinha uma bolsinha cheia de fivelas de cabelo. Fivelas que eu colecionava desde bem pequenas. Algumas até bem feias, muitas que eu nem cheguei a usar. Talvez seja algum tipo de prazer esdrúxulo de dizer que eu não perco minhas coisas, eu posso abrir o armário a qualquer momento e te mostrar onde elas estão. Mas para quê? Eu realmente não sei onde foi parar o bottom.
Pequenos e grandes objetos que simplesmente existem, existem e me encaram, me afrontam. Todos os dias eles me lembram que o sistema me abraça, me engloba e me estupra. E eu fico lá, olhando pela janela do ônibus, cansada demais pra reagir.
Houve uma época em que eu chorava muito, pensava em morrer. O dia em que isso passou eu me lembro. Esse não foi um dia qualquer, com a mochila no colo. Mas também terminou dentro de um ônibus. Quando a gente volta pra casa, as pistas são longas e a ponte também era. A ponte infinita que liga as ideias. Ela conecta tudo. E de ideia em ideia a gente vai construindo tudo que julgamos ideal, o próprio nome já diz... Óbvio, não?
Hoje, a tristeza, a depressão, a infelicidade já não existem mais. Elas foram substituídas pela indignação, pelo inconformismo e pela revolta.
Mas só isso não basta. Eu deveria ser capaz de algo mais, de subverter de verdade. Talvez todos nós, pseudo-subvertores da ordem vigentes, vivemos num universo esquizofrênico, acreditando em coisas que só nós acreditamos. Eu gosto de pensar que não, mas talvez esse seja meu ego querendo me convencer de alguma coisa.
Eu ando é ficando meio cansada de tantos talvezes. Queria algumas respostas que parecem nunca vir, e a cada nova esquina, a cada nova curva que o ônibus faz só me surgem novas perguntas. São só interrogações pairando no ar, sem começo nem fim, muito menos meio. Se tivesse um meio já seria alguma coisa, pelo menos poderia percorrer durante algum tempo, quem sabe até ajudar a construir um fim, acho que o começo já não importa tanto. A gente acaba descobrindo eventualmente de onde as coisas vieram, mas é mais importante saber como elas foram parar lá.
Eu ainda tento entender como fazer pra parar de comprar as coisas que eu acho que não deveriam estar nas lojas. Nada deveria estar nas lojas. Aliás, lojas nem deveriam existir. Nada disso deveria. Fico lembrando daquele videozinho das rochas e da roda. Eu tive medo da civilização... Eu tenho medo. Medo não. Medo eu tenho de sentir dor, dor física, porque acho que já me habituei as torturas psicológicas. Será que é igualmente possível se habituar as torturas físicas?
Outro dia li uma matéria sobre uma moça que trabalha no médico sem fronteiras, desde aquele dia aquelas palavras não me saem da cabeça. Ela contando sobre mulheres em algum lugar na África, que sofrem estupros coletivos, 30, 40 homens... Acho que isso estaria no topo da minha lista de medos. Só que agora eu tô me perguntando por que. Se você prestar bem atenção, todas as torturas são, no fundo, psicológicas. Afinal, se você não morrer por conta das físicas, as feridas sempre são curáveis, umas demoram mais que outras, umas deixam cicatrizes maiores que outras... Mas a mente, nunca esquece. Ela é aquele diabinho que nos fala sobre o que acontecerá depois, sobre o que já aconteceu antes, sobre valores e morais que nos foram ensinados, sobre todas essas coisas que eu gostaria de refazer, redesenhar e reescrever.
Talvez eu já esteja reescrevendo. Ou talvez seja só mais uma artimanha do meu ego achar que isso é uma reescritura. Talvez seja só o sistema achando mais uma forma de me burlar, de me ludibriar e de me engolir mais um pouco.
É que atualmente eu moro relativamente perto, e meus caminhos de ônibus ficaram muito curtos. Já não fico nem 10 min no coletivo. Já não dá pra levar o pensamento tão adiante assim...
Talvez seja hora de adquirir uma bike...
Talvez...
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